domingo, 10 de maio de 2009

PORTICO: O Apóstolo do Senso Comum

Esta semana lhes ofereceremos a figura de Gilbert Keith Chesterton, um dos maiores e mais populares escritores católicos do século passado. Romancista, poeta, crítico literário, ensaísta, polemista, apologeta, jornalista, biógrafo, cartunista e filósofo do senso comum, mas acima de tudo, um filho devoto que procurando a Verdade encontro seu lar, ou melhor, “O lar”: o Catolicismo. Selecionamos para você um texto de Ortodoxia, considerado um livro fundamental para compreender seu pensamento; Homesick at home, o conto citado em nossa nota biográfica e que é um retrato do seu itinerário espiritual; e um poema inédito em português escrito para Frances Blogg, antes dela tornar-se sua esposa. Também o testemunho de Gustavo Corção sobre a influência que a obra de Chesterton teve na sua procura pelo sentido da vida. Para terminar, o próprio mestre dos paradoxos nos explica as razões pelas quais tornou-se católico, num artigo traducido pelo professor Antonio Emilio Angueth de Araújo, doutorado pela University of British Columbia, docente da Universidade Federal de Minas Gerais e chestertoniano inveterado.

Por certo que o pedido formal à dioceses de Northampton, na Inglaterra, para a beatificação do gigante inglês esta sendo organizado por Dale Ahlquist, Presidente de la American Chesterton Society. Quem sabe e os escritores de tramas policiais ganhem um intercessor oficial no céu. Boa Leitura...

OS EDITORES

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Chesterton: O mestre dos Paradoxos

Toda a vida de Gilbert Keith Chesterton, um dos maiores e mais lidos apologistas cristãos do século XX, pode ser compreendida como a viagem de um homem que sai de um e volta ao mesmo lugar. Como o personagem do conto por ele redigido, Homesick at home, que percorre todo o mundo tentando voltar para casa, ponto de partida da viagem, foi preciso que Chesterton vivesse longos anos de inquietações espirituais para finalmente encontrar a verdade da fé católica.

Eis o resumo da aventura espiritual de Chesterton: durante todo o tempo, ao longo dos anos de sua vida, ele estava em casa, mas não se reconhecia em casa. As coisas estavam lá, o tempo todo, diante de seus olhos, mas ele não as via. A filosofia em que Chesterton sempre acreditou era aquela que aprendeu quando criança: a dos contos de fadas, o reino luminoso do senso comum. Encontrou no cristianismo, e só nele, a correspondência a essa filosofia e as respostas para os dilemas e paradoxos da vida.

Nasceu Gilbert Keith Chesterton em Kensington, distrito central de Londres, em 29 de maio de 1874, filho de Edward Chesterton e Marie Louise Keith. A primeira filha do casal, Beatrice, morreu aos 8 anos de idade. Gilbert teve como único irmão Cecil, com quem se dava muito bem.

Embora batizado e formado segundo a tradição anglicana, desde muito cedo o garoto demonstrou admiração pelo católico, particularmente pela pessoa da Virgem Maria, conforme confessou mais tarde: “Mal consigo recordar um tempo em que a imagem de Nossa Senhora não se erga muito concretamente no meu espírito [...]. Quando recordava a Igreja Católica, recordava-a a Ela; quando tentava esquecer a Igreja Católica, tentava esquecê-la a Ela”.

A infância de Chesterton foi marcada pela alegria genuína do meio familiar: a casa sempre cheia de primos e amigos, povoada de iluminuras medievais, estampas antigas, fadas, gnomos e duendes do teatro de marionetes com que seu pai divertia as crianças.

Chesterton estudou no Saint Paul’s College, onde viveu uma realidade amarga, duramente contrastante com a alegria do lar. Eis, segundo suas próprias palavras, um resumo da sua juventude: “Eu era um pagão à idade de 12 anos, e um completo agnóstico aos dezesseis... Eu nunca li uma linha da apologética cristã.” Foi inclusive atormentado na adolescência por pensamentos de suicídio.

Não freqüentou a Faculdade, como a maioria de seus amigos, mas a Escola de Artes, que não chegou a terminar. Estreou na imprensa como crítico de arte, mas logo teve seus horizontes jornalísticos ampliados por outros temas. Prolífico e versátil, o escritor inglês sentia-se à vontade em praticamente qualquer gênero literário e assunto. Poeta, narrador, ensaísta, desenhista, teólogo, filósofo, jornalista, historiador, biógrafo, crítico literário, conferencista... Seus vôos poéticos iam do cômico O Vegetariano Lógico à grave e magnífica Lepanto, ambos textos de 1915.

