domingo, 9 de novembro de 2008

PORTICO: O Materialismo Totalitário


Marx e o marxismo mudaram a face do mundo. Um dos maiores impérios da história -erigido sobre as idéias do filósofo alemão- surgiu e ruiu em menos de um século. A potência de concreto e ferro entrou em colapso, o muro caiu. Porém, o marxismo não morreu. É só passear nas aulas universitárias para ouvi-lo e vê-lo. Ele sobreviveu. Esta inspirando os socialismos liberais, ou democráticos, ou bolivarianos, ou rosas, de boa parte da América Latina e Europa, sem falar da China. Apresentamo-lhes neste número os traços do homem Marx retratado pela aguda perspectiva do jornalista André Frossard, cujo pai foi fundador e chefe do Partido Comunista Francês. Uma avaliação crítica desta ideologia totalizadora é oferecida numa seleção de textos do Magistério. Do intelectual mexicano Otavio Paz -ex defensor do comunismo e Nobel de Literatura de 1990- é o belo poema sobre o mal e a ditadura stalinista. Entre textos encontra-se um do atual ministro de Justiça Tarso Genro, não concordamos com sua posição ideológica, mas consideramos sua análise singularmente relevante para entender a esquerda no poder. Para concluir, oferecemos a opinião sobre os socialismos latino-americanos desde a ótica do filosofo do brasileiro Denis Lerrer Rosenfield.
Boa Leitura.

OS EDITORES

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O Retrato de um Mito


Karl era o mais velho dos oito filhos (cinco meninas e três meninos) de uma família estabelecida em Trier, numa casa burguesa cujo aspecto banal era similar ao de qualquer prefeitura ou escola primária provincianas. Seu pai, o advogado Heinrich Marx, filho de um antigo rabino da localidade, tinha conseguido criar para si uma sólida posição na Corte de Apelação da cidade. A mãe, pertencente a uma antiga família de rabinos holandeses, é vista pelos historiadores como um espírito prosaico, pouco dotada para a controvérsia e sempre disposta a recordar aos oradores da família as realidades domésticas. Um dia, será desaprovada — dir-se-á que foi inconveniente — essa sua reflexão irônica: “Filho, em vez de escrever sobre o Capital, seria melhor que você arranjasse algum”. Heinrich Marx era, pelo contrário, um espírito brilhante e liberal, apaixonado pelo jogo das idéias e cuja influência sobre o filho foi certamente muito grande. Ou pelo menos tão grande quanto o caráter do jovem Marx permitia.

[...] Foi um estudante como todos os outros, incluindo a habitual tendência aos versos românticos. Um estudante talvez um pouco mais aplicado do que os outros tanto ao trabalho como às diversões, e que passava repentinamente da vigília estudiosa à balbúrdia noturna. Escreveu poemas em que as moças, com o vestido banhado em lágrimas, morriam de amor sob as estrelas impassíveis, enquanto os cavalheiros incompreendidos suicidavam-se na igreja, durante o casamento da amada infiel... Mas esses repentes de febre sentimental, curados com cerveja, em breve desapareceram. O jovem Marx não tinha vocação para a lírica... Depois de um ano de sonhos infrutíferos na Universidade de Bonn, renunciou a soluçar com a literatura do seu século e entrou na Universidade de Berlim. Mas foi na de Jena que obteve, por fim, o título de Doutor em Filosofia... A violência natural do seu temperamento mudou de direção, elevou-se e passou dos adornos da ficção novelesca ao plano superior das idéias. Marx já era então o que seria até o final: combativo, seguro da sua própria capacidade intelectual como lógico realista propenso à ironia, e animado pela inquebrantável convicção de que o seu único dever era o de “trabalhar pelo bem da Humanidade”, como havia escrito aos quinze anos nas Reflexões de um jovem diante da escolha da carreira.

