domingo, 16 de novembro de 2008

PORTICO: Antes e depois de Marx


De novo Marx e o marxismo. Muito do dito por Marx não é novo nem original. Antes de Marx já os católicos se opunham ferrenhamente ao capitalismo selvagem, a "exploração do homem pelo homem", e identificavam claramente os erros do sistema liberal. O jesuíta Fernando Bastos demonstrou que algumas "novidades" do filosofo alemão já tinham sido indicadas pelos cristãos antes mesmo da publicação do Manifesto do Partido Comunista, em 1848. Veio Marx, foi acolhido e parte do mundo se tornou vermelho, um Império levantou e caiu no mesmo século. Depois de Marx, e pouco antes da queda do Muro, vieram as reformulações dos princípios marxistas. Para sobreviver foram necessários Socialismos novos. Apresentamos-lhes esta semana um texto pré-marxista sobre a pobreza, da autoria de um do professor e advogado do século XIX, Antoine Frédéric Ozanam, católico e beato reconhecido pela Igreja. Junto, um texto atualíssimo do Papa Bento XVI sobre a necessidade de estruturas justas. Uma análise enxuta de uma nova quimera, o chamado Socialismo Liberal, é feita pelo professor chileno Joaquim García Huidobro, da Universidade de Valparaiso. No artigo de opinião Pedro Guedes da Silva, diretor do site português Alameda Digital analisa o impacto de Gramsci entre nós. Quem como católico não tem experimentado a exclusão a priori das suas convicções perante os dogmas esquerdizantes no espaço universitário? Sobre este ponto, para concluir, oferecemos um pequeno e saboroso texto do filosofo brasileiro Miguel Reale. Em portada, uma pintura da serie Hammer and Sickle de Andy Warhol, 1977. Boa Leitura.

OS EDITORES

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Antes de Marx

Karl Marx (1818-1883) se encontra na origem de um gigantesco processo histórico que durou até nossos dias e que vai se extinguindo a partir da implosão, em 1991, da União Soviética. Hoje, ao menos no Ocidente, o marxismo começa a ser evocado como algo anacrônico. No entanto, não se pode negar que pensamos a sociedade de uma maneira diferentes antes e depois de Marx. Ele foi autor de uma denúncia certa para cuja solução ele propunha um resposta errada. Denunciou a iniqüidade do capitalismo original, que só poderia ser solucionada pela luta de classes. Poucos se lembram contudo que Karl Marx não foi um começo absoluto na crítica da sociedade.

[...] Hoje, estou convencido de que a crítica do capitalismo como sistema global já se consumara, antes da publicação do Manifesto do Partido Comunista, em 1848. Todos os pontos vulneráveis do modelo tinham sido denunciados com clareza inequívoca, pelo catolicismo social. Muitos elementos integrados por Marx em sua síntese, como dados originais, de fato ele os encontrou elaborados numa corrente de pensamentos que inundara o espaço cultural europeu. Antes de Marx, pensadores cristãos já conheciam o mecanismo da plus-valia e tinham descoberto no processo espoliador do capitalismo, a causa secreta da questão social. Até expressões habitualmente atribuídas a Marx, como a “exploração do homem pelo homem”, são encontradas ipsis litteris, na tradição pré-marxista.

[...] Félicité-Robert de la Mennais, por exemplo, viu com nitidez os impactos sociais do processo da industrialização que nascia sob o signo do capitalismo... viu tão claro a iniqüidade a que era reduzido a proletário, que o comparou ao antigo escravo... pressentiu o efeito alienante da produção capitalista, onde "homem é esvaziado de sua personalidade", sua exclamação "Povo, ó povo, desperta em fim! escravos, levantai-vos, rompei vossos grilhões, não permitais que por mais tempo seja ultrajado o vosso nome de seres humanos" evoca de modo impressionante o apelo a uma movilização geral, que finaliza o Manifesto.

[...] Entre outros, Philippe Olympe Gerbet percebeu as contradições internas da sociedade burguesa, as quais, se não fossem superadas dentro do espírito cristão, haveriam de conduzir àquilo que Marx chamaria umpouco mais tarde de luta de classes... Louis René Villermé soube apresentar-nos nos seus escritos uma das fontes mais preciosas da história socieconômica dos inicios da revolução industrial... sugere proibir o trabalho a menores de 8 anos e a adoção do sistema de escolaridade compulsoria, que depois Marx havería introduzir nas reivindicações básicas do Manifesto... Charles Forbes de Montalembert pede impedir e punir o emprego abusivo da mão de obra inantil... Charles de Coux foi provavelmente o primeiro escritor e economista a usar o termo "mudança social", como categoria sociológica... e viu também, antes de Marx, quanto a mudança social é condicionada pela evolução do sistéma económico.

FERNANDO BASTOS DE ÁVILA, Antes de Marx: As Raízes do Humanismo Cristão,
Rio de Janeiro, 2002.

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Deus não faz pobres


Habituados até agora a considerar unicamente o interesse temporal no governo dos homens, os políticos só procuram as causas da miséria na desordem material. Formaram-se assim duas escolas que reproduziram todo o problema social à produção ou à distribuição das riquezas. De um lado, para a antiga escola dos economistas, a maior catástrofe social é uma produção insuficiente e a única solução é acelerá-la, multiplicá-la, através de uma concorrência ilimitada; não há outra lei do trabalho além do interesse pessoal, que é o mais insaciável tirano. De outro lado, a escola dos socialistas modernos vê toda a raiz do mal numa distribuição viciosa dos bens e crê salvar a sociedade suprimindo a concorrência, fazendo da organização do trabalho uma prisão destinada a alimentar seus prisioneiros e ensinando ao povo a aceitar a barganha de sua liberdade pela certeza do pão e a promessa do prazer.

Esses dois sistemas, por caminhos diversos, chegam ao mesmo materialismo. Um reduz o destino humano a produzir; outro, a gozar. Não sabemos se temos mais horror daqueles que humilham os pobres, os operários, a ponto de transformá-los em instrumentos da fortuna dos ricos, do que daqueles que os corrompem até lhes inocular as paixões dos maus ricos.

[...] Deus não faz pobres, não envia criaturas humanas às contingências desse mundo, sem as prover de duas riquezas que são as fontes das demais: a inteligência e a vontade. As riquezas morais tanto são a origem de todas as outras que as coisas materiais só se transformam em riquezas quando atingidas pela inteligência que as elabora e pela vontade que as utiliza... Por que pois pretender esconder ao povo aquilo que ele está farto de saber? Por que querer lisonjeá-lo, como se fazia com os tiranos?

É a liberdade humana que faz os pobres. É ela que seca essas duas fontes primitivas de toda riqueza, a inteligência e a vontade, deixando a primeira se extinguir na ignorância e a segunda se extenuar na devassidão.

ANTOINE FRÉDÉRIC OZANAM, trecho de artigo publicado L'Ere Nouvelle,
Paris, outubro de 1848.

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A Mudança de Estruturas


As estruturas justas são uma condição sem a qual não é possível uma ordem justa na sociedade. Porém, como nascem? Como funcionam? Tanto o capitalismo como o marxismo prometeram encontrar o caminho para a criação de estruturas justas e afirmaram que estas, uma vez estabelecidas, funcionariam por si mesmas; afirmaram que não só não teriam tido necessidade de uma precedente moralidade individual, mas também que fomentariam a moralidade comum. E esta promessa ideológica demonstrou-se falsa.

Os fatos o comprovam. O sistema marxista, onde governou, deixou não só uma triste herança de destruições econômicas e ecológicas, mas também uma dolorosa opressão das almas. E o mesmo vemos também no ocidente, onde cresce constantemente a distância entre pobres e ricos e se produz uma inquietadora degradação da dignidade pessoal com a droga, o álcool e as sutis ilusões de felicidade.

As estruturas justas são... uma condição indispensável para uma sociedade justa, mas não nascem nem funcionam sem um consenso moral da sociedade sobre os valores fundamentais e sobre a necessidade de viver estes valores com as necessárias renúncias, inclusive contra o interesse pessoal.

[...] As estruturas justas têm que ser procuradas e elaboradas à luz dos valores fundamentais, com todo o empenho da razão política, econômica e social. São uma questão da recta ratio e não provêm de ideologias nem das suas promessas. Certamente há um tesouro de experiências políticas e de conhecimentos sobre os problemas sociais e econômicos, que evidenciam elementos fundamentais de um Estado justo e os caminhos que devem ser evitados.

Contudo, em situações culturais e políticas diversas, e nas mudanças progressivas das tecnologias e da realidade histórica mundial, devem ser procuradas de maneira racional as respostas adequadas e se deve criar com os compromissos indispensáveis o consenso sobre as estruturas que devem ser estabelecidas.

PAPA BENTO XVI, Discurso na sessão inaugural da V Conferência Geral da
V CELAM
,
Aparecida, 13 de Maio de 2008.

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Marx, o Falso Moises para as Massas


Dentre os muitos opositores da fé cristã, o marxismo certamente não é a filosofia mais importante, imponente ou impressionante da história.

Mas até há pouco tempo era decerto a mais influente. Uma comparação entre os mapas-múndi de 1917, 1947 e 1987 mostra como esse sistema de pensamento fluiu inexoravelmente, a ponto de inundar um terço do mundo em apenas duas gerações, feito apenas emulado duas vezes na história: uma pelo cristianismo e outra pelo islamismo.

Vinte anos atrás, todas as disputas políticas e militares do mundo, da América Central ao Oriente Médio, podiam ser consideradas em termos de comunismo versus anticomunismo.

Em grande medida, o próprio fascismo se tornou popular na Europa – e ainda tem uma força considerável na América Latina – pela sua oposição ao que Marx chama de “espectro do comunismo” na primeira frase do seu Manifesto do Partido Comunista.

O Manifesto foi um dos momentos-chave da história. Publicado em 1848, “o ano das revoluções” pela Europa afora, foi, como a Bíblia, essencialmente uma filosofia da história, passada e futura. Toda a história passada foi reduzida à luta de classes entre opressor e oprimido, mestre e escravo, seja na forma de rei versus povo, pároco versus paroquiano, mestre de guilda versus aprendiz, e mesmo marido versus mulher e pais versus filhos.