A primeira obra de Chesterton, um conjunto de poemas e ilustrações, recebeu o título de Greybeards at Play e foi publicada em 1900. Já nela se nota o seu humor sadio e o desejo permanente de transmitir o gozo pela realidade das coisas, pelo simples fato de as coisas serem. “No espanto há um elemento positivo de prece”, escreveu mais tarde. Chesterton foi, sim, um apaixonado pelo universo, entendido aqui, é claro, não num sentido panteísta. Deleitava-se nas coisas porque sabia perfeitamente bem que elas não precisavam existir: “cada homem na rua é um grande poderia-não-ter-sido”.

Durante a Guerra dos Boers (1899-1902) na África do Sul, Chesterton escrevia artigos no semanário liberal The Speaker contra a Guerra, que considerava injusta e imperialista. Nessa época travou estreita amizade com Hilaire Belloc, deputado na Câmara dos Comuns, que também se opunha à investida militar. Belloc e Chesterton se tornaram tão próximos que Bernard Shaw chegou a falar num certo “monstro biforme Chesterbelloc”. Os dois amigos desenvolveram juntos a teoria do Distributismo (ou Distribucionismo), teoria política critica do capitalismo e do socialismo.

No ensaio Eugenia e outros males (1922), Chesterton atacava o que em seu tempo parecia ser uma das idéias mais progressivas, a idéia de que a raça humana poderia e deveria dar origem a uma versão superior de si mesma. Temos aí um exemplo de sua análise lúcida e profética dos acontecimentos que desembocariam no nazismo.

Chesterton discutiu com alguns dos mais célebres intelectuais de seu tempo: George Bernard Shaw, Herbert George Wells, Bertrand Russell, Clarence Darrow. Atraía multidões aos debates e quase sempre saía como vencedor. E mais: se sabia enfrentar com valentia os adversários, no trato pessoal nunca deixava o cavalheirismo e a delicadeza de lado. Combatia o pecado, não o pecador. E por isso amava os inimigos. Tanto assim que todos os seus oponentes o tratavam com o máximo respeito e estima; Shaw, por exemplo, chegou a dizer: "O mundo não agradeceu o suficiente a Chesterton".

Esta influência continuou depois de sua morte. Clive Staples Lewis, ao se aproximar do cristianismo, escreveu: “Chesterton tem mais razão que todos os outros modernos juntos”. Chesterton também influenciou a conversão de Evelyn Waugh e, indiretamente, a de Graham Greene. E Dorothy Sayers confessou que foi a Ortodoxia (1908) que lhe revigorou e salvou a fé na juventude, o mesmo sucedendo a Ronald Knox. E – podemos nos perguntar – quantos cristãos anônimos não deverão à leitura de Chesterton a descoberta, ou redescoberta, daquela “beleza tão antiga e tão nova” de que fala Santo Agostinho ao se referir à fé católica?

Chesterton foi um grande homem, também, porque sabia rir-se de tudo e de todos, a começar de si mesmo: num desenho intitulado “Como eu sou”, vemo-lo muito gordo (como de fato era), desajeitado, cabelos desgrenhados; num outro, “Como eu gostaria de ser”, encontramo-lo de perfil, barba desenhada, porte nobre. Saber rir-se de si mesmo, afinal, é uma das marcas da verdadeira humildade.

Defendia o matrimônio e a família, o homem comum, o bom senso, a beleza e a Igreja. Desconfiava da concentração de poder e da abundância material. Era otimista, mas não tolo. Tinha uma visão alegre da existência e gostava da polêmica e dos paradoxos.

Sobre esse último ponto, aliás, vale ressaltar que Chesterton recorria constantemente aos paradoxos não como um garoto em busca de auto-afirmação, mas com a intenção consciente de apresentar a realidade tal como ela é. De acordo com Gustavo Corção, “Chesterton não procurou nos seus tão admirados paradoxos fazer acrobacias verbais, e muito menos procurou jogos para agradar os jovens e os imaturos. Pascal, com seu timbre de abismos, não é mais trágico nem mais sério do que Gilbert Keith Chesterton”.