[...] É então que chega a luz para o jovem Marx, sob a forma glacial da filosofia de Georg Wilhelm Friedrich Hegel, mestre da dialética, ex-seminarista luterano de Tübingen e refinado artífice de uma doutrina hiper-intelectualista. Uma doutrina que começa abordando o próprio princípio da Idéia, cujo desenvolvimento através das contradições da História constituiria a realidade de todas as coisas. A célebre “dialética” de Hegel consiste em conciliar uma afirmação e a sua subseqüente negação na unidade superior da síntese. Um exemplo: a idéia de “ser” introduz a de “não-ser” ou “nada”, e estas duas idéias contraditórias formam juntas a noção de “devir”.

[...] O método hegeliano havia proporcionado a Karl Marx a ferramenta de que o seu pensamento precisava. A crueldade da “condição proletária” deixou-o indignado, centuplicou a sua vontade de agir e converteu o jovem pensador, apaixonado pela especulação filosófica, no general revolucionário mais conseqüente e temível de todos os tempos. O marxismo nascente seria uma mistura explosiva de lógica e indignação. Estava pronta a armação da sua máquina de guerra contra o mundo da ganância. A anarquia glutona da sociedade da época indicava-lhe o inimigo: o “capitalismo burguês”; as suas tropas: o proletariado; o campo de batalha: a mina, a fábrica, a oficina, todos os lugares de trabalho e de miséria nas cidades e nos campos.

[...] O destino proporcionou-lhe um inestimável aliado na pessoa do jovem Friedrich Engels, nascido em 1820 numa rica família industrial de Bremen. Tratava-se de um espírito agudo, tão hábil para os negócios como ágil nas decisões políticas; um elegante personagem que seria como um fiel Saint-Just para esse novo Robespierre, um Saint-Just previsor que salvaria o amigo da miséria e sustentaria até o fim a desastrosa economia doméstica do teórico da Economia Universal.

[...] Numerosos textos políticos trarão a assinatura conjunta dos dois amigos, sem que hoje seja possível distinguir qual foi a contribuição de cada um para a obra comum. Redigem conjuntamente o famoso Manifesto do Partido Comunista, cuja publicação coincide com a revolução de 1848, e que contém os principais traços de sua doutrina.

[...] A fama do doutrinário estende-se muito além dos círculos revolucionários, mas os seus êxitos respeitáveis não suavizam nem o seu caráter, nem a dureza das suas réplicas. Não discute: maneja os argumentos como um bloco, esmaga quem o contradiga e vai embora, sacudindo a cabeleira. As celebridades têm menos facilidade para se aproximar dele do que os operários.

[...] Era um carniceiro que devorava sobretudo papel. Em Londres, onde passou a maior parte dos seus últimos trinta anos, indo de um bairro a outro conforme o estado dos seus recursos, da paciência dos proprietários e das amistosas subvenções de Engels, escreve a sua obra mais importante, O Capital, usando frases complexas, enroladas como molas e sem se preocupar com a conclusão. O ponto crucial da abordagem é a teoria segundo a qual o trabalho, como qualquer outra mercadoria, tem o seu valor determinado pelas necessidades do operário, e o excedente constitui a “mais-valia”, cujo benefício reverte ao capital.

[...] A maioria dos marxistas não conhece O Capital melhor do que os católicos conhecem a Suma Teológica de São Tomás de Aquino. O pensamento de Marx, que também parece proceder da indústria pesada, deixou um método qualificado pomposamente de científico e um catecismo revolucionário que deram a volta ao mundo. Mas as teorias filosófico-econômicas tiradas do marxismo foram em todo lugar refutadas pelos fatos e não deram bons resultados em lugar nenhum. Apesar da abolição da propriedade privada — final simbólico da “exploração do homem pelo homem” — nos países socialistas, e do extermínio direto ou indireto de milhões de seres humanos, sacrificados em nome — ou por causa — da “ideologia” do Partido, ninguém viveu, nem sequer por um só dia, o ideal da sociedade sem classes. Nenhum povo da Terra passou-se para o comunismo pelo efeito da lógica marxista, e todos os que viveram essa experiência foram obrigados a isso pela força das armas, ao amparo de duas Guerras Mundiais. E à desgraça doutrinal deve-se acrescentar o fato de que o marxismo — ao fazer com que os governos “burgueses” se vissem forçados a finalmente elaborar uma política social, que foi com freqüência eficaz — acabou contribuindo para a consolidação do capitalismo.