Era uma visão da história que conseguia ser mais cínica que a de Maquiavel. O amor é totalmente negado ou ignorado; a regra universal é a competição e a exploração.

Mas, para Marx, isso agora pode ser mudado, porque precisamente agora, pela primeira vez na história, não teríamos muitas classes sociais, mas apenas duas: a burguesia (“aqueles que têm”, os proprietários dos meios de produção) e o proletariado (“aqueles que não têm”, que não são proprietários dos meios de produção).

Os proletários deveriam vender-se a si próprios e vender o seu trabalho aos proprietários, até o dia em que a revolução comunista “eliminaria” (eufemismo para “assassinar”) a burguesia, abolindo assim as classes e a luta de classes para sempre e estabelecendo um milênio de paz e igualdade. Ou seja: depois de ter sido cínico com relação ao passado, Marx mostrava-se gritantemente ingênuo com relação ao futuro.

O que fez Marx ser como era? Quais eram as fontes da sua crença? Marx deliberadamente repudiou a sobrenaturalidade e a peculiaridade das suas raízes judaicas para abraçar o ateísmo e o comunismo. Contudo, o marxismo ainda retinha, de forma secularizada, todos os principais fatores estruturais e emocionais da religião bíblica. Marx, como Moisés, era o profeta que libertava o novo povo escolhido, o proletariado, da escravidão do capital e o conduzia para a Terra Prometida do comunismo, para além do Mar Vermelho da sangrenta revolução mundial e através de um deserto de sofrimento passageiro dedicado ao partido, que era o novo clero.

A revolução era o novo “Dia de Javé”, o Dia do Juízo; os porta-vozes do partido eram os novos profetas; e os expurgos políticos para manter a pureza ideológica dentro do partido eram os novos juízos divinos sobre os descaminhos dos eleitos e dos seus líderes. O tom messiânico do Comunismo tornava-o, tanto na estrutura como no sentimento, mais parecido com uma religião do que qualquer outro sistema político, excetuado o fascismo.

Marx fez à sua herança filosófica hegeliana o mesmo que fez à sua herança religiosa: assumiu as suas formas e o seu espírito sem assumir o seu conteúdo. Transformou o “idealismo dialético” de Hegel no “materialismo dialético”! Por isso, costuma-se dizer que o marxismo inverteu o hegelianismo.

As sete idéias radicais que Marx herdou de Hegel foram:
Monismo: tudo é uma coisa só e a distinção que o senso comum faz entre matéria e espírito é ilusória. Para Hegel, a matéria é apenas uma forma do espírito; para Marx, o espírito é apenas uma forma da matéria.

Panteísmo: a distinção entre Criador e criatura, marca distintiva do judaísmo, é falsa. Na filosofia de Hegel, o mundo transforma-se num aspecto de Deus (Hegel era panteísta); no marxismo, Deus é reduzido ao mundo (Marx era ateu).

Historicismo: tudo muda, mesmo a verdade. Não há nada acima da história e, portanto, o que foi verdade numa época pode ser falso na época seguinte, e vice-versa. Em outras palavras, o Tempo é Deus.

Dialética: a história move-se apenas por conflitos entre forças opostas, a “tese” versus a “antítese” que se unem num patamar superior que é a “síntese”. Isto aplica-se às classes, às nações e às idéias. A valsa da dialética é executada no salão de bailes da história até que finalmente chegue o Reino de Deus – que Hegel identificou com o Estado prussiano. Marx deixou tudo mais internacional e identificou o Reino de Deus com o Estado mundial comunista.

Necessitarismo ou fatalismo: a dialética e os seus resultados não são livres, mas inevitáveis e necessários. O marxismo é uma espécie de predestinação calvinista sem um predestinador divino.

Estatismo: uma vez que não há lei ou verdade eterna e trans-histórica, o Estado é supremo e incriticável. Neste ponto, Marx novamente torna o pensamento de Hegel mais internacional.

Militarismo: uma vez que acima dos Estados não há leis universais, naturais ou eternas para resolver as diferenças entre eles, a guerra é inevitável e necessária enquanto existirem Estados.

Como muitos outros pensadores anti-religiosos desde a Revolução Francesa, Marx adotou o secularismo, o ateísmo e o humanismo do século XVIII, o “século das luzes”, juntamente com o racionalismo e a sua fé na aparente onisciência da ciência e onipotência da tecnologia. Novamente, tratou-se de uma transferência das formas, do sentimento e da função da religião bíblica para um outro deus e uma outra fé. Porque o racionalismo baseia-se numa fé, e não numa evidência. A fé em que a razão humana pode conhecer tudo o que é real não pode ser provada pela razão humana; e a própria crença de que tudo o que é real pode ser provado pelo método científico não pode ser provada pelo método científico.

Além do hegelianismo e do iluminismo, Marx ainda sofreu uma terceira influência: o reducionismo econômico. Como o nome diz, trata-se da redução de todas as questões a questões econômicas. Estivesse Marx lendo este texto agora, diria que a causa real das minhas idéias não é a capacidade da minha mente para conhecer a verdade, mas as estruturas econômicas capitalistas da sociedade que me “produziu”. Marx acreditava que o pensamento é, na sua raiz, totalmente determinado pela matéria; que o homem é totalmente determinado pela sociedade; e que a sociedade é totalmente determinada pela economia. Isso é pôr de cabeça para baixo a idéia tradicional de que a mente comanda o corpo, que os homens comandam as sociedades e as sociedades comandam a economia.

Por fim, dos “socialistas utópicos”, Marx adotou a idéia de posse coletiva da propriedade e dos meios para produzi-la. Diz Marx: “A teoria do comunismo pode ser resumida numa só frase: abolição da propriedade privada”. Na realidade, as únicas sociedades em toda a história a serem bem-sucedidas na prática do comunismo foram os mosteiros, os kibutzim, as tribos e as famílias (instituições que Marx também queria abolir). Todos os governos comunistas (tais como o da União Soviética) transferiram a propriedade privada para as mãos do Estado, não do povo. A crença de Marx de que o Estado “definharia” por conta própria e de bom grado uma vez que eliminasse o capitalismo e pusesse o comunismo no seu lugar provou ser surpreendentemente ingênua. Bem sabemos que, uma vez tomado o poder, apenas a sabedoria e a santidade podem libertá-lo.

O apelo mais profundo do comunismo, especialmente nos países do Terceiro Mundo, não foi a vontade de comunitarismo, mas o que Nietzsche chamou de “a vontade de poder”. Nietzsche viu mais fundo no coração do comunismo que o próprio Marx.

Como Marx lidou com as objeções mais óbvias ao comunismo: que o comunismo suprime a privacidade e a propriedade privada, a individualidade, a liberdade, a motivação para o trabalho, a educação, o casamento, a família, a cultura, as nações, a religião e a filosofia? Marx não negou que o comunismo eliminava essas coisas, mas afirmou que o capitalismo já fizera isso. Argumentva, por exemplo, que o “burguês vê a esposa como um simples instrumento de produção”. Em assuntos mais importantes e delicados, como a família e a religião, oferece-nos mais retórica do que lógica; exemplo: “A conversa mole da burguesia sobre a família e a educação, sobre a sagrada relação entre pais e filhos, deixa o assunto ainda mais asqueroso...” E eis aqui a sua “resposta” às objeções religiosas e filosóficas à sua teoria: “As acusações contra o comunismo feitas de pontos de vista religioso, filosófico e, em suma, ideológico, não merecem um exame sério”.

A mais simples refutação do marxismo é o fato de o materialismo ser autocontraditório. Se as idéias não são nada além de produtos das forças materiais e econômicas, tal como os carros e os sapatos, então as idéias comunistas são simplesmente isso também. Se todas as nossas idéias são determinadas, não pela intuição da verdade, mas pelos movimentos necessários da matéria; se não há meios de controlar os movimentos da nossa língua, então o pensamento de Marx não é mais verdadeiro que o de Moisés. Atacar as bases do pensamento é atacar o próprio ataque.

Marx viu isso e até o admitiu. Reinterpretou as palavras como armas, não como verdades. A finalidade das palavras do Manifesto (e também, em última análise, as palavras da sua obra mais longa e ainda mais pseudo-científica: O capital) não foi provar alguma verdade, mas suscitar a revolução: “Até agora os filósofos interpretaram o mundo de diversas formas, cabe a nós transformá-lo”. Marx era basicamente um pragmático.

Mas há contradição mesmo do ponto de vista pragmático. O Manifesto termina com esta famosa exortação: “Os comunistas rejeitam dissimular as suas perspectivas e propósitos. Declaram abertamente que os seus fins só podem ser alcançados pela derrubada violenta de toda a ordem social até aqui. Podem as classes dominantes tremer ante uma revolução comunista! Nela os proletários nada têm a perder a não ser as suas cadeias. Têm um mundo a ganhar. Proletários de todos os países, uni-vos!” Mas essa exortação é contraditória, porque Marx negava o livre arbítrio. Tudo já estava definido, a revolução era “inevitável”, escolhesse eu participar dela ou não. Não se pode fazer um apelo ao livre arbítrio e negá-lo ao mesmo tempo.

Além dessas duas objeções filosóficas, há também fortes objeções práticas ao comunismo. Uma delas é o fato de nenhuma das suas previsões ter dado certo. A revolução não aconteceu na data nem no lugar previsto pelos marxistas. O capitalismo não desapareceu, nem o Estado, a família e a religião. E o comunismo não produziu contentamento e igualdade em nenhum dos lugares onde ganhou força.

Marx só foi capaz de fazer uma coisa: bancar o Moisés e conduzir os tolos de volta à escravidão no Egito (mundanidade). O verdadeiro Libertador espera na coxia pelo truão “que se empavona e agita por uma hora no palco” para conduzi-lo, juntamente com os seus colegas tolos, à “empoeirada morte”, precisamente o assunto que os filósofos marxistas se negam a tocar.

PETER KREEFT, artigo da serie The Pillars of Unbelief, publicados no National Catholic Register, Boston, Fevereiro de 1988.