Na obra Heretics (1905), atacou com fino humor e lógica impecável o subjetivismo ético de George Moore, o socialismo desumanizador de Bernard Shaw, o imperialismo de Rudyard Kipling, o historicismo naturalista de Herbert George Wells, o esteticismo aético de Oscar Wilde. Chesterton explicava ali por que não era ele próprio um seguidor das filosofias da moda: não as seguia porque as compreendia, via a desordem sobre a qual estavam fundadas. O escritor inglês, afinal, sempre soube enxergar as contradições de seus contemporâneos; foram eles, com suas inúmeras contradições, e não os cristãos, que o empurraram para a fé cristã.

Ortodoxia (1908), uma de suas obras-primas, pode ser vista como um resumo da filosofia de Chesterton. O resumo daquilo em que acreditava e que um dia percebeu, não sem espanto, coincidir com o credo cristão. O livro foi escrito como resposta a um crítico de Heretics, que cobrava de Chesterton a exposição de sua própria visão de mundo. Dizia o crítico que atacar e destruir todo o mundo era fácil; difícil mesmo era construir uma visão sólida e coerente da realidade. Então Chesterton, “sempre disposto a escrever um livro à menor provocação”, escreveu Ortodoxia, em que tentava demonstrar, entre outras coisas, que (1) o racionalismo levado às últimas conseqüências conduz ao suicídio do pensamento; (2) a tradição tem um caráter democrático (dar o direito de voto aos nossos antepassados); (3) a teoria da felicidade condicional, ou “ética do país das fadas”, é a mais sadia: tudo é permitido, em troca de uma pequena coisa que é negada e (4) a doutrina cristã traz um acerto paradoxal (o ponto de equilíbrio entre virtudes contrárias).

Sobre o segundo ponto, o caráter democrático da tradição, isto é, a transmissão da cultura, do legado grego, romano e judaico e do legado da Europa nos últimos dois mil anos, vale dizer que, num mundo de devastação cultural como o atual, essa herança espiritual corre grande perigo. Tratava-se, para Chesterton, de uma tradição sagrada, que salvaguarda as verdades eternas, que falam com autoridade para cada nova geração. A mais alta função da arte, portanto, é expressar os fatores comuns mais elevados da vida humana e não os seus denominadores comuns inferiores – os amores da vida e não suas luxúrias. É nesse sentido que devemos entender a literatura de Chesterton.

Ao contrário da austeridade que a princípio o título pode sugerir, Ortodoxia significa nada mais, nada menos que “a opinião certa”. Quer dizer que há uma opinião certa e outra errada sobre o que somos nós e o mundo onde vivemos, e que a diferença entre as duas importa fundamentalmente no modo como vivemos. Embora não seja uma autobiografia, é uma obra bastante autobiográfica. Embora Chesterton não fosse católico quando a escreveu, Ortodoxia é provavelmente um dos melhores livros católicos escritos no século XX.

A filosofia de Chesterton ali exposta lhe dava liberdade para aceitar ou rejeitar os milagres com base nas evidências. Já o filósofo determinista estava obrigado, por princípio, a rejeitar todos os milagres sem sequer examiná-los. Logo, Chesterton, o ortodoxo, era mais livre que o filósofo determinista, escravo de seus postulados e preconceitos.

Naturalmente, com a fama literária, chegaram convites para conferências nos mais distantes pontos da Inglaterra e a aquisição de novos e importantes amigos: Joseph Conrad, Henry James, Baden Powell, Winston Churchill e Thomas Hardy, para citar apenas alguns.

Suas inquietações espirituais se canalizaram em certo momento para o espiritismo. Nessa mesma época conheceu Frances Blogg, sua futura esposa. Ele, idealista e distraído; ela, prática e de fortes convicções religiosas, anglicana praticante. Enquanto Frances era ordenada, metódica, comedida e pontual, o marido era o típico gênio distraído, pródigo, desleixado com a aparência pessoal e sem ter idéia do tempo. Shaw o definiu como um “querubim gigantesco”: um menino disfarçado de adulto, com sua cara gorda e redonda e sua expressão infantil. Duas anedotas ilustram bem esse aspecto da personalidade de Chesterton: Um dia sua esposa recebeu um telefonema do marido, que se encontrava numa estação de trem: "Estou em Harborough Market. Onde deveria estar agora?" Noutra ocasião, distraído como sempre, Chesterton pediu um café à senhorita que trabalhava no guichê de... uma estação ferroviária.

Embora apreciasse muito a companhia de crianças, Chesterton não teve filhos porque sua esposa não os pôde ter, mas em compensação teve uma excelente secretária, a Sra. Dorothy Collins, que foi como uma filha adotiva para o casal. Por fim, ela acabou se tornando administradora do legado literário do patrão, levando adiante a publicação de suas obras após a morte.