Karl Marx queria sinceramente a libertação da Humanidade, mas os seus seguidores a aprisionaram num totalitarismo sem precedentes; queria um Homem novo, mas o Homem novo surgiu com a mente de um comissário político; pensava que a “ditadura do proletariado” duraria algumas semanas, mas ela se manteve por setenta anos. Pode dizer-se que Marx tinha previsto tudo, menos o marxismo, que — como se fosse um sacramento das trevas — em toda parte produziu o contrário do que significava.

A razão troveja em sua cratera”, dizia o magnífico canto da classe operária. Hoje não se vê nada além da cratera na qual ficou sepultada a pátria do socialismo e, com ela, umas esperanças traídas.

André Frossard, Les grands bergers: d´Abraham a Karl Marx, Paris, 1992.

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A voz da Igreja: a Ideología Vermeha

1. SOBRE O COMUNISMO. A doutrina comunista de modo muito mais acentuado que outros sistemas semelhantes do passado, apresenta-se sob a máscara de redenção dos humildes. É um pseudo-ideal de justiça, de igualdade e de fraternidade universal que impregna toda a sua doutrina e toda a sua atividade dum misticismo hipócrita, às multidões seduzidas por promessas falazes e como que estimuladas por um contágio violentíssimo lhes comunica um ardor e entusiasmo irreprimível, o que é muito mais fácil em nossos dias, em que a pouco eqüitativa repartição dos bens deste mundo dá como conseqüência a miséria anormal de muitos. Proclamam com orgulho e exaltam até esse pseudo-ideal, como se dele se tivesse originado o progresso econômico, o qual, quando em alguma parte é real, tem explicação em causas muito diversas, como, por exemplo, a intensificação da produção industrial, introduzida em regiões que antes nada disso possuíam, a valorização de enormes riquezas naturais, exploradas com imensos lucros, sem o menor respeito dos direitos humanos, o emprego enfim da coação brutal que dura e cruelmente força os operários a pesadíssimos trabalhos com um salário de miséria.

2. MATERIALISTA. Ora, esta doutrina sob aparências capciosas e sedutoras, funda-se de fato nos princípios do materialismo chamado dialético e histórico, ensinado por Karl Marx, de que os teóricos do bolchevismo se gloriam de possuir a única interpretação genuína. Essa doutrina proclama que não há mais que uma só realidade universal, a matéria, formada por forças cegas e ocultas, que, através da sua evolução natural, se vai transformando em planta, em animal, em homem. Do mesmo modo, a sociedade humana, dizem, não é outra coisa mais do que uma aparência ou forma da matéria, que vai evoluindo, como fica dito, e por uma necessidade inelutável e um perpétuo conflito de forças, vai pendendo para a síntese final: uma sociedade sem classes. É, pois, evidente que neste sistema não há lugar sequer para a idéia de Deus; é evidente que entre espírito e matéria, entre alma e corpo não há diferença alguma; que a alma não sobrevive depois da morte, nem há outra vida depois desta. Além disso, os comunistas, insistindo no método dialético do seu materialismo, pretendem que o conflito pode ser acelerado pelos homens. É por isso que se esforçam por tornarem mais agudos os antagonismos que surgem entre as várias classes da sociedade.

3. O HOMEM, UMA RODA DA ENGRENAGEM. O comunismo despoja o homem da sua liberdade na qual consiste a norma da sua vida espiritual; e ao mesmo tempo priva a pessoa humana da sua dignidade, e de todo o freio na ordem moral, com que possa resistir aos assaltos do instinto cego. E, como a pessoa humana, segundo os devaneios comunistas, não é mais do que, para assim dizermos, uma roda de toda a engrenagem, segue-se que os direitos naturais, que dela procedem, são negados ao homem indivíduo, para serem atribuídos à coletividade... Nem aos indivíduos se concede direito algum de propriedade sobre bens naturais ou sobre meios de produção; porquanto, dando como dão origem a outros bens, a sua posse introduz necessariamente o domínio de um sobre os outros. E é precisamente por esse motivo que afirmam que qualquer direito de propriedade privada, por ser a fonte principal da escravidão econômica, tem que ser radicalmente destruído.