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O Socialismo Liberal

Até a alguns anos, muito criticavam o uso da expressão “socialismo liberal” afirmando que são contraditórios.

Socialismo e liberalismo, se diz, são doutrinas contrapostas de modo que uma pessoa aproxima-se à primeira, ficando afastada no ato da segunda, e vice versa. Parecem separados por barreiras intransponíveis.

Porém, contraditório ou não, o socialismo liberal existe. Seja chamado com este nome ou não, há políticos que governam aplicando dentro de programas socialistas políticas liberais, tanto no campo econômico como o social.

Muitos destes políticos seguiram em alguma época ao socialismo ortodoxo, mas por diversas razões, nas últimas décadas do anos 80, foram abandonando as teses fundamentais do marxismo. Hoje, em muitos lugares, é freqüente que socialistas liberais e social-democratas atuam em conjunto e até sejam confundidos. Por exemplo, na Espanha e no Chile, onde o socialismo liberal coincide com aqueles setores que tem abraçado a renovação do socialismo.

[...] Entre os fatores que influíram na renovação do socialismo, naturalmente estão alguns de caráter histórico, como o descobrimento do autêntico rosto do “socialismo real” e a publicação de testemunhos como O Arquipélago Gulag. No plano intelectual, influiu a leitura de Antônio Gramsci, que permitiu observar a importância da cultura nos processos de transformação e motivou um afastamento das formas clássicas.

O caso protótipo do socialismo liberal é o espanhol, nele os traços deste socialismo encontram-se especialmente nítidos e, inclusive, exagerados. Para que o socialismo tenha futuro, segundo seus renovadores, deve assentar-se sobre novas bases: um utopismo racional, um igualitarismo mais político do que econômico, no qual o poder estatal contrabalance as desigualdades criadas pela adoção da economia de mercado, e uma democratização total da sociedade submetendo ao princípio democrático que até então estavam reservados à discricionalidade privada.

A aceitação da economia de mercado é uma nota distintiva da renovação socialista, separando-a das suas raízes marxistas, parecendo haver um acordo geral de aplicar a única economia que parece ser viável e ter sucesso, ainda que se argumente que esta aplicação seja feita com critérios técnicos, pelo que não haveria contradição ideológica.

O aprofundamento da idéia e da lógica democrática a todos os âmbitos da vida, é outra nota distintiva, na qual os socialistas liberais tem recebido uma importante influência da Escola de Frankfurt, e em especial de Jürgen Habermas, assim como de outras correntes de índole consensualistas.

[...] A relevância dada à cultura será sua quarta nota característica. Seguindo a Gramsci, na tarefa de conseguir a hegemonia cultural joga um papel fundamental, mas este deixa de ser um homem dedicado ao pensamento e passa a ser um livre-opinador, com uma ativa presença na mídia, na qual ele assume o papel de novo magistério, adequado para uma sociedade secularizada... A arte adquire um relevo especial, pois cobre de alguma maneira o oco que deixa a religião.

Os socialistas liberais fazem sua também uma tese que tem chegado a ser um chavão na filosofia política do século XX, autores como Kelse, Ross e Bobbio, tem sustentado que a democracia fundamenta-se no relativismo dos valores. Pelo contrário, qualquer pretensão de alcançar princípios e valores de caráter absoluto leva em si o perigo de adotar posturas políticas totalitárias, ou ao menos autoritárias. Abre-se caminho para o império do relativismo. O socialismo liberal, com seu hedonismo individualista e igualitário, corresponde notavelmente à caracterização do despotismo democrático que fez Aléxis de Tocqueville em A Democracia na América.

JOAQUIN GARCÍA HUIDOBRO, trecho da conferencia La Propuesta del Socialismo Liberal, no VI Congresso Interamericano de Historia, Cidade do México, 1992.

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Os iluminados do futuro

Consultando mais uma vez o relógio, o velho mestre de História Moderna e Contemporânea entrou apressado no anfiteatro que havia sido destinado pelo Diretório Acadêmico para a realização dos exames finais. A sala estava apinhada, como num dia de festa, pairando no ambiente a nervosa expectativa de uma representação teatral. Era a primeira vez que se realizavam provas segundo as disposições dos novos estatutos, baseados na fórmula salvadora: "A Universidade é do estudante", quando antes se pensara "erroneamente" que ela fosse do povo para os estudantes e os valores da ciência e da cultura.

– "Desculpem-me, mas um acidente de trânsito..."

– "Não se preocupe, professor, atalhou o presidente da banca examinadora, as providências todas já foram tomadas. A comissão de exames está aqui, pronta para proferir o julgamento com base nas respostas dadas às suas perguntas.

"Há uma comunicação prévia a fazer-lhe. Como sabe, temos andado absorvidos no estudo da reorganização universitária e da reformulação do currículo de História, razão pela qual bem reduzido foi o tempo disponível para o preparo da matéria. Diante dessa situação conjuntural, o Diretório Acadêmico houve por bem deferir o pedido feito pelos alunos, há dez dias, reduzindo à metade o programa dos exames. Ficou assente que a argüição de hoje versará sobre os pontos de número par."

– "Não compreendo como terão podido estudar a história assim, aos saltos, sem atender a certa linha de continuidade que, pelo menos sob dada perspectiva metodológica... "

Não o deixaram terminar a frase. Um dos examinadores, que parecia ser o líder intelectual da mesa diretora dos trabalhos, exclamou com ênfase:

– "É compreensível e até certo ponto justificável a sua perplexidade! A sua geração vê a história com o espírito do passado. Nós a vemos com os olhos do futuro. Qualquer episódio isolado vale na medida em que nos permite a intuição do amanhã que nos pertence!"

Uma salva de palmas acolheu essas palavras, enquanto nos lábios do velho professor brotava um sorriso, que parecia emergir da noite dos tempos, um misto da percuciente ironia socrática e da bonomia humanística de Montaigne.

– "Se essa é a conjuntura, sussurrou, passemos ao exame dos pares... Eis aqui um belo tema para o primeiro examinando: "O liberalismo econômico de Adam Smith". Que diz o colega sobre o assunto?"

O aluno, após um longo e estudado silêncio, respondeu:

– "Eis aí uma questão que nos permite compreender a grandiosidade da obra de Karl Marx, o gênio que soube desmascarar a ideologia dos economistas a serviço dos interesses da burguesia inglesa, que precisava da capa da liberdade econômica para impor salários de fome ao proletariado das tecelagens e das minas de carvão. Foi em O Capital que Marx, em 1848..."

– "Perdão, observou o professor, há aí um equívoco. O senhor está querendo se referir, naturalmente, ao Manifesto Comunista de Marx e Engels, pois O Capital só apareceu mais de vinte anos depois... "

– "E que importa? indagou abruptamente o presidente da banca. O seu reparo é bem o reflexo de uma mentalidade ultrapassada, para a qual o que interessa são os pormenores, os aspectos secundários dos fatos, e não o seu espírito, entendido em função do futuro!"

Nova explosão de aplausos acolheu essa proclamação, enquanto o líder intelectual da banca retomava a palavra, com o mesmo tom retórico:

– "Muito bem, presidente! Num exame o que interessa é verificar se o jovem está devidamente conscientizado e se é capaz de dar aos acontecimentos uma interpretação significativa para a práxis revolucionária. A meu ver, o examinando sabe, a respeito de liberalismo econômico, o essencial e indispensável, revelando uma clara tomada de posição perante o fato histórico, que só vale, repito, como intuição do futuro!"

Enquanto ainda ressoavam palmas e gritos de aplausos, levantou-se o velho mestre, tão sereno e altivo que parecia de redobrada estatura, os olhos fixos na assembléia tumultuante. Como por encanto fez-se silêncio, e o professor falou, com voz firme, mas repassada de emoção.

–"Não creio que haja necessidade de prosseguir nos exames. Os iluminados do futuro já escondem, misteriosamente, no fundo da consciência, os arcanos todos do passado. Não haverá mais necessidade de estudo, de vigílias, de dúvidas, de inquietações. Tudo será de antemão modelado e medido segundo uma intuitiva e desveladora imagem do futuro. Eu prefiro cultivar os meus mortos e as minhas lembranças, porque são eles que me auxiliam a compreender o presente e a construir com mais perspectiva e segurança os dias de amanhã."

E retirou-se, cruzando corpos e olhos inquietos de estudantes. Uma voz ressoou no anfiteatro: "Fora, reacionário!", mas ficou sem eco.

Os moços seguiram-no, com os olhos, até a porta, e sentiram que algo deles mesmos se perdia, a linha do horizonte que lhes possibilitava a determinação da própria juventude.

MIGUEL REALE, Atualidades Brasileiras: Problemas de nosso Tempo, São Paulo, 1969

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Opinião: Gramsci e as políticas kulturais


Em tese, a existência de políticas culturais a levar a cabo pelo Estado sobretudo como forma de tentar incentivar a procura deste tipo de indústrias – do cinema ao teatro, da música aos livros – seria uma boa notícia não se desse o fato, hoje pacífico, deste tipo de políticas serem na atualidade nada mais do que a mera colocação em prática das convicções em tempos propostas a destino por Gramsci. Ou seja, para além do título que ostentam, estas “políticas culturais” que hoje se obrigam por toda a Europa nada têm a ver com a Cultura que supostamente deveriam servir, sendo antes a sua exata negação. Na verdade, falamos de uma espécie de política de “terra queimada” que vira as costas à herança cultural tradicional e ao patrimônio nacional, assentando o seu poder na progressiva deseducação das gerações – quando se não logra mesmo a sua desejada estupidificação.

Gramsci, um comunista especialmente inteligente e que facilmente se distinguia, também por isso, dos seus companheiros, defendia a tese de que o poder efetivo havia de ser conquistado recolhendo os frutos de um prolongado e persistente combate cultural. Para isso haveriam os comunistas de, progressivamente, ocupar lugares de destaque nas artes, nas academias, nos círculos intelectuais, na imprensa e no mais que pudesse condicionar eficazmente a percepção que o cidadão comum tem da realidade que o rodeia. Com o passar dos anos, travestidos entretanto os comunistas para que se pareçam com sociais-democratas de toda uma vida, foi a esquerda européia a tomar em mãos as acertadas estratégias gramscianas.