Apesar da distração, a capacidade do “apóstolo do senso comum” para o trabalho era impressionante: Chesterton escreveu uma centena de livros, contribuições para outros duzentos, centenas de poemas (entre os quais um épico), cinco peças de teatro, cinco romances e uns duzentos contos, incluindo a popular série de contos policiais do Padre Brown, que foi inclusive adaptada para televisão. Escreveu mais de 4000 artigos, entre os quais trinta anos de colunas semanais para o Illustrated London News e treze anos de colunas semanais para o Daily News, além dos textos diversos que redigiu para o seu próprio jornal, G.K.’s Weekly.

Foi esse alegre homenzarrão inglês quem escreveu um romance intitulado O Napoleão de Nothing Hill (1904), que inspiraria Michael Collins a liderar o movimento pela independência da Irlanda, e também um artigo no Illustrated London News que inspiraria Mohandas Gandhi a liderar o movimento que pôs fim ao domínio colonial inglês na Índia. É O Napoleão de Notting Hill, aliás, considerada por muitos como a melhor novela escrita por qualquer um dos grandes escritores de ficção ingleses.

Em 1911 começou a sua aproximação mais séria ao catolicismo. Foi nesse período que o escritor inglês conheceu o Padre John O'Connor, que lhe inspirou a criação de um dos personagens mais conhecidos da literatura policial inglesa: o Padre Brown. O clérigo “baixinho, de rosto afável e expressão de duende”, como o definiu seu criador, dá conta de resolver todos os casos, não apoiado na lógica mais rigorosa e no método científico, mas partindo simplesmente da sua experiência, do senso-comum, do conhecimento da natureza humana. O padre detetive assim se expressa numa de suas histórias: “O criminalista olha para o criminoso como um ser estranho e abjeto; eu o vejo como a mim mesmo, capaz de cometer qualquer barbaridade: daí que me pergunto como faria o que ele fez.”. As histórias do Pe. Brown, embora muito divertidas, não são apenas entretenimento, porque a habilidade do detetive para solucionar crimes está baseada no seu conhecimento profundo da natureza humana, adquirido no dia-a-dia do confessionário.

Do contato com o Pe. O'Connor nasceu o desejo de Chesterton de se fazer católico, ele era então anglicano. Nesse processo foi fundamental também a ajuda de seus amigos Maurice Baring e o Pe. Ronald Knox. Numa carta ao amigo Belloc, Chesterton mais tarde assim se expressava: “A Igreja Católica é o lar natural do espírito humano. A estranha perspectiva da vida, que ao princípio parece um quebra-cabeça sem sentido, tomada sob esse ponto de vista, adquire ordem e sentido”. Seu processo de conversão, no entanto, foi lento.

O homem que tanto podia debater seriamente com pensadores do porte de um Bertrand Russell quanto se divertir com crianças numa festinha de aniversário, entrou na Igreja Católica em 1922. Sua conversão foi então um dos mais comentados eventos religiosos na Europa desde a conversão do cardeal John Henry Newman, ocorrida 75 anos antes. Mais tarde, também sua esposa Frances se converteria ao catolicismo.

Na sua Autobiografia (1936), afirmava que a teologia católica é “a única não só que pensou, mas que pensou sobre tudo. Que quase todas as demais teologias ou filosofias contêm alguma verdade, não o nego; ao contrário, é isso o que afirmo, e é disso que me queixo. Sei que todos os demais sistemas ou seitas se contentam com seguir uma verdade, teológica ou teosófica, ética ou metafísica; e, quanto mais reclamam-se universais, mais isso significa que colhem algo e o aplicam a tudo”. Só a teologia católica era, e é, universal.

Quando lhe perguntaram por que afinal se converteu ao catolicismo, Chesterton respondeu: “Porque eu queria me livrar dos meus pecados.” E arrematou: “A Igreja Católica é a única que realmente apaga os pecados.” Ecoando a história de Santo Tomás e a velhinha, Chesterton confessava na Autobiografia que o catecismo lhe ensinou tudo o que a ciência, a filosofia pagã e o mundo não sabem. Ensinou-lhe o óbvio: que o orgulho e o desespero são pecados e que o único remédio para eles é estar no mundo com humildade. Só a aceitação de grandes mistérios, concluía Chesterton, depois de estudar inúmeras filosofias e aderir a diversos “ismos”, é capaz de manter a lucidez do espírito humano; sua negação conduz invariavelmente à loucura: “Aceitar todas as coisas é um exercício, mas compreender todas as coisas é um frenesi.” E mais adiante, comparando o lunático com o poeta (que sería uma pessoa sã), escreveu: “O poeta procura apenas a exaltação e a expansão, isto é, procura um mundo onde se possa distender. Pretende ele, simplesmente, enfiar a cabeça nos céus, ao passo que o lógico se esforça por enfiar os céus na cabeça. E é a cabeça que estala.”