4. O LIBERALISMO PREPAROU SEU CAMINHO. Mas, para mais facilmente se compreender como é que puderam conseguir que tantos operários tenham abraçado, sem o menor exame, os seus sofismas, será conveniente recordar que os mesmos operários, em virtude dos princípios do liberalismo econômico, tinham sido lamentavelmente reduzidos ao abandono da religião e da moral cristã. Muitas vezes o trabalho por turnos impediu até que eles observassem os mais graves deveres religiosos dos dias festivos; não houve o cuidado de construir igrejas nas proximidades das fábricas, nem de facilitar a missão do sacerdote; antes pelo contrário, em vez de se lhes pôr embargo, cada dia mais e mais se foram favorecendo as manobras do chamado laicismo.

PAPA PIO XI, Divini Redemptoris, Nos. 8 - 10 e 16,
Roma, 19 de Março de 1937.

5. CONCEPÇÃO TOTALIZANTE. O pensamento de Marx constitui uma concepção totalizante do mundo, na qual numerosos dados de observação e análise descritiva são integrados numa estrutura folosófico-ideológica, que determina a significação e importância relativa que se lhes atribui. Os a priori ideológicos são pressupostos para a leitura da realidade social. Assim, a dissociação dos elementos heterogêneos que compõem este amalgama, epistemologicamente híbrido, torna-se impossível, de modo que, acreditando aceitar somente o que se apresenta como análise, se é forçado a aceitar, ao mesmo tempo, a ideologia.
A advertência de Paulo VI (na Octagesima adveniens de 1971) continua hoje plenamente atual: ..."seria ilusório e perigoso chegar ao ponto de esquecer o vínculo estreito que os liga radicalmente, aceitar elementos da análise marxista sem reconhecer suas relações com a ideologia, entrar na prática da luta de classes e de sua interpretação sem tentar perceber o tipo de sociedade totalitária à qual este processo conduz".

6. INCOMPATIBILIDADE. Desde as origens o pensamento marxista se diversificou, dando origem a diversas correntes que divergem consideravelmente entre si. Na medida, porém, em que se mantêm verdadeiramente marxistas, estas correntes continuam vinculadas a um certo número de teses fundamentais que não são compatíveis com a concepção cristã do homem e da sociedade.

7. LUTA DE CLASSES. Na lógica do pensamento marxista, a "análise" não é dissociável da práxis e da concepção da historia à qual esta práxis está ligada. A análise é, pois, um instrumento da crítica, e a crítica não passa de uma etapa do combate revolucionário. Este combate é o da classe do Proletariado investido de sua missão histórica. Em conseqüência, somente quem participa deste combate pode fazer uma análise correta.
A consciência verdadeira é, pois, uma consciência "partidarista". Pelo que se vê é a própria concepção de verdade que aqui está em causa e que se encontra totalmente subvertida: não existe verdade - afirma-se - a não ser na e pela práxis "partidarista".
A práxis e a verdade, que dela deriva, são partidaristas porque a estrutura fundamental da história está marcada pela luta de classes... A lei fundamental da história, que é a lei da luta de classes, implica que a sociedade esteja fundada sobre a violência. À violência, que constitui a relação de dominação dos ricos sobre os pobres, deverá responder a contraviolência revolucionária, mediante a qual esta relação será invertida. A luta de classes é, pois, apresentada como uma lei objetiva e necessária. Ao entrar nno seu processo, do lado dos oprimidos, "faz-se" a verdade, age-se "cientificamente"... A luta de classes assume um caráter de globalidade e de universalidade. Ela se reflete em todos os domínios da existência. Em relação a esta lei, nenhum destes domínios é autônomo.

CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ, Instrução Libertatis Nuntius,
Roma, 6 de Agosto de 1984.