Sabia bem o italiano que não se conquista o poder sem antes ter marcado posições de relevo na frente cultural - qualquer tentativa de ignorar este simples fato estará, inevitavelmente, condenada ao fracasso - marcando o ponto, dando o mote para as agendas de cada momento, encaminhando os cidadãos em determinado sentido. Dirá a kultura dominante que falamos de métodos totalitários mas, queiram ou não, é justamente isso que se passa hoje.

Justiça lhes seja feita, o esquema foi muito bem montado e registra doses elevadas de êxitos diversos, de que a recente vitória do ‘sim’ no referendo ao aborto será apenas um exemplo. A direita liberal e permitida, quase sempre tão predisposta a andar de braço-dado com a intelectualidade reinante, havia de pensar um nadinha nestas minudências, tanto mais que por via de regra acaba sempre a discutir alegremente as mesmas agendas que à herança de Gramsci aproveitam. Já devidamente preparadas a régua e esquadro pelas artes, pelo teatro experimental e pelo cinema com rótulo de filme de qualidade, aplaudidas pela imprensa de referência, estão para rebentar as novas alíneas da agenda política, sedimentando as linhas gerais da política kultural: as salas de chuto (injeção de drogas), os casamentos homossexuais, os ataques à família e ao sentir patriótico, a descristianização da sociedade, a promoção de um individualismo acrítico que tudo questiona... sem que de fato questione o que quer que seja. Tudo para se constituir em negação da Cultura que supostamente deveria servir.

Fora destes quadros aceitos como bons para a paisagem cultural, o músico que se lhes oponha não passará na rádio; o poeta não será declamado; o escritor não será editado; o encenador não terá nunca uma sala disponível e o cineasta não conseguirá elenco. Permanecerão numa espécie de “cultura de catacumbas”, perto dos seus fiéis, mas longe dos olhares indiscretos do grande público. Todos serão, isso sim, kulturalmente vigiados para que a super-estrutura permaneça intocável.

Nos casos em que o mecanismo não funciona por si, entram em campo os subsídios, esmolas caríssimas e pagas por todos nós em nome da educação dos públicos que, ainda assim, teimam em não comparecer nas salas de espetáculo aplaudindo efusivamente os coletivos de arte. Recordam-se por certo os leitores daquele episódio mais ou menos recente d’ A Comuna do Rivoli, quando uma série de artistas – no sentido que lhes queiram dar – resolveram ocupar durante três dias o afamado teatro portuense, reclamando querer viver à custa do dinheiro administrado por Rui Rio.

A verdade é que colocar em causa as teses de Gramsci não é barato – os comunistas são, aliás, muito fracos no que às ciências econômicas respeita, conforme a história se vai encarregando de provar. Ora vejamos: segundo os dados tornados públicos, o funcionamento do Teatro Rivoli tinha proveitos globais de 3.314.370 euros, dos quais 2.794.502 (cerca de 85% do total) eram suportados por subsídios camarários. As receitas de bilheteira, essas que demonstram a adesão incondicional das massas, ficavam-se pelos 180 mil euros, arredondando caridosamente para cima. Mesmo assim, com muita caridade e muito pouco público, as contas finais apresentavam custos na ordem dos 3.659.134 euros. Em resumo: um prejuízo de 344.764 euros, que também ajuda a perceber porque faliu – literalmente - o comunismo. É uma espécie de kultura feita para o produtor.
Depois há casos mais grotescos, ainda no domínio do teatro experimental, que acumulam os subsídios a um maior descaramento – posto que visam apenas ofender os pagantes (através dos recorrentes subsídios à tal educação dos públicos). Foi assim que por cá estreou, desta feita no Teatro da Comuna (chama-se mesmo assim) em Lisboa, a peça “Me Cago en Dios”, um vômito com autoria de Iñigo Ramirez de Haro cujo esplendor artístico consistia em colocar uma sanita em pleno palco, onde se deitavam Crucifixos, imagens de Nossa Senhora de Fátima ou simbologia do Crescente Vermelho. O sucesso terá sido idêntico ao que já se havia registrado em Madrid, onde a coisa estreou financiada pelo município e pela Ibéria.

Como é evidente, a estratégia gramsciana é eficaz, mas necessita de um aliado tão relevante quanto dramático: a deseducação, a ignorância e a boçalidade, uma escola que não ensina – antes doutrina, também ela, para a mediocridade, evitando transmitir o desejo de buscar, de saber, de conhecer, de apurar os sentidos. Uma escola que debita meia dúzia de frases feitas e de verdades absolutas, que ensina a encontrar a Verdade em regime prêt-a-porter, seja na Wikipedia ou nas páginas d’ “O Código da Vinci” e dos seus já incontáveis sucedâneos, todos vendedores do mesmo confusionismo que é semente de ignorância. Tudo o mais é relegado para os domínios do distante e do incompreensível. Haverá saída num quadro destes? Talvez sim, é questão de se tentar. Talvez começar pelo princípio, por perceber o fenômeno que condiciona as sociedades européias contemporâneas, ajudando a desmontá-lo aqui e ali, desmascarando-o quando possível, explicando-o aos mais novos, mesmo se apenas para pequenos grupos de receptores interessados. E, entretanto, ler Gramsci é capaz de ser um bom acompanhamento.

Pedro Guedes da Silva, é diretor do site Alameda Virtual, Lisboa, Fevereiro de 2007

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domingo, 9 de novembro de 2008

PORTICO: O Materialismo Totalitário


Marx e o marxismo mudaram a face do mundo. Um dos maiores impérios da história -erigido sobre as idéias do filósofo alemão- surgiu e ruiu em menos de um século. A potência de concreto e ferro entrou em colapso, o muro caiu. Porém, o marxismo não morreu. É só passear nas aulas universitárias para ouvi-lo e vê-lo. Ele sobreviveu. Esta inspirando os socialismos liberais, ou democráticos, ou bolivarianos, ou rosas, de boa parte da América Latina e Europa, sem falar da China. Apresentamo-lhes neste número os traços do homem Marx retratado pela aguda perspectiva do jornalista André Frossard, cujo pai foi fundador e chefe do Partido Comunista Francês. Uma avaliação crítica desta ideologia totalizadora é oferecida numa seleção de textos do Magistério. Do intelectual mexicano Otavio Paz -ex defensor do comunismo e Nobel de Literatura de 1990- é o belo poema sobre o mal e a ditadura stalinista. Entre textos encontra-se um do atual ministro de Justiça Tarso Genro, não concordamos com sua posição ideológica, mas consideramos sua análise singularmente relevante para entender a esquerda no poder. Para concluir, oferecemos a opinião sobre os socialismos latino-americanos desde a ótica do filosofo do brasileiro Denis Lerrer Rosenfield.
Boa Leitura.

OS EDITORES

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O Retrato de um Mito


Karl era o mais velho dos oito filhos (cinco meninas e três meninos) de uma família estabelecida em Trier, numa casa burguesa cujo aspecto banal era similar ao de qualquer prefeitura ou escola primária provincianas. Seu pai, o advogado Heinrich Marx, filho de um antigo rabino da localidade, tinha conseguido criar para si uma sólida posição na Corte de Apelação da cidade. A mãe, pertencente a uma antiga família de rabinos holandeses, é vista pelos historiadores como um espírito prosaico, pouco dotada para a controvérsia e sempre disposta a recordar aos oradores da família as realidades domésticas. Um dia, será desaprovada — dir-se-á que foi inconveniente — essa sua reflexão irônica: “Filho, em vez de escrever sobre o Capital, seria melhor que você arranjasse algum”. Heinrich Marx era, pelo contrário, um espírito brilhante e liberal, apaixonado pelo jogo das idéias e cuja influência sobre o filho foi certamente muito grande. Ou pelo menos tão grande quanto o caráter do jovem Marx permitia.

[...] Foi um estudante como todos os outros, incluindo a habitual tendência aos versos românticos. Um estudante talvez um pouco mais aplicado do que os outros tanto ao trabalho como às diversões, e que passava repentinamente da vigília estudiosa à balbúrdia noturna. Escreveu poemas em que as moças, com o vestido banhado em lágrimas, morriam de amor sob as estrelas impassíveis, enquanto os cavalheiros incompreendidos suicidavam-se na igreja, durante o casamento da amada infiel... Mas esses repentes de febre sentimental, curados com cerveja, em breve desapareceram. O jovem Marx não tinha vocação para a lírica... Depois de um ano de sonhos infrutíferos na Universidade de Bonn, renunciou a soluçar com a literatura do seu século e entrou na Universidade de Berlim. Mas foi na de Jena que obteve, por fim, o título de Doutor em Filosofia... A violência natural do seu temperamento mudou de direção, elevou-se e passou dos adornos da ficção novelesca ao plano superior das idéias. Marx já era então o que seria até o final: combativo, seguro da sua própria capacidade intelectual como lógico realista propenso à ironia, e animado pela inquebrantável convicção de que o seu único dever era o de “trabalhar pelo bem da Humanidade”, como havia escrito aos quinze anos nas Reflexões de um jovem diante da escolha da carreira.

[...] É então que chega a luz para o jovem Marx, sob a forma glacial da filosofia de Georg Wilhelm Friedrich Hegel, mestre da dialética, ex-seminarista luterano de Tübingen e refinado artífice de uma doutrina hiper-intelectualista. Uma doutrina que começa abordando o próprio princípio da Idéia, cujo desenvolvimento através das contradições da História constituiria a realidade de todas as coisas. A célebre “dialética” de Hegel consiste em conciliar uma afirmação e a sua subseqüente negação na unidade superior da síntese. Um exemplo: a idéia de “ser” introduz a de “não-ser” ou “nada”, e estas duas idéias contraditórias formam juntas a noção de “devir”.