Uma das vantagens da conversão é sabermos a quem devemos agradecer a alegria de existir; é, melhor dizendo, termos a quem agradecer. “O teste de toda felicidade é a gratidão; e eu me sentia grato, embora mal pudesse saber a quem”. Eis a maneira de Chesterton expressar sua realização: afinal, o bem é realmente bem, o belo é realmente belo, o verdadeiro é realmente verdadeiro. Estava em casa, por fim.

Toda a obra de Chesterton é como que um hino à alegria. É alegre e arriscado viver. A existência do livre-arbítrio, contrariando o determinismo, torna a vida perigosa e excitante: a partir daí todas as nossas escolhas são infinitamente sérias e potencialmente perigosas.

Depois de Heretics e Ortodoxia, outra obra-prima foi escrita no fim de sua vida: a biografia Santo Tomás de Aquino (1933), cujo valor foi atestado por Étienne Gilson, famoso filósofo tomista, que a considerou “o melhor livro jamais escrito sobre Santo Tomás.”

Mais afastado da imprensa, o “querubim gigantesco” dedicou os anos de 1923 e 1924 para redigir, com a tranqüilidade que lhe convinha, aquela que seria considerada por muitos a sua melhor obra: O Homem Eterno (1925), em que expunha a sua filosofia da História, tendo como eixo o mistério de Deus encarnado. Esse livro foi crucial para a conversão de Lewis, que acabou por se tornar também um dos apologistas cristãos mais importantes do século passado.

Em suma: em todas as suas obras é patente o entusiasmo do escritor pela realidade, pelo que é. Chesterton era o grande inimigo do racionalismo idealista e cético. É notável em seus escritos a atitude profundamente humilde do espectador que se maravilha diante do quadro à sua frente: a realidade da Criação.

Chesterton guardou a fé até o último instante, recebendo a extrema-unção de seu amado Padre O’Connor. Faleceu em 14 de junho de 1936, aos 62 anos, em Beaconsfield, Buckinghamshire. O Papa Pio XI, em telegrama ao povo da Inglaterra, escreveu: “Santo Padre profundamente consternado morte de Gilbert Keith Chesterton, devoto filho Santa Igreja, dotado defensor da Fé Católica”.

Os escritos do criador do Pe. Brown foram saudados por Ernest Hemingway, Graham Greene, Evelyn Waugh, Jorge Luis Borges, Gabriel Garcia Marquez, Karel Capek, Marshall McLuhan, Paul Claudel, Dorothy Leigh Sayers, Agatha Christie, Sigrid Undset, Ronald Knox, Kingsley Amis, Wystan Hugh Auden, Anthony Burgess, Ernst Friedrich Schumacher, Orson Welles e até Neil Gaiman. Para não falarmos no nosso grande Gustavo Corção. Segundo Thomas Stearns Eliot, Chesterton “merece o direito perpétuo à nossa lealdade”.

A respeito da missão de Chesterton, o Padre Leonardo Castellani ressalta que ela consiste em “rir, fantasiar, disputar, atirar-se no pasto e andar de pernas para o ar, cantar as verdades mais gordas à tesa Inglaterra, denegrir copiosamente os políticos, banqueiros, cientistas e literatos, escarnecer os inimigos e crer na Igreja Católica Romana; mas a graça está em que isto último é o que dá poder ao primeiro”.

Já em A abolição do homem, Clive Staples Lewis assinala: “Até agora, os planos educativos conseguiram pouco do que pretendiam e, de fato, quando os relemos – vendo como Platão faria de cada criança ‘um bastardo criado em uma repartição pública’, e como Elyot desejava que a criança não visse homem nenhum até os sete anos e, completada essa idade, não visse nenhuma mulher, e como Locke queria os meninos de sapatos esfarrapados e sem aptidão para a poesia –, podemos agradecer a benéfica teimosia das verdadeiras mães, das verdadeiras amas e (sobretudo) das verdadeiras crianças por preservar a sanidade que a raça humana ainda possui.” Os grifos são nossos.