8. INEFICÁCIA DO SISTEMA. Dentre os numerosos fatores que concorreram para a queda (do socialismo real) ... um é com certeza a ineficácia do sistema econômico, que não deve ser considerada apenas como um problema técnico, mas sobretudo como consequência da violação dos direitos humanos à iniciativa, à propriedade e à liberdade no setor da economia. A este aspecto, está ainda associada a dimensão cultural e nacional: não é possível compreender o homem, partindo unilateralmente do setor da economia, nem ele pode ser definido simplesmente com base na sua inserção de classe. A compreensão do homem torna-se mais exaustiva, se o virmos enquadrado na esfera da cultura, através da linguagem, da história e das posições que ele adota diante dos acontecimentos fundamentais da existência, tais como o nascimento, o amor, o trabalho, a morte. No centro de cada cultura, está o comportamento que o homem assume diante do mistério maior: o mistério de Deus. As culturas das diversas Nações constituem fundamentalmente modos diferentes de enfrentar a questão sobre o sentido da existência pessoal: quando esta questão é eliminada, corrompem-se a cultura e a vida moral das Nações. Por isso, a luta pela defesa do trabalho une-se espontaneamente a esta, a favor da cultura e dos direitos nacionais. A verdadeira causa das mudanças, porém, está no vazio espiritual provocado pelo ateísmo, que deixou as jovens gerações privadas de orientação e induziu-as em diversos casos, devido à irreprimível busca da própria identidade e do sentido da vida, a redescobrir as raízes religiosas da cultura das suas Nações e a própria Pessoa de Cristo, como resposta existencialmente adequada ao desejo de bem, de verdade, e de vida que mora no coração de cada homem. Esta procura encontrou guia e apoio no testemunho de quantos, em circunstâncias difíceis e até na perseguição, permaneceram fiéis a Deus. O marxismo tinha prometido desenraizar do coração do homem a necessidade de Deus, mas os resultados demonstram que não é possível consegui-lo sem desordenar o coração.

PAPA JÕAO PAULO II, Centesimus Annus, No. 23,
Roma, 1 de Maio de 1991.

9. UMA CRÍTICA JUSTA. O século XIX não perdeu a sua fé no progresso como nova forma da esperança humana... Todavia a evolução sempre mais rápida do progresso técnico e a industrialização com ele relacionada criaram, bem depressa, uma situação social completamente nova: formou-se a classe dos trabalhadores da indústria e o chamado "proletariado industrial", cujas terríveis condições de vida foram ilustradas de modo impressionante por Frederico Engels, em 1845. Ao leitor, devia resultar claro que isto não pode continuar; é necessária uma mudança. Mas a mudança haveria de abalar e derrubar toda a estrutura da sociedade burguesa. Depois da revolução burguesa de 1789, tinha chegado a hora para uma nova revolução: a proletária. O progresso não podia limitar-se a avançar de forma linear e com pequenos passos. Urgia o salto revolucionário. Karl Marx recolheu este apelo do momento e, com vigor de linguagem e de pensamento, procurou iniciar este novo passo grande e, como supunha, definitivo da história rumo à salvação, rumo àquilo que Kant tinha qualificado como o "reino de Deus". Tendo-se diluída a verdade do além, tratar-se-ia agora de estabelecer a verdade de aquém. A crítica do céu transforma-se na crítica da terra, a crítica da teologia na crítica da política. O progresso rumo ao melhor, rumo ao mundo definitivamente bom, já não vem simplesmente da ciência, mas da política – de uma política pensada cientificamente, que sabe reconhecer a estrutura da história e da sociedade, indicando assim a estrada da revolução, da mudança de todas as coisas. Com pontual precisão, embora de forma unilateralmente parcial, Marx descreveu a situação do seu tempo e ilustrou, com grande capacidade analítica, as vias para a revolução. E não só teoricamente, pois com o partido comunista, nascido do Manifesto Comunista de 1848, também a iniciou concretamente. A sua promessa, graças à agudeza das análises e à clara indicação dos instrumentos para a mudança radical, fascinou e não cessa de fascinar ainda hoje. E a revolução deu-se, depois, na forma mais radical na Rússia.

