domingo, 9 de novembro de 2008

O Retrato de um Mito


Karl era o mais velho dos oito filhos (cinco meninas e três meninos) de uma família estabelecida em Trier, numa casa burguesa cujo aspecto banal era similar ao de qualquer prefeitura ou escola primária provincianas. Seu pai, o advogado Heinrich Marx, filho de um antigo rabino da localidade, tinha conseguido criar para si uma sólida posição na Corte de Apelação da cidade. A mãe, pertencente a uma antiga família de rabinos holandeses, é vista pelos historiadores como um espírito prosaico, pouco dotada para a controvérsia e sempre disposta a recordar aos oradores da família as realidades domésticas. Um dia, será desaprovada — dir-se-á que foi inconveniente — essa sua reflexão irônica: “Filho, em vez de escrever sobre o Capital, seria melhor que você arranjasse algum”. Heinrich Marx era, pelo contrário, um espírito brilhante e liberal, apaixonado pelo jogo das idéias e cuja influência sobre o filho foi certamente muito grande. Ou pelo menos tão grande quanto o caráter do jovem Marx permitia.

[...] Foi um estudante como todos os outros, incluindo a habitual tendência aos versos românticos. Um estudante talvez um pouco mais aplicado do que os outros tanto ao trabalho como às diversões, e que passava repentinamente da vigília estudiosa à balbúrdia noturna. Escreveu poemas em que as moças, com o vestido banhado em lágrimas, morriam de amor sob as estrelas impassíveis, enquanto os cavalheiros incompreendidos suicidavam-se na igreja, durante o casamento da amada infiel... Mas esses repentes de febre sentimental, curados com cerveja, em breve desapareceram. O jovem Marx não tinha vocação para a lírica... Depois de um ano de sonhos infrutíferos na Universidade de Bonn, renunciou a soluçar com a literatura do seu século e entrou na Universidade de Berlim. Mas foi na de Jena que obteve, por fim, o título de Doutor em Filosofia... A violência natural do seu temperamento mudou de direção, elevou-se e passou dos adornos da ficção novelesca ao plano superior das idéias. Marx já era então o que seria até o final: combativo, seguro da sua própria capacidade intelectual como lógico realista propenso à ironia, e animado pela inquebrantável convicção de que o seu único dever era o de “trabalhar pelo bem da Humanidade”, como havia escrito aos quinze anos nas Reflexões de um jovem diante da escolha da carreira.

[...] É então que chega a luz para o jovem Marx, sob a forma glacial da filosofia de Georg Wilhelm Friedrich Hegel, mestre da dialética, ex-seminarista luterano de Tübingen e refinado artífice de uma doutrina hiper-intelectualista. Uma doutrina que começa abordando o próprio princípio da Idéia, cujo desenvolvimento através das contradições da História constituiria a realidade de todas as coisas. A célebre “dialética” de Hegel consiste em conciliar uma afirmação e a sua subseqüente negação na unidade superior da síntese. Um exemplo: a idéia de “ser” introduz a de “não-ser” ou “nada”, e estas duas idéias contraditórias formam juntas a noção de “devir”.

[...] O método hegeliano havia proporcionado a Karl Marx a ferramenta de que o seu pensamento precisava. A crueldade da “condição proletária” deixou-o indignado, centuplicou a sua vontade de agir e converteu o jovem pensador, apaixonado pela especulação filosófica, no general revolucionário mais conseqüente e temível de todos os tempos. O marxismo nascente seria uma mistura explosiva de lógica e indignação. Estava pronta a armação da sua máquina de guerra contra o mundo da ganância. A anarquia glutona da sociedade da época indicava-lhe o inimigo: o “capitalismo burguês”; as suas tropas: o proletariado; o campo de batalha: a mina, a fábrica, a oficina, todos os lugares de trabalho e de miséria nas cidades e nos campos.

[...] O destino proporcionou-lhe um inestimável aliado na pessoa do jovem Friedrich Engels, nascido em 1820 numa rica família industrial de Bremen. Tratava-se de um espírito agudo, tão hábil para os negócios como ágil nas decisões políticas; um elegante personagem que seria como um fiel Saint-Just para esse novo Robespierre, um Saint-Just previsor que salvaria o amigo da miséria e sustentaria até o fim a desastrosa economia doméstica do teórico da Economia Universal.

[...] Numerosos textos políticos trarão a assinatura conjunta dos dois amigos, sem que hoje seja possível distinguir qual foi a contribuição de cada um para a obra comum. Redigem conjuntamente o famoso Manifesto do Partido Comunista, cuja publicação coincide com a revolução de 1848, e que contém os principais traços de sua doutrina.

[...] A fama do doutrinário estende-se muito além dos círculos revolucionários, mas os seus êxitos respeitáveis não suavizam nem o seu caráter, nem a dureza das suas réplicas. Não discute: maneja os argumentos como um bloco, esmaga quem o contradiga e vai embora, sacudindo a cabeleira. As celebridades têm menos facilidade para se aproximar dele do que os operários.

[...] Era um carniceiro que devorava sobretudo papel. Em Londres, onde passou a maior parte dos seus últimos trinta anos, indo de um bairro a outro conforme o estado dos seus recursos, da paciência dos proprietários e das amistosas subvenções de Engels, escreve a sua obra mais importante, O Capital, usando frases complexas, enroladas como molas e sem se preocupar com a conclusão. O ponto crucial da abordagem é a teoria segundo a qual o trabalho, como qualquer outra mercadoria, tem o seu valor determinado pelas necessidades do operário, e o excedente constitui a “mais-valia”, cujo benefício reverte ao capital.

[...] A maioria dos marxistas não conhece O Capital melhor do que os católicos conhecem a Suma Teológica de São Tomás de Aquino. O pensamento de Marx, que também parece proceder da indústria pesada, deixou um método qualificado pomposamente de científico e um catecismo revolucionário que deram a volta ao mundo. Mas as teorias filosófico-econômicas tiradas do marxismo foram em todo lugar refutadas pelos fatos e não deram bons resultados em lugar nenhum. Apesar da abolição da propriedade privada — final simbólico da “exploração do homem pelo homem” — nos países socialistas, e do extermínio direto ou indireto de milhões de seres humanos, sacrificados em nome — ou por causa — da “ideologia” do Partido, ninguém viveu, nem sequer por um só dia, o ideal da sociedade sem classes. Nenhum povo da Terra passou-se para o comunismo pelo efeito da lógica marxista, e todos os que viveram essa experiência foram obrigados a isso pela força das armas, ao amparo de duas Guerras Mundiais. E à desgraça doutrinal deve-se acrescentar o fato de que o marxismo — ao fazer com que os governos “burgueses” se vissem forçados a finalmente elaborar uma política social, que foi com freqüência eficaz — acabou contribuindo para a consolidação do capitalismo.

Karl Marx queria sinceramente a libertação da Humanidade, mas os seus seguidores a aprisionaram num totalitarismo sem precedentes; queria um Homem novo, mas o Homem novo surgiu com a mente de um comissário político; pensava que a “ditadura do proletariado” duraria algumas semanas, mas ela se manteve por setenta anos. Pode dizer-se que Marx tinha previsto tudo, menos o marxismo, que — como se fosse um sacramento das trevas — em toda parte produziu o contrário do que significava.

A razão troveja em sua cratera”, dizia o magnífico canto da classe operária. Hoje não se vê nada além da cratera na qual ficou sepultada a pátria do socialismo e, com ela, umas esperanças traídas.

André Frossard, Les grands bergers: d´Abraham a Karl Marx, Paris, 1992.

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