Sem hesitar incluímos o “querubim gigantesco” entre as “verdadeiras crianças”, aproveitando para lhe agradecer a benéfica lucidez que pode preservar a sanidade da raça humana – ou, ao menos, de alguns representantes da raça. Chesterton nos ensina, como ensinou a vários grandes homens, e também a muitos pequenos cristãos, anônimos, a ver o cristianismo com novas lentes. Assim como os antigos monges costumavam recomendar a leitura dos Salmos para curar a tristeza ou a acídia, também não podemos deixar de recomendar, contra uma visão cinzenta e sem graça do cristianismo, a leitura desse grande médico de almas que foi Gilbert Keith Chesterton.

Nota biográfica preparada por Davi James Dias, membro do Nuec,
Belo Horizonte, Maio de 2009

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O caminho para se ir de um lugar ao mesmo lugar...

Alguém que me pareceu ser um viajante, a julgar pelas aparências, aproximou-se de mim e indagou-me: "Qual é o caminho mais curto para se ir de um lugar ao mesmo lugar?"

O sol ocultava-se atrás de sua cabeça, de modo que não pude decifrar-lhe o rosto.

— Certamente, respondi, é permanecer no mesmo lugar.

— De modo algum, replicou. O caminho mais curto para se ir de um lugar ao mesmo lugar é dar volta ao mundo.
E foi-se.

White Wynd vivia com a família na Fazenda Branca, ao pé do rio. Ali mesmo nasceu, cresceu e contraiu casamento. A Fazenda era cercada pelo rio por três lados, como um castelo. No quarto havia estábulos e além dos estábulos uma horta, e além da horta um pomar, e além do pomar um muro baixo, e além do muro uma estrada, e além da estrada um pinheiral, e além do pinheiral um campo de trigo, e além o campo de montanhas furando o céu, e além... mas não devemos, a despeito da tentação, catalogar o mundo inteiro. White Wynd não conhecia outro lar senão o seu. O seu mundo estava confinado àquelas paredes. O céu era o telhado.

Tudo isso é que torna tão estranho o seu procedimento.

Nos últimos anos ele já raramente transpunha a soleira da porta. A indolência deixava-o inquieto e mal humorado. Vivia ansiando pelo próximo momento.

A esposa e os filhos, muito embora fossem ótimas pessoas, eram os que mais sofriam com as mudanças de seu temperamento. Mesmo para eles seu coração tornara-se árido e amargo. Recordava-se, confusamente, dos dias difíceis de luta pelo pão, quando, regressando à noite do trabalho, via sua casa brilhar como ouro, como se estivesse povoada de anjos. Mas a lembrança esfumava-se como um sonho.

Cada dia que passava sentia-se mais capaz de compreender outros lares, menos o seu. O seu era apenas uma casa. A nostalgia tomara conta dele, fechando-lhe os olhos e os ouvidos.

Alguma coisa, enfim, se passava dentro dele: um vulcão; um terremoto; um eclipse; uma aurora; um dilúvio; um apocalipse. Não será o apêlo a palavras grandiosas que nos desvendará o mistério de seu coração.

Muitas e muitas vezes a manhã surpreendera a pequena familia reunida na cosinha para a primeira refeição. Na última vez o pai, interrompendo o café, falou cismadoramente:

— Aquele campo verde, brilhando ao sol, como que me lembra um campo de meu próprio lar.

— Seu próprio lar? perguntou a esposa. Esse é o seu lar.

White Wynd ergueu-se e sua figura parecia cobrir toda a sala. Apanhou o chapéu e o bordão, cobertos de pó.

— Pai! exclamou um dos filhos. Aonde vai?

— Para casa.

— Como assim? Se esta é sua casa. Aonde vai, pai?

— Para a Fazenda Branca, ao pé do rio.

— Mas é esta!

Ele as olhava tranqüilamente quando a filha mais velha leu a verdade nos seus olhos.

— Oh! Ele está louco, gritou.

E enterrou o rosto nas mãos.

White Wynd falava calmamente.

— Você, acrescentou dirigindo-se à filha, você me lembra um pouco a minha primogênita... mas não tem o mesmo olhar dela, aquele olhar que era como uma benção depois do trabalho.