[...] O método hegeliano havia proporcionado a Karl Marx a ferramenta de que o seu pensamento precisava. A crueldade da “condição proletária” deixou-o indignado, centuplicou a sua vontade de agir e converteu o jovem pensador, apaixonado pela especulação filosófica, no general revolucionário mais conseqüente e temível de todos os tempos. O marxismo nascente seria uma mistura explosiva de lógica e indignação. Estava pronta a armação da sua máquina de guerra contra o mundo da ganância. A anarquia glutona da sociedade da época indicava-lhe o inimigo: o “capitalismo burguês”; as suas tropas: o proletariado; o campo de batalha: a mina, a fábrica, a oficina, todos os lugares de trabalho e de miséria nas cidades e nos campos.

[...] O destino proporcionou-lhe um inestimável aliado na pessoa do jovem Friedrich Engels, nascido em 1820 numa rica família industrial de Bremen. Tratava-se de um espírito agudo, tão hábil para os negócios como ágil nas decisões políticas; um elegante personagem que seria como um fiel Saint-Just para esse novo Robespierre, um Saint-Just previsor que salvaria o amigo da miséria e sustentaria até o fim a desastrosa economia doméstica do teórico da Economia Universal.

[...] Numerosos textos políticos trarão a assinatura conjunta dos dois amigos, sem que hoje seja possível distinguir qual foi a contribuição de cada um para a obra comum. Redigem conjuntamente o famoso Manifesto do Partido Comunista, cuja publicação coincide com a revolução de 1848, e que contém os principais traços de sua doutrina.

[...] A fama do doutrinário estende-se muito além dos círculos revolucionários, mas os seus êxitos respeitáveis não suavizam nem o seu caráter, nem a dureza das suas réplicas. Não discute: maneja os argumentos como um bloco, esmaga quem o contradiga e vai embora, sacudindo a cabeleira. As celebridades têm menos facilidade para se aproximar dele do que os operários.

[...] Era um carniceiro que devorava sobretudo papel. Em Londres, onde passou a maior parte dos seus últimos trinta anos, indo de um bairro a outro conforme o estado dos seus recursos, da paciência dos proprietários e das amistosas subvenções de Engels, escreve a sua obra mais importante, O Capital, usando frases complexas, enroladas como molas e sem se preocupar com a conclusão. O ponto crucial da abordagem é a teoria segundo a qual o trabalho, como qualquer outra mercadoria, tem o seu valor determinado pelas necessidades do operário, e o excedente constitui a “mais-valia”, cujo benefício reverte ao capital.

[...] A maioria dos marxistas não conhece O Capital melhor do que os católicos conhecem a Suma Teológica de São Tomás de Aquino. O pensamento de Marx, que também parece proceder da indústria pesada, deixou um método qualificado pomposamente de científico e um catecismo revolucionário que deram a volta ao mundo. Mas as teorias filosófico-econômicas tiradas do marxismo foram em todo lugar refutadas pelos fatos e não deram bons resultados em lugar nenhum. Apesar da abolição da propriedade privada — final simbólico da “exploração do homem pelo homem” — nos países socialistas, e do extermínio direto ou indireto de milhões de seres humanos, sacrificados em nome — ou por causa — da “ideologia” do Partido, ninguém viveu, nem sequer por um só dia, o ideal da sociedade sem classes. Nenhum povo da Terra passou-se para o comunismo pelo efeito da lógica marxista, e todos os que viveram essa experiência foram obrigados a isso pela força das armas, ao amparo de duas Guerras Mundiais. E à desgraça doutrinal deve-se acrescentar o fato de que o marxismo — ao fazer com que os governos “burgueses” se vissem forçados a finalmente elaborar uma política social, que foi com freqüência eficaz — acabou contribuindo para a consolidação do capitalismo.

Karl Marx queria sinceramente a libertação da Humanidade, mas os seus seguidores a aprisionaram num totalitarismo sem precedentes; queria um Homem novo, mas o Homem novo surgiu com a mente de um comissário político; pensava que a “ditadura do proletariado” duraria algumas semanas, mas ela se manteve por setenta anos. Pode dizer-se que Marx tinha previsto tudo, menos o marxismo, que — como se fosse um sacramento das trevas — em toda parte produziu o contrário do que significava.

A razão troveja em sua cratera”, dizia o magnífico canto da classe operária. Hoje não se vê nada além da cratera na qual ficou sepultada a pátria do socialismo e, com ela, umas esperanças traídas.

André Frossard, Les grands bergers: d´Abraham a Karl Marx, Paris, 1992.

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A voz da Igreja: a Ideología Vermeha

1. SOBRE O COMUNISMO. A doutrina comunista de modo muito mais acentuado que outros sistemas semelhantes do passado, apresenta-se sob a máscara de redenção dos humildes. É um pseudo-ideal de justiça, de igualdade e de fraternidade universal que impregna toda a sua doutrina e toda a sua atividade dum misticismo hipócrita, às multidões seduzidas por promessas falazes e como que estimuladas por um contágio violentíssimo lhes comunica um ardor e entusiasmo irreprimível, o que é muito mais fácil em nossos dias, em que a pouco eqüitativa repartição dos bens deste mundo dá como conseqüência a miséria anormal de muitos. Proclamam com orgulho e exaltam até esse pseudo-ideal, como se dele se tivesse originado o progresso econômico, o qual, quando em alguma parte é real, tem explicação em causas muito diversas, como, por exemplo, a intensificação da produção industrial, introduzida em regiões que antes nada disso possuíam, a valorização de enormes riquezas naturais, exploradas com imensos lucros, sem o menor respeito dos direitos humanos, o emprego enfim da coação brutal que dura e cruelmente força os operários a pesadíssimos trabalhos com um salário de miséria.

2. MATERIALISTA. Ora, esta doutrina sob aparências capciosas e sedutoras, funda-se de fato nos princípios do materialismo chamado dialético e histórico, ensinado por Karl Marx, de que os teóricos do bolchevismo se gloriam de possuir a única interpretação genuína. Essa doutrina proclama que não há mais que uma só realidade universal, a matéria, formada por forças cegas e ocultas, que, através da sua evolução natural, se vai transformando em planta, em animal, em homem. Do mesmo modo, a sociedade humana, dizem, não é outra coisa mais do que uma aparência ou forma da matéria, que vai evoluindo, como fica dito, e por uma necessidade inelutável e um perpétuo conflito de forças, vai pendendo para a síntese final: uma sociedade sem classes. É, pois, evidente que neste sistema não há lugar sequer para a idéia de Deus; é evidente que entre espírito e matéria, entre alma e corpo não há diferença alguma; que a alma não sobrevive depois da morte, nem há outra vida depois desta. Além disso, os comunistas, insistindo no método dialético do seu materialismo, pretendem que o conflito pode ser acelerado pelos homens. É por isso que se esforçam por tornarem mais agudos os antagonismos que surgem entre as várias classes da sociedade.

3. O HOMEM, UMA RODA DA ENGRENAGEM. O comunismo despoja o homem da sua liberdade na qual consiste a norma da sua vida espiritual; e ao mesmo tempo priva a pessoa humana da sua dignidade, e de todo o freio na ordem moral, com que possa resistir aos assaltos do instinto cego. E, como a pessoa humana, segundo os devaneios comunistas, não é mais do que, para assim dizermos, uma roda de toda a engrenagem, segue-se que os direitos naturais, que dela procedem, são negados ao homem indivíduo, para serem atribuídos à coletividade... Nem aos indivíduos se concede direito algum de propriedade sobre bens naturais ou sobre meios de produção; porquanto, dando como dão origem a outros bens, a sua posse introduz necessariamente o domínio de um sobre os outros. E é precisamente por esse motivo que afirmam que qualquer direito de propriedade privada, por ser a fonte principal da escravidão econômica, tem que ser radicalmente destruído.

4. O LIBERALISMO PREPAROU SEU CAMINHO. Mas, para mais facilmente se compreender como é que puderam conseguir que tantos operários tenham abraçado, sem o menor exame, os seus sofismas, será conveniente recordar que os mesmos operários, em virtude dos princípios do liberalismo econômico, tinham sido lamentavelmente reduzidos ao abandono da religião e da moral cristã. Muitas vezes o trabalho por turnos impediu até que eles observassem os mais graves deveres religiosos dos dias festivos; não houve o cuidado de construir igrejas nas proximidades das fábricas, nem de facilitar a missão do sacerdote; antes pelo contrário, em vez de se lhes pôr embargo, cada dia mais e mais se foram favorecendo as manobras do chamado laicismo.

PAPA PIO XI, Divini Redemptoris, Nos. 8 - 10 e 16,
Roma, 19 de Março de 1937.

5. CONCEPÇÃO TOTALIZANTE. O pensamento de Marx constitui uma concepção totalizante do mundo, na qual numerosos dados de observação e análise descritiva são integrados numa estrutura folosófico-ideológica, que determina a significação e importância relativa que se lhes atribui. Os a priori ideológicos são pressupostos para a leitura da realidade social. Assim, a dissociação dos elementos heterogêneos que compõem este amalgama, epistemologicamente híbrido, torna-se impossível, de modo que, acreditando aceitar somente o que se apresenta como análise, se é forçado a aceitar, ao mesmo tempo, a ideologia.
A advertência de Paulo VI (na Octagesima adveniens de 1971) continua hoje plenamente atual: ..."seria ilusório e perigoso chegar ao ponto de esquecer o vínculo estreito que os liga radicalmente, aceitar elementos da análise marxista sem reconhecer suas relações com a ideologia, entrar na prática da luta de classes e de sua interpretação sem tentar perceber o tipo de sociedade totalitária à qual este processo conduz".

6. INCOMPATIBILIDADE. Desde as origens o pensamento marxista se diversificou, dando origem a diversas correntes que divergem consideravelmente entre si. Na medida, porém, em que se mantêm verdadeiramente marxistas, estas correntes continuam vinculadas a um certo número de teses fundamentais que não são compatíveis com a concepção cristã do homem e da sociedade.

