domingo, 26 de outubro de 2008

PORTICO: A Universidade e a procura da Verdade


A Universidade é um fruto maduro do cristianismo. Instituição aberta, livre e universal, gerada no seio da Igreja durante a Idade Média, época - segundo Jacques Le Goff – de luz, não de trevas. Hoje ela dista muito de estar pautada pelo ideal que lhe fez nascer: a apaixonada e sistemática procura da Verdade. Sua natureza e missão são deturpadas pela “educação” ideológica, a intolerância do pensamento único e do politicamente correto. Quem afirma ter convicção da existência de uma verdade objetiva muitas vezes é marginalizado e ridicularizado. Em janeiro deste ano vivemos um caso sintomático: Bento XVI, quem para Jürgen Habermas é um dos homens mais brilhantes do nosso tempo, foi impedido de falar na Universidade de Roma por alunos e professores que contradizem o verdadeiro espírito universitário. Para alimentar a reflexão sobre o que realmente deve ser nossa Universidade apresentamos nesta edição parte central do discurso que o Papa diria naquela ocasião em La Sapienza, assim como o fragmento do clássico Idea of University, do Cardeal John Henry Newman; junta-se a eles um atualíssimo ensaio do crítico literário Otto Maria Carpeaux sobre a crise das universidades escrito… há mais de 60 anos. Boa Leitura.

OS EDITORES

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Um discurso silenciado sobre a vocação da Universidade

A imagem ao lado é do cartaz com o qual universitarios chamaram a barrar a visita do Papa Bento XVI à Universidade de La Sapienza, em Roma, por considerar que ele é "contra a Universidade". Leia e julge.

Para mim é motivo de profunda alegria encontrar a comunidade de “La Sapienza”, universidade de Roma, por ocasião da inauguração do ano acadêmico... Desejo muito, nesta circunstância, expressar minha gratidão pelo convite que me foi dirigido de vir à vossa universidade para vos dar uma aula. Diante desta perspectiva, fiz-me antes de mais nada uma pergunta: o que pode e deve dizer um Papa numa ocasião como esta? Na minha aula em Ratisbona falei, sim, como Papa, mas principalmente falei no meu papel de ex-professor daquela minha universidade, procurando entrelaçar recordações e atualidade. Na universidade “La Sapienza”, a antiga universidade de Roma, porém, fui convidado justamente como Bispo de Roma, e por isso devo falar como tal. Certamente, “La Sapienza” foi no passado a universidade do Papa, mas hoje é uma universidade laica, com aquela autonomia que, com base em seu próprio conceito fundacional, sempre fez parte da natureza de universidade, a qual deve estar ligada exclusivamente à autoridade da verdade. É na sua liberdade de autoridades políticas e eclesiásticas que a universidade encontra a sua função particular, justamente em vista da sociedade moderna, que precisa de uma instituição desse tipo.

O que é a universidade? Qual é a sua missão? É uma questão colossal, à qual mais uma vez me é possível tentar responder, em estilo quase telegráfico, com algumas observações. Penso que se possa afirmar que a verdadeira e íntima origem da universidade esteja na sede de conhecimento, que é própria do homem. Este quer saber o que é tudo aquilo que o circunda. Quer a verdade. Neste sentido, podemos ver o questionar-se de Sócrates como o impulso do qual nasceu a universidade ocidental. Penso, por exemplo para mencionar somente um texto na disputa com Eutifrone, que diante de Sócrates defende a religião mítica e a sua devoção. A isto, Sócrates contrapõe a pergunta: "Tu acreditas que entre os deuses exista realmente uma guerra recíproca e terríveis inimizades e combates... Teremos nós, Eutifrone, de afirmar que tudo isto é verdade?". Nesta pergunta, aparentemente pouco devota mas que, em Sócrates, derivava de uma religiosidade mais profunda e mais pura, ou seja, da busca do Deus verdadeiramente divino, os cristãos dos primeiros séculos reconheceram-se a si mesmos e ao seu caminho. Acolheram a sua fé não de forma positivista, ou como a via de fuga de desejos não realizados; compreenderam-na como uma diluição da neblina da religião mitológica para deixar espaço à descoberta daquele Deus que é Razão criadora e, ao mesmo tempo, Razão-Amor. Por isso, o interrogar-se da razão sobre o Deus maior e também sobre a verdadeira natureza e o autêntico sentido do ser humano era, para eles, não uma forma problemática de falta de religiosidade, mas fazia parte da essência do seu modo de ser religiosos. Por conseguinte, eles não tinham necessidade de diluir ou abandonar o questionar-se socrático, mas podiam, aliás deviam, acolhê-lo e reconhecer como parte da sua própria identidade a árdua busca da razão para alcançar o conhecimento da verdade inteira. Assim podia, aliás devia, no âmbito da fé cristã, no mundo cristão, nascer a universidade.