— Senhora, disse, voltando-se cortesmente para a esposa boquiaberta, agradeço-lhe a hospitalidade, mas receio que já haja abusado muito dela. E meu lar...

— Pai! Pai! responde-me. Não é este o seu lar?

O velho brandiu o bordão no ar.

— Os portais estão cobertos de teias de aranha e as paredes estão marcadas pelas chuvas. As portas dobram-me e as vigas esmagam-me. Só há ninharia, disputa e rancores atrás dessas rótulas onde tenho vivido há tanto tempo. Lá na casa onde nasci, longe do mundo, há pão e água, fogo e roupa, e todos os mistérios e artifícios do amor. Há descanso para os pés fatigados e rostos tranqüilos para repouso dos corações famintos.

— Onde? Onde?

— Na Fazenda Branca, ao pé do rio.

E atravessou a porta, o sol brilhando-lhe na face. E os moradores da Fazenda Branca olharam-se com espanto.

White Wynd, na ponte de madeira sobre o rio, sentiu o mundo a seus pés. Um grande vento veio-lhe ao encontro, do outro lado do céu (da terra de maravilhosos reverberos). Quem pode saber o que significa para o homem o efeito do primeiro vento soprando em campo aberto? Ele, pelo menos, sentia-se como se Deus houvesse puxado sua cabeça para trás e beijado-lhe a fronte.
Wynd gastara-se no repouso, sem saber que o remédio está no sol, no vento e no próprio corpo. Estava propenso a acreditar que usava agora a bota de sete léguas.

Ia para casa. A Fazenda Branca devia estar atrás de cada bosque e além de cada montanha. Procurava-a como procuramos o país das fadas, em cada volta do caminho. Só não a buscava numa direção, lá onde, a uma milha atrás, erguia-se a Fazenda Branca, fulgurando contra o céu brumoso da manhã.

Sentia-se como um gigante comparado com os dentes-de-leão e os grilos ao seu redor. É um velho costume nosso medir-nos pelas montanhas. Todo objeto pode ser infinitamente grande como infinitamente pequeno. E Wynd cresceu como um crucificado na sua incontida grandeza.

— Ó Deus, vós que me criastes e a todas as coisas, ouvi quatro cantos de louvor. Um por meus pés, que fizestes fortes e ligeiros sobre vossas margaridas; um por minha cabeça, que vós erguestes e coroastes acima dos quatro cantos do céu; um por meu coração, que fizestes igual ao coração dos anjos entoando a vossa glória. E um por aquela nuvenzinha pálida ao longe, sobre as colinas.

E White sentiu-se como um novo Adão recentemente criado. Era o senhor de todas as coisas, inclusive do sol e das estrelas.

Devia ser uma epopéia a história da viagem de White Wynd. Ele viveu esquecido e esmagado nas grandes cidades. Contudo não esmoreceu. Trabalhou nas pedreiras, nas docas de todos os países por onde passou. Viveu inúmeras existências, como uma alma errante. Até entre vagabundos, forçados, marinheiros e pescadores. Cada um contou-lhe o acontecimento decisivo de sua vida. Até o homem alto e magro, de olhos iguais a duas estrelas, estrelas de uma velha obstinação.

Mas ele nunca se desviou dos limites da terra. Uma tarde suave de verão, todavia, sucedeu-lhe a coisa mais estranha de toda a viagem. Esforçava-se penosamente para galgar uma enorme duna, que tudo ocultava, como se fosse a própria cúpula do mundo, quando, de súbito, invadiu-o uma sensação estranha. Olhou para trás a ver se descobria qualquer sinal de fronteira, pois a sua sensação era de quem acabasse de ingressar no país das fadas. Com o espírito abrasado por novos sentimentos, assaltado por lembranças confusas, marchou penosamente no topo da colina. O sol no ocaso raiava na sua glória universal. Entre ele e o sol, à altura dos campos, uma como nuvem branca surgiu ante seus olhos marejados. Não, não era uma nuvem. Era um palácio de mármore. Não, era a Fazenda Branca, ao pé do rio.

Chegara ao fim do mundo. Todo lugar na terra é o começo ou o fim, segundo o coração do homem. Eis a vantagem de se viver num planeta esférico.

Anoitecia. Toda a extensão da terra onde estava fundira-se em ouro. A relva transformara-se em fogo sob seus pés. White Wynd estava tão quieto que os pássaros pousaram no seu bordão.

A terra inteira na sua glória parecia rejubilar-se com a volta do homem pródigo, os pássaros reconheciam-no. A própria Natureza estava na posse do seu segredo, o homem que tinha viajado de um lugar para o mesmo lugar.