7. LUTA DE CLASSES. Na lógica do pensamento marxista, a "análise" não é dissociável da práxis e da concepção da historia à qual esta práxis está ligada. A análise é, pois, um instrumento da crítica, e a crítica não passa de uma etapa do combate revolucionário. Este combate é o da classe do Proletariado investido de sua missão histórica. Em conseqüência, somente quem participa deste combate pode fazer uma análise correta.
A consciência verdadeira é, pois, uma consciência "partidarista". Pelo que se vê é a própria concepção de verdade que aqui está em causa e que se encontra totalmente subvertida: não existe verdade - afirma-se - a não ser na e pela práxis "partidarista".
A práxis e a verdade, que dela deriva, são partidaristas porque a estrutura fundamental da história está marcada pela luta de classes... A lei fundamental da história, que é a lei da luta de classes, implica que a sociedade esteja fundada sobre a violência. À violência, que constitui a relação de dominação dos ricos sobre os pobres, deverá responder a contraviolência revolucionária, mediante a qual esta relação será invertida. A luta de classes é, pois, apresentada como uma lei objetiva e necessária. Ao entrar nno seu processo, do lado dos oprimidos, "faz-se" a verdade, age-se "cientificamente"... A luta de classes assume um caráter de globalidade e de universalidade. Ela se reflete em todos os domínios da existência. Em relação a esta lei, nenhum destes domínios é autônomo.

CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ, Instrução Libertatis Nuntius,
Roma, 6 de Agosto de 1984.

8. INEFICÁCIA DO SISTEMA. Dentre os numerosos fatores que concorreram para a queda (do socialismo real) ... um é com certeza a ineficácia do sistema econômico, que não deve ser considerada apenas como um problema técnico, mas sobretudo como consequência da violação dos direitos humanos à iniciativa, à propriedade e à liberdade no setor da economia. A este aspecto, está ainda associada a dimensão cultural e nacional: não é possível compreender o homem, partindo unilateralmente do setor da economia, nem ele pode ser definido simplesmente com base na sua inserção de classe. A compreensão do homem torna-se mais exaustiva, se o virmos enquadrado na esfera da cultura, através da linguagem, da história e das posições que ele adota diante dos acontecimentos fundamentais da existência, tais como o nascimento, o amor, o trabalho, a morte. No centro de cada cultura, está o comportamento que o homem assume diante do mistério maior: o mistério de Deus. As culturas das diversas Nações constituem fundamentalmente modos diferentes de enfrentar a questão sobre o sentido da existência pessoal: quando esta questão é eliminada, corrompem-se a cultura e a vida moral das Nações. Por isso, a luta pela defesa do trabalho une-se espontaneamente a esta, a favor da cultura e dos direitos nacionais. A verdadeira causa das mudanças, porém, está no vazio espiritual provocado pelo ateísmo, que deixou as jovens gerações privadas de orientação e induziu-as em diversos casos, devido à irreprimível busca da própria identidade e do sentido da vida, a redescobrir as raízes religiosas da cultura das suas Nações e a própria Pessoa de Cristo, como resposta existencialmente adequada ao desejo de bem, de verdade, e de vida que mora no coração de cada homem. Esta procura encontrou guia e apoio no testemunho de quantos, em circunstâncias difíceis e até na perseguição, permaneceram fiéis a Deus. O marxismo tinha prometido desenraizar do coração do homem a necessidade de Deus, mas os resultados demonstram que não é possível consegui-lo sem desordenar o coração.

PAPA JÕAO PAULO II, Centesimus Annus, No. 23,
Roma, 1 de Maio de 1991.

9. UMA CRÍTICA JUSTA. O século XIX não perdeu a sua fé no progresso como nova forma da esperança humana... Todavia a evolução sempre mais rápida do progresso técnico e a industrialização com ele relacionada criaram, bem depressa, uma situação social completamente nova: formou-se a classe dos trabalhadores da indústria e o chamado "proletariado industrial", cujas terríveis condições de vida foram ilustradas de modo impressionante por Frederico Engels, em 1845. Ao leitor, devia resultar claro que isto não pode continuar; é necessária uma mudança. Mas a mudança haveria de abalar e derrubar toda a estrutura da sociedade burguesa. Depois da revolução burguesa de 1789, tinha chegado a hora para uma nova revolução: a proletária. O progresso não podia limitar-se a avançar de forma linear e com pequenos passos. Urgia o salto revolucionário. Karl Marx recolheu este apelo do momento e, com vigor de linguagem e de pensamento, procurou iniciar este novo passo grande e, como supunha, definitivo da história rumo à salvação, rumo àquilo que Kant tinha qualificado como o "reino de Deus". Tendo-se diluída a verdade do além, tratar-se-ia agora de estabelecer a verdade de aquém. A crítica do céu transforma-se na crítica da terra, a crítica da teologia na crítica da política. O progresso rumo ao melhor, rumo ao mundo definitivamente bom, já não vem simplesmente da ciência, mas da política – de uma política pensada cientificamente, que sabe reconhecer a estrutura da história e da sociedade, indicando assim a estrada da revolução, da mudança de todas as coisas. Com pontual precisão, embora de forma unilateralmente parcial, Marx descreveu a situação do seu tempo e ilustrou, com grande capacidade analítica, as vias para a revolução. E não só teoricamente, pois com o partido comunista, nascido do Manifesto Comunista de 1848, também a iniciou concretamente. A sua promessa, graças à agudeza das análises e à clara indicação dos instrumentos para a mudança radical, fascinou e não cessa de fascinar ainda hoje. E a revolução deu-se, depois, na forma mais radical na Rússia.

10. SEU ERRO. Com a sua vitória, porém, tornou-se evidente também o erro fundamental de Marx. Ele indicou com exatidão o modo como realizar o derrubamento. Mas, não nos disse, como as coisas deveriam proceder depois. Ele supunha simplesmente que, com a expropriação da classe dominante, a queda do poder político e a socialização dos meios de produção, ter-se-ia realizado a Nova Jerusalém. Com efeito, então ficariam anuladas todas as contradições; o homem e o mundo haveriam finalmente de ver claro em si próprios. Então tudo poderia proceder espontaneamente pelo reto caminho, porque tudo pertenceria a todos e todos haviam de querer o melhor um para o outro. Assim, depois de cumprida a revolução, Lenin deu-se conta de que, nos escritos do mestre, não se achava qualquer indicação sobre o modo como proceder. É verdade que ele tinha falado da fase intermédia da ditadura do proletariado como de uma necessidade que, porém, num segundo momento ela mesma se demonstraria caduca. Esta "fase intermédia" conhecemo-la muito bem e sabemos também como depois evoluiu, não dando à luz o mundo sadio, mas deixando atrás de si uma destruição desoladora. Marx não falhou só ao deixar de idealizar os ordenamentos necessários para o mundo novo; com efeito, já não deveria haver mais necessidade deles. O fato de não dizer nada sobre isso é lógica consequência da sua perspectiva. O seu erro situa-se numa profundidade maior. Ele esqueceu que o homem permanece sempre homem. Esqueceu o homem e a sua liberdade. Esqueceu que a liberdade permanece sempre liberdade, inclusive para o mal. Pensava que, uma vez colocada em ordem a economia, tudo se arranjaria. O seu verdadeiro erro é o materialismo: de fato, o homem não é só o produto de condições econômicas nem se pode curá-lo apenas do exterior criando condições econômicas favoráveis.

PAPA BENTO XVI, Spe salvi, Nos. 20 e 21,
Roma, 30 de Novembro de 2007.

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Alma não teve Stalin: teve história

O partido sempre tem a razão
Leão Trotski


Enquanto eu leio em México, quantas horas
são em Moscou? Já é tarde, sempre é tarde,
sempre na história é noite e é fora de hora.

Solyenitzin escreve, o papel arde
sua escrita avança, cruel aurora
sobre planaltos cheios de ossos.

Fui covarde,
não vi de frente o mal...
O mal? um par
de olhos sem face, um repleto vazio.

O mal: um alguém ninguém, um algo nada.

Stalin teve face? A suspeita
lhe comeu a face e alma e alvedrio.

Povoou o medo sua noite desalmada,
seu insônio deixo Rússia despovoada.

*

Alma não teve Stalin: teve história.
Desabitado Marechal sem face,
servidor do nada. Se disfarça
o mal: a larva é César já. Vitória
de um fantasma: designa sua memória
seu vazio. O nada é grande avarento
dos ninguém. E os outros? Se desvela
o mal: o mesmo irreal combinatório
baralho para todos. Circular a pena,
a culpa circular: desenrolando
o carretel, a história os despena.
Discurso é uma faca congelada:

Dialética, sangrento solipsismo
que inventou o inimigo de si mesmo.

OCTAVIO PAZ, poema Aunque es de Noche, do livro Arbol Adentro,
Cidade do México, 1988.

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A esquerda em Processo

O texto, do atual ministro de Justiça, não representa a opinião do Nuec, porém, consideramos que é relevante para compreender a atuação de algumas esquerdas no poder na América Latina, e em especial, no Brasil.

Há muitos anos venho escrevendo a respeito dos dilemas que envolvem as ideologias da esquerda contemporânea e as amargas heranças das experiências socialistas do nosso tempo.

[...] Os nossos grandes fracassos estiveram ligados diretamente à implantação do "modo de produção socialista", que, segundo Marx, determinaria a socialização da riqueza e da abastança. Na vida real, essas experiências terminaram pervertendo-se em formas ditatoriais de redistribuir a pobreza. A consequência dessa redistribuição foi, por exemplo, o retorno ao capitalismo (URSS), a estagnação ditatorial (Coréia) ou o império da barbárie depois da queda (Afeganistão). O retorno ao capitalismo na antiga URSS resolveu os problemas das liberdades políticas, mas nenhum dos problemas sociais e de caráter nacional. Tornaram-se sociedades mais civilizadas e mais democráticas aquelas que realizaram um reformismo "forte", promovendo profundas transformações econômicas, culturais e no modo de vida dos cidadãos comuns.

As disputas que estão ocorrendo sobre os rumos do governo Lula estão relacionadas com o juízo sobre esses fracassos, que não são somente fracassos da "prática" socialista, mas também denunciam as limitações do aparato teórico que acompanhou o movimento socialista. Este combinava a visão do messianismo proletário, contida em algumas obras de Marx, com a simplificação maniqueísta da sua rica elaboração teórica. Esta, empobrecida tanto pelo marxismo soviético na sua visão stalinista, como pelo trotskismo rebelde, cujo aparato conceitual era também derivado do "leninismo".