É necessário dar mais um passo. O homem quer conhecer; quer a verdade. Esta é primariamente algo que diz respeito ao ver, ao compreender, à theoría, como a denomina a tradição grega. Mas, a verdade nunca é apenas teórica... Mas, verdade significa mais do que saber: o conhecimento da verdade tem como finalidade o conhecimento do bem. Este é também o sentido do questionar-se socrático: Qual é o bem que nos torna verdadeiros? A verdade torna-nos bons, e a bondade é verdadeira: tal é o optimismo que vive na fé cristã, porque a esta foi concedida a visão do Logos, da Razão criadora que, na encarnação de Deus, se revelou conjuntamente como o Bem, como a própria Bondade.

Na teologia medieval, houve uma disputa profunda sobre a relação entre teoria e prática, sobre a justa relação entre conhecer e agir uma disputa que não cabe aqui desenvolver. Com efeito, a universidade medieval com as suas quatro Faculdades apresenta esta correlação. Comecemos pela Faculdade que, segundo a compreensão da época, era a quarta: a de Medicina. Não obstante fosse considerada mais como "arte" do que como ciência, todavia a sua inserção no cosmos da universitas significava claramente que estava colocada no âmbito da racionalidade, que a arte de curar se encontrava sob a guia da razão, subtraindo-se ao âmbito da magia. Curar é uma missão que exige sempre mais do que a simples razão, mas por isso mesmo precisa da conexão entre saber e poder, tem necessidade de pertencer ao campo da ratio.

Inevitavelmente levanta-se a questão da relação entre prática e teoria, entre conhecimento e agir, na Faculdade de Jurisprudência. Trata-se de atribuir a justa forma à liberdade humana, que é sempre liberdade na comunhão recíproca: o direito é o pressuposto da liberdade, e não o seu antagonista. Mas aqui levanta-se a questão: Como se individualizam os critérios de justiça que tornam possível uma liberdade vivida em conjunto e favorecem o ser bom do homem? Nesta altura, impõe-se dar um salto ao presente: É a questão do modo como se pode encontrar uma normativa jurídica que constitua um ordenamento da liberdade, da dignidade humana e dos direitos do homem. É a questão que nos ocupa hoje nos processos democráticos de formação da opinião e que, ao mesmo tempo, nos angustia porque problemática para o porvir da humanidade. Na minha opinião, Jürgen Habermas exprime um vasto consenso do pensamento contemporâneo, quando afirma que a legitimidade de uma carta constitucional, como pressuposto da legalidade, derivaria de duas fontes: da participação política igualitária de todos os cidadãos e da forma razoável como são resolvidos os contrastes políticos. A propósito da referida "forma razoável", observa ele que a mesma não pode ser somente uma luta por maiorias aritméticas, mas há-de caracterizar-se como um "processo de argumentação sensível à verdade" (wahrheitssensibles Argumentationsverfahren). É uma afirmação correcta, mas muito difícil de transformar em prática política. Os representantes daquele público "processo de argumentação" são predominantemente como sabemos os partidos enquanto responsáveis pela formação da vontade política. Com efeito, estes terão infalivelmente em vista sobretudo a consecução de maiorias e, por conseguinte, olharão de maneira quase inevitável pelos interesses que prometem satisfazer; mas, tais interesses muitas vezes são particulares e não favorecem verdadeiramente a comunidade. A sensibilidade pela verdade acaba incessantemente subjugada à sensibilidade pelos interesses. Julgo significativo o fato de que Habermas fale da sensibilidade pela verdade como de um elemento necessário no processo de argumentação política, voltando assim a inserir o conceito de verdade no debate filosófico e político.