10. SEU ERRO. Com a sua vitória, porém, tornou-se evidente também o erro fundamental de Marx. Ele indicou com exatidão o modo como realizar o derrubamento. Mas, não nos disse, como as coisas deveriam proceder depois. Ele supunha simplesmente que, com a expropriação da classe dominante, a queda do poder político e a socialização dos meios de produção, ter-se-ia realizado a Nova Jerusalém. Com efeito, então ficariam anuladas todas as contradições; o homem e o mundo haveriam finalmente de ver claro em si próprios. Então tudo poderia proceder espontaneamente pelo reto caminho, porque tudo pertenceria a todos e todos haviam de querer o melhor um para o outro. Assim, depois de cumprida a revolução, Lenin deu-se conta de que, nos escritos do mestre, não se achava qualquer indicação sobre o modo como proceder. É verdade que ele tinha falado da fase intermédia da ditadura do proletariado como de uma necessidade que, porém, num segundo momento ela mesma se demonstraria caduca. Esta "fase intermédia" conhecemo-la muito bem e sabemos também como depois evoluiu, não dando à luz o mundo sadio, mas deixando atrás de si uma destruição desoladora. Marx não falhou só ao deixar de idealizar os ordenamentos necessários para o mundo novo; com efeito, já não deveria haver mais necessidade deles. O fato de não dizer nada sobre isso é lógica consequência da sua perspectiva. O seu erro situa-se numa profundidade maior. Ele esqueceu que o homem permanece sempre homem. Esqueceu o homem e a sua liberdade. Esqueceu que a liberdade permanece sempre liberdade, inclusive para o mal. Pensava que, uma vez colocada em ordem a economia, tudo se arranjaria. O seu verdadeiro erro é o materialismo: de fato, o homem não é só o produto de condições econômicas nem se pode curá-lo apenas do exterior criando condições econômicas favoráveis.

PAPA BENTO XVI, Spe salvi, Nos. 20 e 21,
Roma, 30 de Novembro de 2007.

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Alma não teve Stalin: teve história

O partido sempre tem a razão
Leão Trotski


Enquanto eu leio em México, quantas horas
são em Moscou? Já é tarde, sempre é tarde,
sempre na história é noite e é fora de hora.

Solyenitzin escreve, o papel arde
sua escrita avança, cruel aurora
sobre planaltos cheios de ossos.

Fui covarde,
não vi de frente o mal...
O mal? um par
de olhos sem face, um repleto vazio.

O mal: um alguém ninguém, um algo nada.

Stalin teve face? A suspeita
lhe comeu a face e alma e alvedrio.

Povoou o medo sua noite desalmada,
seu insônio deixo Rússia despovoada.

*

Alma não teve Stalin: teve história.
Desabitado Marechal sem face,
servidor do nada. Se disfarça
o mal: a larva é César já. Vitória
de um fantasma: designa sua memória
seu vazio. O nada é grande avarento
dos ninguém. E os outros? Se desvela
o mal: o mesmo irreal combinatório
baralho para todos. Circular a pena,
a culpa circular: desenrolando
o carretel, a história os despena.
Discurso é uma faca congelada:

Dialética, sangrento solipsismo
que inventou o inimigo de si mesmo.

OCTAVIO PAZ, poema Aunque es de Noche, do livro Arbol Adentro,
Cidade do México, 1988.

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A esquerda em Processo

O texto, do atual ministro de Justiça, não representa a opinião do Nuec, porém, consideramos que é relevante para compreender a atuação de algumas esquerdas no poder na América Latina, e em especial, no Brasil.

Há muitos anos venho escrevendo a respeito dos dilemas que envolvem as ideologias da esquerda contemporânea e as amargas heranças das experiências socialistas do nosso tempo.

[...] Os nossos grandes fracassos estiveram ligados diretamente à implantação do "modo de produção socialista", que, segundo Marx, determinaria a socialização da riqueza e da abastança. Na vida real, essas experiências terminaram pervertendo-se em formas ditatoriais de redistribuir a pobreza. A consequência dessa redistribuição foi, por exemplo, o retorno ao capitalismo (URSS), a estagnação ditatorial (Coréia) ou o império da barbárie depois da queda (Afeganistão). O retorno ao capitalismo na antiga URSS resolveu os problemas das liberdades políticas, mas nenhum dos problemas sociais e de caráter nacional. Tornaram-se sociedades mais civilizadas e mais democráticas aquelas que realizaram um reformismo "forte", promovendo profundas transformações econômicas, culturais e no modo de vida dos cidadãos comuns.