Lênin, ao estudar melhor Hegel, já afirmara que preferia o idealismo inteligente ao materialismo burro. A designação, aliás, de uma "nova fase do marxismo" como "leninismo" foi feita pelo próprio Stálin, que a forjou, contra a visão do líder bolchevique. O nosso conflito hoje no partido, evidentemente, não é esse. Mas não pode deixar de ser qualificado como um conflito da parte minoritária do PT, que apresenta como "utilizável" -em diversos níveis- o velho legado bolchevique, com os que consideram-no superado, em diversas gradações (pela vida, pela economia, pelas novas formas de constituição da subjetividade social, mesmo no capitalismo turbinado da era Bush).

Passemos a exemplos concretos das nossas diferenças. O governo nega-se a criar condições políticas para o rompimento da vasta frente que elegeu Lula e modula cautelosamente os seus movimentos. Quer dar finalidade estratégica a essa frente, porque entende que qualquer movimento que o leve ao isolamento tanto pode promover o retrocesso, como favorecer o populismo, sempre à espreita, com as soluções mágicas e caudilhescas.

Nesse sentido, o partido se nega a ser "vanguardista", tipo bolchevique, para promover a aceleração da luta de interesses, mas quer conciliá-los através de um acordo com sentido policlassista. O objetivo é criar condições para enfrentar o domínio global do capitalismo especulativo, que desarma políticas econômicas, ataca moedas fracas e gera o caos e a instabilidade. Sem isso, qualquer projeto é impossível.

[...] Não é um partido que exacerba a luta de classes, porque essa exacerbação fragiliza o governo ante o domínio do capital financeiro globalizado: esta é a primeira e estratégica condição a ser assumida... Toda a esquerda, em escala mundial, está em processo de mudanças.

Tarso Genro, Esquerda em Processo, Petrópolis, 2004.

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OPINIÃO: A Tentação Totalitaria


A América Latina está adotando um rumo nitidamente esquerdista, com posições que retomam as experiências socialistas autoritárias e totalitárias do século 20. A única novidade consiste no ressurgimento da tentação totalitária, nada tendo que ver com o que alguns chamam de resgate da utopia. A realização da utopia se consubstanciou no totalitarismo. O que ocorre é que um certo setor da esquerda latino-americana, aí incluindo a brasileira, se está sentindo autorizado a imitar a experiência em curso. A diplomacia brasileira, por sua vez, está dando uma importante contribuição à confusão reinante ao velar o que está acontecendo naqueles países, como se neles a democracia estivesse sento respeitada. Contribuem, neste sentido, para as farsas diplomáticas de Hugo Chávez e Evo Morales.

A imagem de Evo Morales de mãos dadas com o presidente da teocracia iraniana, Mahmoud Ahmadinejad, mostra o quanto a tentação totalitária está ganhando amplitude global. O representante de um regime teocrático que chega a negar a ocorrência do Holocausto, que exerce controle absoluto de sua população, punindo e mesmo eliminando adversários, se torna um convidado especial e, inclusive, um modelo da luta “antiimperialista”, um homem “justo”, nas palavras de Chávez. Rafael Correa, do Equador, segue, agora, os passos do líder máximo venezuelano. Daniel Ortega, da Nicarágua, aguarda somente uma ocasião mais propícia internacionalmente para enveredar pelo mesmo caminho. Os vários tipos de tentações autoritárias e totalitárias, mais à esquerda ou mais à direita, parecem confluir num mesmo sumidouro que se alça à condição de realização de um sonho. A degradação da esquerda chega a tal ponto que um regime como o iraniano, de corte mais propriamente fascista, é considerado de esquerda.

Devemos evitar o equívoco de considerar o que está ocorrendo nessas regiões da América Latina como se fosse um mero ressurgimento do populismo... O fenômeno em curso é diferente, pois se trata do projeto marxista de estabelecimento de uma sociedade socialista, dita eufemisticamente “socialismo do século 21”. O que, sim, se pode dizer é que o projeto socialista se utiliza da tradição populista vigente, aproveitando-a para seus propósitos específicos.

A tradição marxista internacional tem, basicamente, dois grandes modelos: a via leninista e a via gramsciana, a primeira também dita oriental e a segunda, ocidental. A via leninista emprega diretamente a violência revolucionária mediante a sublevação popular-partidária, destruindo imediatamente as instituições vigentes, estabelecendo um regime de partido único e abolindo a propriedade privada, o Estado de Direito e a economia de mercado. A estatização dos meios de produção - e da sociedade - se torna o seu objetivo primeiro. Ela surge, basicamente, em países sem nenhuma ou pouca tradição democrática e com pequena experiência da propriedade privada, como a Rússia. A via gramsciana é também dita ocidental por se apropriar das instituições democráticas e por fazer aparentemente o jogo do Estado de Direito, mantendo, num primeiro momento, alguns setores econômicos sob a economia de mercado, embora altamente controlada. Num segundo momento, envereda para a estatização de setores ditos “estratégicos”. Eis por que ela oferece a imagem de ser “democrática” ao utilizar as regras da democracia para abolir precisamente esse regime político.

Chávez, por exemplo, está claramente eliminando a democracia por intermédio (1) da submissão do Judiciário; (2) do Parlamento, que se torna órgão auxiliar do Executivo, pois o ditador-presidente passará a legislar por decreto, unindo a função executiva com a legislativa - ele é ungido à posição de um senhor que tudo sabe, não precisando consultar ninguém; (3) do fechamento de uma rede de televisão, anunciando o que fará com a liberdade de imprensa; (4) de assegurar a sua vitaliciedade no poder mediante o mecanismo da reeleição indefinida, assumindo a posição que era a dos secretários dos ex-partidos comunistas no poder, como Stalin, Mao ou Fidel; (5) da criação de um partido único de esquerda, prenúncio de um único partido futuro.

Digna de nota é a repetição em todos esses países da criação de Assembléias Constituintes, que têm como objetivo estabelecer uma relação direta do líder máximo com as massas, de modo a controlar o que se torna um pseudomecanismo parlamentar. O Legislativo desaparece enquanto Poder. Hugo Chávez utiliza-se desse mecanismo, Evo Morales segue os seus passos e Rafael Correa imita a mesma via. Em nome de uma suposta “soberania popular”, eles caminham rapidamente para abolir a representação política e as liberdades democráticas em geral. Utilizam, portanto, uma instituição democrática para suprimir a própria democracia.

O governo Lula e o Partido dos Trabalhadores (PT) não são imunes a essa tentação. Diria que setores importantes do partido se sentem atraídos a enveredar por esse caminho. Praticamente todas as tendências petistas sempre defenderam o governo Chávez e algumas claramente o erigiram em modelo. O mesmo se pode dizer da defesa do socialismo indígena de Evo Morales. Alguns dirigentes chegaram mesmo a defender as medidas tomadas contra a Petrobrás, como se os interesses brasileiros fossem, para eles, secundários. Mais recentemente, o assessor especial da Presidência e ex-presidente do PT Marco Aurélio Garcia, aparentemente um moderado no espectro petista, chegou a declarar que o golpe chavista da reeleição indefinida e outras medidas tomadas na Venezuela constituíam um “aprofundamento da democracia”. Faltou acrescentar: “da democracia totalitária”.

Denis Lerrer Rosenfield, Filósofo e Professor da Universidade Federal de Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Janeiro de 2007.

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domingo, 26 de outubro de 2008

PORTICO: A Universidade e a procura da Verdade


A Universidade é um fruto maduro do cristianismo. Instituição aberta, livre e universal, gerada no seio da Igreja durante a Idade Média, época - segundo Jacques Le Goff – de luz, não de trevas. Hoje ela dista muito de estar pautada pelo ideal que lhe fez nascer: a apaixonada e sistemática procura da Verdade. Sua natureza e missão são deturpadas pela “educação” ideológica, a intolerância do pensamento único e do politicamente correto. Quem afirma ter convicção da existência de uma verdade objetiva muitas vezes é marginalizado e ridicularizado. Em janeiro deste ano vivemos um caso sintomático: Bento XVI, quem para Jürgen Habermas é um dos homens mais brilhantes do nosso tempo, foi impedido de falar na Universidade de Roma por alunos e professores que contradizem o verdadeiro espírito universitário. Para alimentar a reflexão sobre o que realmente deve ser nossa Universidade apresentamos nesta edição parte central do discurso que o Papa diria naquela ocasião em La Sapienza, assim como o fragmento do clássico Idea of University, do Cardeal John Henry Newman; junta-se a eles um atualíssimo ensaio do crítico literário Otto Maria Carpeaux sobre a crise das universidades escrito… há mais de 60 anos. Boa Leitura.

OS EDITORES

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Um discurso silenciado sobre a vocação da Universidade

A imagem ao lado é do cartaz com o qual universitarios chamaram a barrar a visita do Papa Bento XVI à Universidade de La Sapienza, em Roma, por considerar que ele é "contra a Universidade". Leia e julge.

Para mim é motivo de profunda alegria encontrar a comunidade de “La Sapienza”, universidade de Roma, por ocasião da inauguração do ano acadêmico... Desejo muito, nesta circunstância, expressar minha gratidão pelo convite que me foi dirigido de vir à vossa universidade para vos dar uma aula. Diante desta perspectiva, fiz-me antes de mais nada uma pergunta: o que pode e deve dizer um Papa numa ocasião como esta? Na minha aula em Ratisbona falei, sim, como Papa, mas principalmente falei no meu papel de ex-professor daquela minha universidade, procurando entrelaçar recordações e atualidade. Na universidade “La Sapienza”, a antiga universidade de Roma, porém, fui convidado justamente como Bispo de Roma, e por isso devo falar como tal. Certamente, “La Sapienza” foi no passado a universidade do Papa, mas hoje é uma universidade laica, com aquela autonomia que, com base em seu próprio conceito fundacional, sempre fez parte da natureza de universidade, a qual deve estar ligada exclusivamente à autoridade da verdade. É na sua liberdade de autoridades políticas e eclesiásticas que a universidade encontra a sua função particular, justamente em vista da sociedade moderna, que precisa de uma instituição desse tipo.