[...] Ao lado da Faculdade de Jurisprudência, havia as Faculdades de Filosofia e de Teologia, às quais estava confiada a investigação sobre o ser homem na sua totalidade e, consequentemente, a missão de conservar viva a sensibilidade pela verdade. Poder-se-ia mesmo afirmar que o sentido permanente e autêntico das duas Faculdades é este: serem guardiães da sensibilidade pela verdade, não permitirem que o homem seja afastado da busca da verdade.

[...] Teologia e filosofia formam nisto um par de gêmeos peculiar, não podendo nenhuma das duas desligar-se totalmente da outra e, todavia, cada uma deve conservar a própria tarefa e identidade. É mérito histórico de Santo Tomás de Aquino face às diferentes respostas dos Padres, em virtude do seu contexto histórico ter evidenciado a autonomia da filosofia e, juntamente com ela, o direito e a responsabilidade própria da razão de se interrogar com base nas suas forças. Diferenciando-se das filosofias neoplatônicas, onde religião e filosofia se encontravam inseparavelmente entrelaçadas, os Padres tinham apresentado a fé cristã como a verdadeira filosofia, ressaltando ainda que esta fé corresponde às exigências da razão na sua busca da verdade; que a fé é o "sim" à verdade, comparativamente às religiões míticas que se tinham tornado uma simples rotina. Sucessivamente, porém, na época do nascimento da universidade, no Ocidente já não existiam aquelas religiões mas somente o cristianismo, e assim era necessário ressaltar novamente a responsabilidade própria da razão, de modo que não fosse absorvida pela fé. Santo Tomás interveio num momento privilegiado: pela primeira vez, os escritos filosóficos de Aristóteles tornaram-se acessíveis na sua integridade; estavam presentes as filosofias hebraicas e árabes enquanto específicas apropriações e prolongamentos da filosofia grega... a Faculdade de Filosofia, que até então tinha sido somente propedêutica à teologia, tornou-se agora uma verdadeira e própria Faculdade, um parceiro autônomo da teologia e da fé nela refletida... Diria que a ideia de Santo Tomás acerca da relação entre filosofia e teologia poderia ser expressa pela fórmula encontrada pelo Concílio de Calcedônia para a cristologia: filosofia e teologia devem relacionar-se entre si "sem confusão e sem separação".

[...] Pois bem, até agora falei somente da universidade medieval, procurando contudo deixar transparecer a natureza permanente da universidade e da sua missão. Nos tempos modernos, abriram-se novas dimensões do saber, que, na universidade, são valorizadas, sobretudo em dois grandes âmbitos: em primeiro lugar, nas ciências naturais, que se desenvolveram com fundamento na conexão de experiência com a pressuposta racionalidade da matéria; em segundo lugar, nas ciências históricas e humanistas, nas quais o homem, perscrutando o espelho da sua história e esclarecendo as dimensões da sua natureza, procura compreender-se melhor a si mesmo... No entanto, o caminho do homem jamais pode dizer-se completo, e o perigo de cair na desumanidade nunca está esconjurado de todo: como se vê no panorama da história atual! O perigo do mundo ocidental para falar somente dele é que o homem hoje, precisamente à vista da grandeza do seu saber e do seu poder, desista diante da questão da verdade; significando isto ao mesmo tempo que, no fim de contas, a razão cede face à pressão dos interesses e à atração da utilidade, obrigada a reconhecê-la como critério derradeiro. Dito do ponto de vista da estrutura da universidade: existe o perigo de que a filosofia, deixando de se sentir à altura da sua autêntica missão, se degrade em positivismo; que a teologia, com a sua mensagem dirigida à razão, seja confinada na esfera privada de um grupo mais ou menos numeroso. Mas, se a razão ciosa da sua presumida pureza se torna surda à grande mensagem que lhe chega da fé cristã e da sua sabedoria, seca como uma árvore cujas raízes já não chegam às águas que lhes dão vida. Perde a coragem pela verdade; e deste modo não fica maior, mas menor... Aplicado à nossa cultura... isto significa: se ela quiser autoconstruir-se unicamente com base no círculo das suas próprias argumentações e naquilo que de momento a convence e preocupada com a sua laicidade se separa das raízes de que vive, então não se torna mais razoável nem mais pura, mas desagrega-se e fragmenta-se.