As disputas que estão ocorrendo sobre os rumos do governo Lula estão relacionadas com o juízo sobre esses fracassos, que não são somente fracassos da "prática" socialista, mas também denunciam as limitações do aparato teórico que acompanhou o movimento socialista. Este combinava a visão do messianismo proletário, contida em algumas obras de Marx, com a simplificação maniqueísta da sua rica elaboração teórica. Esta, empobrecida tanto pelo marxismo soviético na sua visão stalinista, como pelo trotskismo rebelde, cujo aparato conceitual era também derivado do "leninismo".

Lênin, ao estudar melhor Hegel, já afirmara que preferia o idealismo inteligente ao materialismo burro. A designação, aliás, de uma "nova fase do marxismo" como "leninismo" foi feita pelo próprio Stálin, que a forjou, contra a visão do líder bolchevique. O nosso conflito hoje no partido, evidentemente, não é esse. Mas não pode deixar de ser qualificado como um conflito da parte minoritária do PT, que apresenta como "utilizável" -em diversos níveis- o velho legado bolchevique, com os que consideram-no superado, em diversas gradações (pela vida, pela economia, pelas novas formas de constituição da subjetividade social, mesmo no capitalismo turbinado da era Bush).

Passemos a exemplos concretos das nossas diferenças. O governo nega-se a criar condições políticas para o rompimento da vasta frente que elegeu Lula e modula cautelosamente os seus movimentos. Quer dar finalidade estratégica a essa frente, porque entende que qualquer movimento que o leve ao isolamento tanto pode promover o retrocesso, como favorecer o populismo, sempre à espreita, com as soluções mágicas e caudilhescas.

Nesse sentido, o partido se nega a ser "vanguardista", tipo bolchevique, para promover a aceleração da luta de interesses, mas quer conciliá-los através de um acordo com sentido policlassista. O objetivo é criar condições para enfrentar o domínio global do capitalismo especulativo, que desarma políticas econômicas, ataca moedas fracas e gera o caos e a instabilidade. Sem isso, qualquer projeto é impossível.

[...] Não é um partido que exacerba a luta de classes, porque essa exacerbação fragiliza o governo ante o domínio do capital financeiro globalizado: esta é a primeira e estratégica condição a ser assumida... Toda a esquerda, em escala mundial, está em processo de mudanças.

Tarso Genro, Esquerda em Processo, Petrópolis, 2004.

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OPINIÃO: A Tentação Totalitaria


A América Latina está adotando um rumo nitidamente esquerdista, com posições que retomam as experiências socialistas autoritárias e totalitárias do século 20. A única novidade consiste no ressurgimento da tentação totalitária, nada tendo que ver com o que alguns chamam de resgate da utopia. A realização da utopia se consubstanciou no totalitarismo. O que ocorre é que um certo setor da esquerda latino-americana, aí incluindo a brasileira, se está sentindo autorizado a imitar a experiência em curso. A diplomacia brasileira, por sua vez, está dando uma importante contribuição à confusão reinante ao velar o que está acontecendo naqueles países, como se neles a democracia estivesse sento respeitada. Contribuem, neste sentido, para as farsas diplomáticas de Hugo Chávez e Evo Morales.

A imagem de Evo Morales de mãos dadas com o presidente da teocracia iraniana, Mahmoud Ahmadinejad, mostra o quanto a tentação totalitária está ganhando amplitude global. O representante de um regime teocrático que chega a negar a ocorrência do Holocausto, que exerce controle absoluto de sua população, punindo e mesmo eliminando adversários, se torna um convidado especial e, inclusive, um modelo da luta “antiimperialista”, um homem “justo”, nas palavras de Chávez. Rafael Correa, do Equador, segue, agora, os passos do líder máximo venezuelano. Daniel Ortega, da Nicarágua, aguarda somente uma ocasião mais propícia internacionalmente para enveredar pelo mesmo caminho. Os vários tipos de tentações autoritárias e totalitárias, mais à esquerda ou mais à direita, parecem confluir num mesmo sumidouro que se alça à condição de realização de um sonho. A degradação da esquerda chega a tal ponto que um regime como o iraniano, de corte mais propriamente fascista, é considerado de esquerda.