O que é a universidade? Qual é a sua missão? É uma questão colossal, à qual mais uma vez me é possível tentar responder, em estilo quase telegráfico, com algumas observações. Penso que se possa afirmar que a verdadeira e íntima origem da universidade esteja na sede de conhecimento, que é própria do homem. Este quer saber o que é tudo aquilo que o circunda. Quer a verdade. Neste sentido, podemos ver o questionar-se de Sócrates como o impulso do qual nasceu a universidade ocidental. Penso, por exemplo para mencionar somente um texto na disputa com Eutifrone, que diante de Sócrates defende a religião mítica e a sua devoção. A isto, Sócrates contrapõe a pergunta: "Tu acreditas que entre os deuses exista realmente uma guerra recíproca e terríveis inimizades e combates... Teremos nós, Eutifrone, de afirmar que tudo isto é verdade?". Nesta pergunta, aparentemente pouco devota mas que, em Sócrates, derivava de uma religiosidade mais profunda e mais pura, ou seja, da busca do Deus verdadeiramente divino, os cristãos dos primeiros séculos reconheceram-se a si mesmos e ao seu caminho. Acolheram a sua fé não de forma positivista, ou como a via de fuga de desejos não realizados; compreenderam-na como uma diluição da neblina da religião mitológica para deixar espaço à descoberta daquele Deus que é Razão criadora e, ao mesmo tempo, Razão-Amor. Por isso, o interrogar-se da razão sobre o Deus maior e também sobre a verdadeira natureza e o autêntico sentido do ser humano era, para eles, não uma forma problemática de falta de religiosidade, mas fazia parte da essência do seu modo de ser religiosos. Por conseguinte, eles não tinham necessidade de diluir ou abandonar o questionar-se socrático, mas podiam, aliás deviam, acolhê-lo e reconhecer como parte da sua própria identidade a árdua busca da razão para alcançar o conhecimento da verdade inteira. Assim podia, aliás devia, no âmbito da fé cristã, no mundo cristão, nascer a universidade.

É necessário dar mais um passo. O homem quer conhecer; quer a verdade. Esta é primariamente algo que diz respeito ao ver, ao compreender, à theoría, como a denomina a tradição grega. Mas, a verdade nunca é apenas teórica... Mas, verdade significa mais do que saber: o conhecimento da verdade tem como finalidade o conhecimento do bem. Este é também o sentido do questionar-se socrático: Qual é o bem que nos torna verdadeiros? A verdade torna-nos bons, e a bondade é verdadeira: tal é o optimismo que vive na fé cristã, porque a esta foi concedida a visão do Logos, da Razão criadora que, na encarnação de Deus, se revelou conjuntamente como o Bem, como a própria Bondade.

Na teologia medieval, houve uma disputa profunda sobre a relação entre teoria e prática, sobre a justa relação entre conhecer e agir uma disputa que não cabe aqui desenvolver. Com efeito, a universidade medieval com as suas quatro Faculdades apresenta esta correlação. Comecemos pela Faculdade que, segundo a compreensão da época, era a quarta: a de Medicina. Não obstante fosse considerada mais como "arte" do que como ciência, todavia a sua inserção no cosmos da universitas significava claramente que estava colocada no âmbito da racionalidade, que a arte de curar se encontrava sob a guia da razão, subtraindo-se ao âmbito da magia. Curar é uma missão que exige sempre mais do que a simples razão, mas por isso mesmo precisa da conexão entre saber e poder, tem necessidade de pertencer ao campo da ratio.

Inevitavelmente levanta-se a questão da relação entre prática e teoria, entre conhecimento e agir, na Faculdade de Jurisprudência. Trata-se de atribuir a justa forma à liberdade humana, que é sempre liberdade na comunhão recíproca: o direito é o pressuposto da liberdade, e não o seu antagonista. Mas aqui levanta-se a questão: Como se individualizam os critérios de justiça que tornam possível uma liberdade vivida em conjunto e favorecem o ser bom do homem? Nesta altura, impõe-se dar um salto ao presente: É a questão do modo como se pode encontrar uma normativa jurídica que constitua um ordenamento da liberdade, da dignidade humana e dos direitos do homem. É a questão que nos ocupa hoje nos processos democráticos de formação da opinião e que, ao mesmo tempo, nos angustia porque problemática para o porvir da humanidade. Na minha opinião, Jürgen Habermas exprime um vasto consenso do pensamento contemporâneo, quando afirma que a legitimidade de uma carta constitucional, como pressuposto da legalidade, derivaria de duas fontes: da participação política igualitária de todos os cidadãos e da forma razoável como são resolvidos os contrastes políticos. A propósito da referida "forma razoável", observa ele que a mesma não pode ser somente uma luta por maiorias aritméticas, mas há-de caracterizar-se como um "processo de argumentação sensível à verdade" (wahrheitssensibles Argumentationsverfahren). É uma afirmação correcta, mas muito difícil de transformar em prática política. Os representantes daquele público "processo de argumentação" são predominantemente como sabemos os partidos enquanto responsáveis pela formação da vontade política. Com efeito, estes terão infalivelmente em vista sobretudo a consecução de maiorias e, por conseguinte, olharão de maneira quase inevitável pelos interesses que prometem satisfazer; mas, tais interesses muitas vezes são particulares e não favorecem verdadeiramente a comunidade. A sensibilidade pela verdade acaba incessantemente subjugada à sensibilidade pelos interesses. Julgo significativo o fato de que Habermas fale da sensibilidade pela verdade como de um elemento necessário no processo de argumentação política, voltando assim a inserir o conceito de verdade no debate filosófico e político.

[...] Ao lado da Faculdade de Jurisprudência, havia as Faculdades de Filosofia e de Teologia, às quais estava confiada a investigação sobre o ser homem na sua totalidade e, consequentemente, a missão de conservar viva a sensibilidade pela verdade. Poder-se-ia mesmo afirmar que o sentido permanente e autêntico das duas Faculdades é este: serem guardiães da sensibilidade pela verdade, não permitirem que o homem seja afastado da busca da verdade.

[...] Teologia e filosofia formam nisto um par de gêmeos peculiar, não podendo nenhuma das duas desligar-se totalmente da outra e, todavia, cada uma deve conservar a própria tarefa e identidade. É mérito histórico de Santo Tomás de Aquino face às diferentes respostas dos Padres, em virtude do seu contexto histórico ter evidenciado a autonomia da filosofia e, juntamente com ela, o direito e a responsabilidade própria da razão de se interrogar com base nas suas forças. Diferenciando-se das filosofias neoplatônicas, onde religião e filosofia se encontravam inseparavelmente entrelaçadas, os Padres tinham apresentado a fé cristã como a verdadeira filosofia, ressaltando ainda que esta fé corresponde às exigências da razão na sua busca da verdade; que a fé é o "sim" à verdade, comparativamente às religiões míticas que se tinham tornado uma simples rotina. Sucessivamente, porém, na época do nascimento da universidade, no Ocidente já não existiam aquelas religiões mas somente o cristianismo, e assim era necessário ressaltar novamente a responsabilidade própria da razão, de modo que não fosse absorvida pela fé. Santo Tomás interveio num momento privilegiado: pela primeira vez, os escritos filosóficos de Aristóteles tornaram-se acessíveis na sua integridade; estavam presentes as filosofias hebraicas e árabes enquanto específicas apropriações e prolongamentos da filosofia grega... a Faculdade de Filosofia, que até então tinha sido somente propedêutica à teologia, tornou-se agora uma verdadeira e própria Faculdade, um parceiro autônomo da teologia e da fé nela refletida... Diria que a ideia de Santo Tomás acerca da relação entre filosofia e teologia poderia ser expressa pela fórmula encontrada pelo Concílio de Calcedônia para a cristologia: filosofia e teologia devem relacionar-se entre si "sem confusão e sem separação".

[...] Pois bem, até agora falei somente da universidade medieval, procurando contudo deixar transparecer a natureza permanente da universidade e da sua missão. Nos tempos modernos, abriram-se novas dimensões do saber, que, na universidade, são valorizadas, sobretudo em dois grandes âmbitos: em primeiro lugar, nas ciências naturais, que se desenvolveram com fundamento na conexão de experiência com a pressuposta racionalidade da matéria; em segundo lugar, nas ciências históricas e humanistas, nas quais o homem, perscrutando o espelho da sua história e esclarecendo as dimensões da sua natureza, procura compreender-se melhor a si mesmo... No entanto, o caminho do homem jamais pode dizer-se completo, e o perigo de cair na desumanidade nunca está esconjurado de todo: como se vê no panorama da história atual! O perigo do mundo ocidental para falar somente dele é que o homem hoje, precisamente à vista da grandeza do seu saber e do seu poder, desista diante da questão da verdade; significando isto ao mesmo tempo que, no fim de contas, a razão cede face à pressão dos interesses e à atração da utilidade, obrigada a reconhecê-la como critério derradeiro. Dito do ponto de vista da estrutura da universidade: existe o perigo de que a filosofia, deixando de se sentir à altura da sua autêntica missão, se degrade em positivismo; que a teologia, com a sua mensagem dirigida à razão, seja confinada na esfera privada de um grupo mais ou menos numeroso. Mas, se a razão ciosa da sua presumida pureza se torna surda à grande mensagem que lhe chega da fé cristã e da sua sabedoria, seca como uma árvore cujas raízes já não chegam às águas que lhes dão vida. Perde a coragem pela verdade; e deste modo não fica maior, mas menor... Aplicado à nossa cultura... isto significa: se ela quiser autoconstruir-se unicamente com base no círculo das suas próprias argumentações e naquilo que de momento a convence e preocupada com a sua laicidade se separa das raízes de que vive, então não se torna mais razoável nem mais pura, mas desagrega-se e fragmenta-se.

PAPA BENTO XVI, o texto seria lido durante a visita à Universidade de Roma "La Sapienza", prevista para o dia 17 de Janeiro de 2008 e que foi cancelada dois dias antes.

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