PAPA BENTO XVI, o texto seria lido durante a visita à Universidade de Roma "La Sapienza", prevista para o dia 17 de Janeiro de 2008 e que foi cancelada dois dias antes.

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A Universidade segundo Newman

Se me pedissem uma descrição breve e popular do que seja um Universidade, derivaria minha resposta da antiga designação, Studium Generale, ou “Escola de Conhecimentos Universais”. Esta descrição supõe a reunião de estrangeiros de todas as procedências em um lugar: de todas as procedências, do contrário, como se encontrariam professores e estudantes para todos os departamentos do saber? E num lugar, senão como poderia haver realmente uma escola? Consonantemente, em sua forma simples e rudimentar, é uma escola de toda sorte de saber, contando com professores e mestres de todos os quadrantes. Muitos são os requisitos para completar e satisfazer a idéia incorporada nesta descrição; porém sem mais vemos que uma Universidade em sua essência parece ser um lugar para a comunicação e circulação do pensamento, mediante a comunicação pessoal, dominando uma vasta extensão do país.

Nada há de rebuscado e irrazoável nesta nossa concepção assim apresentada. E se tal é uma Universidade, pois então a Universidade vai bem de encontro a uma necessidade de nossa natureza, e não é mais do que a concretização num determinado setor, do que poderia tornar outras formas em outros para prover à mesma necessidade, pois a educação mútua, no sentido lato da palavra, é uma das grandes incessantes ocupações da sociedade humana, a que o homem se entrega já de per si, já intencionalmente um geração forma a seguinte; e a geração existente está perpetuamente agindo e reagindo sobre si própria na pessoa de cada membro. Neste processo educativo, não será preciso dizer, que os livros, a Littera Scripta, são um dos instrumentos.

[...] O campo e o inestimável serviço da Littera Scripta, é o de ser o arquivo da verdade, uma autoridade a que se apelar, um instrumento de ensino nas mãos de um professor; mas se queremos ser exatos e nos torna plenamente equipados em qualquer ramo do conhecimento que seja variado e difícil, temos que consultar o homem vivo e ouvir a sua viva voz.

[...] Livro algum poderá carrear o espírito peculiar, e as delicadas particularidades do seu tema com a rapidez e a certeza que animam a simpatia de uma mente com a outra, através do olhos, da expressão, da tonalidade, da maneira, nas fórmulas casuais saída de improviso e os giros espontâneos da conversação familiar.

[...] Os princípios gerais de qualquer matéria podem ser estudados em casa num livro; mas o por menor, a cor, o tom, o ar, a vida que a faz viver em nós, temos que captar tudo isso daqueles em que já está vivendo. Temos que fazer como o estudante francês ou alemão, que não contente com sua gramática, vai a Paris ou Dresden; ou como o jovem artista ansioso por visitar os grandes mestres em Florença e em Roma. Enquanto não se houver descoberto um espécie de fotografia intelectual que retrate o andamento do pensar, e a forma, os lineamentos, as feições da verdade e isto tão completa e minuciosamente como o aparelho ótico reproduz o objeto sensível; não há senão ir aos mestres da sabedoria para aprender a sabedoria, senão recorrer à fonte e daí beber. Doses podem ir daqui aos confins da terra levado por livros; mas a plenitude está só num lugar (: a Universidade). Os mesmo livros, obras mestras do gênio humano são escritos, ou pelo menos têm origem em tais ajuntamentos e congregações da inteligência.