Devemos evitar o equívoco de considerar o que está ocorrendo nessas regiões da América Latina como se fosse um mero ressurgimento do populismo... O fenômeno em curso é diferente, pois se trata do projeto marxista de estabelecimento de uma sociedade socialista, dita eufemisticamente “socialismo do século 21”. O que, sim, se pode dizer é que o projeto socialista se utiliza da tradição populista vigente, aproveitando-a para seus propósitos específicos.

A tradição marxista internacional tem, basicamente, dois grandes modelos: a via leninista e a via gramsciana, a primeira também dita oriental e a segunda, ocidental. A via leninista emprega diretamente a violência revolucionária mediante a sublevação popular-partidária, destruindo imediatamente as instituições vigentes, estabelecendo um regime de partido único e abolindo a propriedade privada, o Estado de Direito e a economia de mercado. A estatização dos meios de produção - e da sociedade - se torna o seu objetivo primeiro. Ela surge, basicamente, em países sem nenhuma ou pouca tradição democrática e com pequena experiência da propriedade privada, como a Rússia. A via gramsciana é também dita ocidental por se apropriar das instituições democráticas e por fazer aparentemente o jogo do Estado de Direito, mantendo, num primeiro momento, alguns setores econômicos sob a economia de mercado, embora altamente controlada. Num segundo momento, envereda para a estatização de setores ditos “estratégicos”. Eis por que ela oferece a imagem de ser “democrática” ao utilizar as regras da democracia para abolir precisamente esse regime político.

Chávez, por exemplo, está claramente eliminando a democracia por intermédio (1) da submissão do Judiciário; (2) do Parlamento, que se torna órgão auxiliar do Executivo, pois o ditador-presidente passará a legislar por decreto, unindo a função executiva com a legislativa - ele é ungido à posição de um senhor que tudo sabe, não precisando consultar ninguém; (3) do fechamento de uma rede de televisão, anunciando o que fará com a liberdade de imprensa; (4) de assegurar a sua vitaliciedade no poder mediante o mecanismo da reeleição indefinida, assumindo a posição que era a dos secretários dos ex-partidos comunistas no poder, como Stalin, Mao ou Fidel; (5) da criação de um partido único de esquerda, prenúncio de um único partido futuro.

Digna de nota é a repetição em todos esses países da criação de Assembléias Constituintes, que têm como objetivo estabelecer uma relação direta do líder máximo com as massas, de modo a controlar o que se torna um pseudomecanismo parlamentar. O Legislativo desaparece enquanto Poder. Hugo Chávez utiliza-se desse mecanismo, Evo Morales segue os seus passos e Rafael Correa imita a mesma via. Em nome de uma suposta “soberania popular”, eles caminham rapidamente para abolir a representação política e as liberdades democráticas em geral. Utilizam, portanto, uma instituição democrática para suprimir a própria democracia.

O governo Lula e o Partido dos Trabalhadores (PT) não são imunes a essa tentação. Diria que setores importantes do partido se sentem atraídos a enveredar por esse caminho. Praticamente todas as tendências petistas sempre defenderam o governo Chávez e algumas claramente o erigiram em modelo. O mesmo se pode dizer da defesa do socialismo indígena de Evo Morales. Alguns dirigentes chegaram mesmo a defender as medidas tomadas contra a Petrobrás, como se os interesses brasileiros fossem, para eles, secundários. Mais recentemente, o assessor especial da Presidência e ex-presidente do PT Marco Aurélio Garcia, aparentemente um moderado no espectro petista, chegou a declarar que o golpe chavista da reeleição indefinida e outras medidas tomadas na Venezuela constituíam um “aprofundamento da democracia”. Faltou acrescentar: “da democracia totalitária”.

Denis Lerrer Rosenfield, Filósofo e Professor da Universidade Federal de Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Janeiro de 2007.

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