[...] Uma universidade é o lugar de concurso, onde estudantes vêm de todos os cantos em busca de todo o gênero de conhecimentos. Impossível terem em toda a parte o melhor de tudo... Por força das coisas, grandeza e unidade vão juntas: a excelência supõe um centro... a Universidade é o lugar para onde colaboram mil escolas; no qual a inteligência facilmente pode ter surto e especular, certa de achar seus iguais nalguma atividade rival, e o seu juiz no tribunal da verdade. É o lugar onde a investigação é incentivada, as descobertas verificadas e aperfeiçoadas, o arrojo feito inofensivo, o erro indigitado, pela colisão de mente com mente, e de conhecimento com conhecimento. O lugar onde o professor se faz eloqüente, é missionário e pregador, apresentando o seu saber pela forma mais completa e sedutora, vertendo-o com zelo do entusiasmo, e acendendo o próprio amor no seio dos ouvintes. Lugar em que o catequista solidifica o caminho ao passo que progride, martelando a verdade dia a dia na memória pronta, como que entalado-a e apertando-a na razão em desenvolvimento. Lugar que arrebata por sua celebridade a admiração dos moços, inflama por sua beleza as afeiçoes dos de meia idade e assegura por suas associações a fidelidade dos velhos. Ela é a Sede da sabedoria, luz do mundo, ministra da fé, a Alma Mater da geração que sobe. Isto e muito mais é uma Universidade a pedir melhor talento e mão do que a minha para descrevê-la. Assim é um Universidade em sua essência e em seu fim, e em boa parte assim tem sido de fato até agora. Sê-lo-á de novo?

CARDEAL JOHN HENRY NEWMAN, Idéia da Universidade, Dublin, 1858

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A Crise da Universidade

Jamais esquecerei o dia em que entrei pela primeira vez, com toda a ingenuidade dos meus dezoito anos, no solene recinto da Universidade da minha cidade natal. Um pórtico silencioso. Nas paredes viam-se os bustos dos professores que ali estudaram e ensinaram; no busto de um helenista lia-se a inscrição: "Ele acendeu e transmitiu a flâmula sagrada"; e no busto de um astrônomo: "O princípio que traz o seu nome ilumina-nos os espaços celestes". No meio do pátio, num pequeno jardim, sob o ameno sol de outono, erguia-se uma estátua de mulher nua, com olhos enigmáticos: a deusa da sabedoria. Silêncio. Não esquecerei nunca.

A decepção foi muito grande. Via a biblioteca coberta de poeira, os auditórios barulhentos, estupidez e cinismo em cima e em baixo das cadeiras dos professores, exames fáceis e fraudulentos, brutalidade desde bandos que gritavam os imbecis slogans políticos do dia, e que se chamavam "acadêmicos".

A última vez que passei perto deste "templo das Musas", o edifício estava fechado; os estudantes haviam-se juntado a uma imensa manifestação popular. Sabia muito bem o que isso significava para mim: um adeus para sempre. Olhando pelas frestas das portas monumentais —estávamos na primavera — via sob a luz branda do sol os pórticos, as velhas pedras, o jardim, e a deusa nua, tendo nos lábios o sorriso enigmático da morte. E reconheci um fim definitivo.

Por toda parte, as universidades são doentes, senão moribundas, e isto é grande coisa. Os iniciados bem sabem que não é esta uma questão para os pedagogos especializados. Das universidades depende a vida espiritual das nações. O fim das universidades seria um fim definitivo. O abismo entre o progresso material e a cultura espiritual aumenta de dia para dia, e as armas desse progresso nas mãos dos bárbaros é fato que clama aos céus. Os edifícios das universidades resistem ainda, e neles trabalha-se muito, demais, às vezes, mas o edifício do espírito, esta catedral invisível, está ameaçado de cairem ruínas. Em tempos mais felizes a sueca Ellen Key dizia com sutileza: "Cultura é o que nos resta depois de termos esquecido tudo quanto aprendemos". E, deste modo, somos riquíssimos de saber e mendigos de cultura. Hoje em dia Herbert George Wells pode dizer: "Entramos numa corrida entre educação e catástrofe". Aí está a questão da Universidade.

Quem é o culpado? Evidentemente, é inadmissível simplificar uma discussão de tal envergadura. Acusa-se o Estado por ter-se intrometido, e acusa-se o Estado por não se intrometer. Acusam-se os professores por mergulharem nos ensinos profissionais e descuidarem-se da ciência desinteressada, e acusam-se os professores por mergulharem na ciência pura sem saberem ensinar. Aqui, queixam-se de as universidades não fornecerem elites, de que a nação tem necessidade; ali, queixam-se de que as universidades fornecem elites demais, um proletariado intelectual. Abundam os remédios propostos. Desejam salvar as universidades pela separação entre as instituições puramente científicas e os institutos de ensino, o que agravaria o problema em vez de o resolver: a ciência seria, assim, afastada da vida, e o ensino entregue à rotina. Falham, igualmente, as tentativas mais bem pensadas de curar a doença infundindo uma nova crença ou uma velha fé: teremos os mesmos estudantes, os mesmos bacharéis, os mesmos doutores que antes, e as suas boas crenças não resolverão a doença da Universidade. Porque não cabe à Universidade formar crentes nem sequer sugerir convicções, mas dar ao estudante capacidade para escolher a sua convicção. Já abundam os homens cegamente convictos, muito "práticos", "úteis" para os serviços do Estado, da Igreja, dos partidos e das empresas comerciais. Pode ser que todas essas instituições lamentem, em breve, a abundância de homens convictos e a falta de homens livres. Então, acusar-se-á amargamente o utilitarismo das universidades modernas. O utilitarismo é o inimigo mortal da Universidade.

[...] A história das universidades é a história espiritual das nações. A França medieval é a Sorbonne, cujo enfraquecimento coincide com a fundação renascentista do Collège de France, e cujo prolongamento moderno é a Ecole Normale Supérieure. A Inglaterra, mais conservadora, é sempre Oxford e Cambridge. A Alemanha luterana é Wittemberg e Iena; a Alemanha moderna é Bonn e Berlim. As velhas universidades são de utilidade muito reduzida. Elas não fornecem homens práticos; formam o tipo ideal da nação: o lettré, o gentleman, o Gebildeter. Elas formam os homens que substituem, nos tempos modernos, o clero das universidades medievais. Elas formam os clercs.

As universidades americanas têm a mesma origem. As velhas universidades da América Latina — Lima, México, Bogotá, Córdova — são fundações da Coroa de Espanha; mas foram, desde o início, confiadas aos frades, e já a primeira cédula de fundação, a ordem real do imperador Carlos V, de 21 de setembro de 1551, dá claramente a entender o sentimento da responsabilidade perante o espírito, o espírito desinteressado da Universidade medieval: "Para servir a Deus, Nosso Senhor, e ao bem público de nossos reinos, convém que nossos vassalos, súditos e naturais tenham Universidades e Estudos Gerais em que sejam instruídos e titulados em todas as ciências e faculdades, e pelo muito amor e vontade que temos de honrar e favorecer aos de Nossas Índias, e desterrar deles as trevas da ignorância, criamos, fundamos e constituímos na cidade de Lima dos reinos do Peru, e na cidade de México da Nova Espanha, Universidades e Estudos Gerais". Nada mais eloqüente, admirável, do que semelhantes termos haverem sido empregados quando os puritanos fundaram, em 1636, a primeira universidade da América inglesa, a de Harvard: "Depois que Deus nos tinha seguramente conduzido a Nova-Inglaterra, e que construímos as nossas casas e estabelecemos um governo civil, uma das nossas primeiras ocupações foi estimular o ensino e perpertuá-lo para a posteridade, com receio de deixar às igrejas um clero iletrado quando os nossos clérigos atuais jazerem em pó" (New England's First Fruits, 1643).

O que resta destas Universitates Litterarum? O nome. Já não formam lettrés, nem gentlemen, nem Gebildeter; formam médicos, advogados, professores. As universidades tornaram-se lugares de investigações científicas; e é um romantismo utilitário que vem muni-las das asas do progresso. Não há mais "clercs", só há estudantes.

[...] O problema capital do nosso tempo... é um problema de pedagogia humanística. Existe mesmo, hoje, política que consiste na exterminação das elites pelas armas dos especialistas. E foi bem preparada: da diminuição das lições latinas, existe apenas um passo para a destruição dos livros e dos museus. O resultado mais freqüente da moderna educação universitária é um decidido adeus aos livros. Mais tarde, combaterão as "línguas mortas" na escola. Enfim, declararão inútil todo o ensino secundário, com as suas idéias vagas e inúteis duma "cultura geral"; talvez toquem, com isso, no ponto nevrálgico da discussão. Todo o problema espiritual dos nossos dias é, pois, um problema de falta de educação humanística, um problema pedagógico; e todo o problema pedagógico dos nossos dias é um problema da escola específica das classes médias, da escola secundária.

[...] "Entramos numa corrida entre educação e catástrofe". Wells tem muita razão. Mas é de grande importância datar a desgraça. Esta catástrofe irrompeu sob o signo do progresso, e o progresso ilimitado, muito do gosto de um Wells, cavará mais profundamente o abismo. O verdadeiro caminho é a volta.

Temos mais uma vez "a disputa do medievalismo". Uma coisa fica, porém: a Universidade é uma criação da Idade Média. Todas as universidades medievais são, por princípio, instituições "clericais": elas formam os"clercs". O restabelecimento das universidades "clericais" é uma restauração de tradições.

Quatro ou cinco faculdades reunidas não constituem ainda uma universidade. Elas não criam esta "convivence of sciences, which forms a philosophical habit of mind", de que fala o cardeal Newman. Não se trata destas ciências ou daquelas profissões. Trata-se do espírito comum que as anima, do espírito filosófico, anti-utilitário, desinteressado, que as nossas universidades perderam, e que é a própria Idéia de Universidade. Derrubemos, pois, este estado de coisas. É ao ensino secundário que cabe o preparo do ensino profissional, dispensado nos hospitais e na magistratura. Em conclusão, é à Universidade que incumbe a formação do espírito da "clericatura".

Voltemos aos estudantes: o seu utilitarismo, mais perigoso que o das ciências, perdurará enquanto a freqüência das universidades for a chave para as posições de mando na sociedade. Verdadeiramente, o oposto deste utilitarismo é o desinteresse, no qual Newman via o espírito e a idéia de universidade, o espírito do clero universitário medieval que se sentia independente do mundo e somente responsável perante Deus. Sem tais padres o altar fica vazio e o culto abandonado. Poderia chegar o dia em que ninguém compreenderia mais as fórmulas nem os poemas, em que os quadros de Rembrandt seriam pedaços de tela e as partituras de Beethoven farrapos de papel; dia da barbaria, em que a história humana se transformaria, pela sucessão de desgraças, num formigueiro mal organizado. E este dia talvez já esteja mais próximo do que realmente pensamos. "Somos a última reserva, fiquemos conscientes disto", dizia Hugo Ball.

OTTO MARIA CARPEAUX, ensaio titulado A ideia da Universidade e as Ideias da Classe Media, no livro A Cinza do Purgatório, Río de Janeiro, 1942

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Os Estudos Superiores e o Católico

Os estudos universitários se orientam habitualmente até a vida profissional. Este é seu primeiro objetivo. E nele deve o estudante empenhar seus esforços. Mas limitar-se somente a isso é correr o risco de perder uma época capital da vida. Entre os 18 e 25 anos, período em que geralmente se situam os estudos superiores, o horizonte do conhecimento se amplia, o peso do saber se multiplica, o pensamento pessoal se desprende de sua carga protetora, a ordem do mundo é submetida a exame. Este período de crescimento interior acelerado deve desapegar-se em todas as dimensões do ser. Por que se não, o conhecimento será unilateral, fragmentado, dualista. E isso seria como um encarceramento ideológico, a despersonalização, a evasão no subjetivismo.

O cristão que empreende estudo superior oferece a seu espírito uma dupla exigência: alimentar sua fé e aprofundar na cultura religiosa. As cidades universitárias oferecem múltiplas ocasiões para subir mais alto no aspecto luminoso da existência, que é a fé: ciclos de conferências, cursos de formação, círculos de estudos, retiros espirituais, oração em comunhão... Descuidar destas ferramentas de afinamento do espírito é correr o perigo de ficar estancado, de empobrecimento interior. E fazer ouvidos surdos a chamada de Deus. Ademais, há a leitura. A fase dos estudos é a da exploração, dos descobrimentos. A leitura leva sem esforços a regiões inexploradas. Junto a leitura entretida há que reservar um tempo a que vai tecendo a cultura religiosa e alimenta a fé: História da Igreja, vidas de santos, alguns livros substanciosos de espiritualidade, não deveriam faltar nas estantes do estudante cristão.

Diante de tudo a Bíblia, Palavra de Deus, palavra de vida, são “como partículas eucarísticas” (São Jerônimo). E que perpassa como a “espada do espírito”. Tempo de estudos, tempo privilegiado para “dar cumprimento a Palavra de Deus” (Col 1,25) em um mesmo.


RENÉ LEJEUNE, Robert Schuman: Pere de l'Europe, París, 2000

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OPINIÃO: Universidade e Verdade


A universidade desde a sua origem teve como objetivo buscar respostas sobre a verdade e Sócrates é considerado na cultura ocidental como o precursor do espírito universitário pelo amor à verdade. Platão, nos diálogos em que Sócrates é o seu porta-voz, sistematicamente refere-se à verdade das coisas e da existência humana. Na disputa de Sócrates com Eutifrone, sobre a questão da piedade e o culto aos deuses mitológicos, Sócrates o questiona sobre a veracidade da existência daqueles deuses tal como crê Eutifrone, e o interpela: "Tu acreditas que entre os deuses exista realmente uma guerra recíproca e terríveis inimizades e combates (...). Teremos nós, Eutifrone, de afirmar quetudo isto é verdade?". Há neste questionamento a disposição da procurada verdade, tendo como fim o aperfeiçoamento do conhecimento. O conhecimento da verdade, na perspectiva clássica grega, do século IVa.C., não se dá separada da busca do bem. Conhecer a verdade corresponde ao que denominavam de theoria, no entanto a verdade não é só teórica, pois de acordo com Papa Bento XVI: "verdade significa mais do que saber: o conhecimento da verdade tem como finalidade oconhecimento do bem. Este é também o sentido do questionar socrático: qual é o bem que nos torna verdadeiros?"

A universidade na sua hora inaugural compunha-se das faculdades de Filosofia, Teologia, Direito e Medicina. A de Medicina foi incluída posteriormente às outras, pois era considerada como arte e não propriamente ciência, porquanto se propôs realizar a cura das doenças– não de acordo com crendices ou magias, mas segundo a razão. Como as relações entre a prática e teoria requeriam concretizações sobre as formas de aplicar a justiça e limitar a liberdade individual, destas questões incumbiu-se a Faculdade de Jurisprudência. Bento XVI, no discurso que seria proferido na Universidade de La Sapienza, refere-se à necessidade de uma forma razoável para se encontrar as soluções dos problemas da sociedade. Propõe a reflexão sobre o processo de argumentação, sobre as questões de justiça, que deve ser sensível à verdade: "Na minha opinião, Jürgen Habermas exprime um vasto consenso do pensamento contemporâneo quando afirma que a legitimidade de uma carta constitucional, como pressuposto da legalidade, derivaria de duas fontes: da participação política igualitária de todos os cidadãos e da forma razoável como são resolvidos os contrastes políticos." A propósito da referida "forma razoável", observa ele que a mesma não pode ser somente uma luta por maiorias aritméticas, mas há de caracterizar-se como um "processo de argumentação sensível à verdade".O propósito da universidade é o de promover o crescimento na sensibilidade pela verdade, para isso necessita da autonomia da ciência em relação aos interesses utilitários do poder. A ciência deve se subordinar à verdade, e na Universidade Medieval as Faculdades de Filosofia e de Teologia cumpriam esta função ao refletir sobre o bem do homem em sua totalidade. Bento XVI esclarece que: a "Faculdade de Filosofia tinha sido somente propedêutica à teologia e tornou-se (a partir da incorporação dos escritos de Aristóteles no século XII) uma verdadeira e própria Faculdade, um parceiro autônomo da teologia e da fé nela refletida."

Desde o início a universidade refletiu sobre a totalidade do bem que provém da verdade, tendo a filosofia desempenhado um papel primordial nesta tarefa. Bento XVI também esclarece sobre o perigo ao se separar a ciência da busca da verdade: "O perigo do mundo ocidental para falar somente dele é que o homem hoje, precisamente à vista da grandeza do seu saber e do seu poder, desista diante da questão da verdade; significando isto ao mesmo tempo que, no fim de contas, a razão cede face à pressão dos interesses e à atração da utilidade, obrigada a reconhecê-la como critério derradeiro".

Existe entidade universitária quando os homens, pela convivência diária, se tornaram real humanidade; e quando essa humanidade, transcendendo-se, se torna a um tempo amor e pensamento.

Professor Paulo Sertek, é consultor do Instituto de Ensino e Fomento de Curitiba e docente da Universidade Federal de Paraná.

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