Apoiou-se com fadiga no cajado. E mais uma vez ergue a sua voz.

— Ó Deus, vós que me criastes e a todas as coisas, ouvi quatro cantos de louvor. Primeiro por meus pés, que estão feridos e vagarosos, agora que se aproximam de minha casa. Um por minha cabeça, que está dereada e encanecida, agora que a coroastes com o sol. Um por meu coração, porque lhe ensinastes na tristeza e na esperança sempre adiada, que é a estrada que faz a casa. E um pelas margaridas a meus pés.

Desceu a encosta da colina e penetrou no pinheiral. Os raios vermelhos e dourados do sol agonizante derramavam-se sobre as casas da fazenda e os galhos verdes das macieiras. Era agora o seu lar. Mas ele só ficou sendo o seu lar depois de o ter abandonado. Só agora que voltava de uma longa viagem era o Filho Pródigo.

Saiu do pinheiral e atravessou a estrada. Transpôs o muro baixo, errou através do pomar e da horta, passou pelos estábulos dos animais. E no pátio de pedra viu sua mulher puxando água.

GILBERT KEITH CHESTERTON, conto Homesick at home,
do livro The Coloured Lands, Londres, 1938.
Tradução de Francisco Barbosa de Rezende.

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Nada tão perigoso ou apaixonante como a Ortodoxia

E verdade que a Igreja histórica enfatizou ao mesmo tempo o celibato e a família, defendeu ferozmente ao mesmo tempo (se assim se pode dizer) que se deve ter filhos e que não se deve tê-los. Manteve as duas coisas lado a lado como duas cores fortes, vermelho e branco, como o vermelho e o branco no escudo de São Jorge. Sempre teve um ódio sadio pelo rosa. Ela odeia a combinação de duas cores, que é o fraco recurso dos filósofos. Ela odeia essa evolução do preto para o branco, que é o mesmo que um cinza sujo.

De fato, toda a teoria da Igreja sobre a virgindade poderia ser simbolizada na afirmação de que o branco é uma cor: não simplesmente a ausência de cor. Tudo aquilo em que estou insistindo aqui pode ser expresso dizendo-se que o cristianismo procurou, na maioria desses casos, manter as duas cores coexistindo, porém puras. Não se trata de uma mistura como o castanho ou o roxo; trata-se antes de algo como a seda jaspeada, pois a seda lustrada sempre forma ângulos retos, segundo o padrão da cruz.

Isso acontece, naturalmente, com as acusações contraditórias dos anticristãos sobre a submissão e a carnificina. Pois é verdade que Igreja pediu que alguns homens lutassem e que outros não lutassem; e é verdade que aqueles que lutaram comportaram-se como raios e aqueles que não lutaram, como estátuas [...] Deve haver algo de bom na vida da batalha, pois tantos homens bons sentiram prazer em ser soldados. Deve haver algo de bom na idéia da não-resistência, pois tantos homens bons parecem gostar de ser quacres. Tudo o que a Igreja fez (no que se refere a esse ponto) foi impedir que uma dessas coisas boas desbancasse a outra. Elas existiram lado a lado.

[...] E às vezes essa pura gentileza e essa pura ferocidade se encontraram e justificaram a sua junção; o paradoxo de todos os profetas se cumpriu, e, na alma do rei São Luís (IX, de França), o leão deitou-se com o cordeiro. Mas é preciso lembrar que o texto é interpretado com demasiada leviandade. Com freqüência se assegura, especialmente em nossas tendências tolstoianas, que quando o leão se deita com o cordeiro o leão torna-se semelhante ao cordeiro. Mas isso é brutal anexação e imperialismo da parte do cordeiro. Isso é simplesmente o cordeiro absorvendo o leão em vez de o leão comer o cordeiro.

O verdadeiro problema é o seguinte: Pode o leão deitar-se com o cordeiro e ainda reter sua regia ferocidade? Esse o problema que a Igreja enfrentou; esse é o milagre que ela conseguiu.

Isso é o que chamei de adivinhar as excentricidades ocultas da vida. Isso é saber que o coração do homem está à esquerda e não no meio. Isso é saber não apenas que a Terra é redonda, mas também exatamente onde ela é achatada. A doutrina cristã detectou as esquisitices da vida. Ela não apenas descobriu a lei, mas previu as exceções.

Subestimam o cristianismo os que dizem que ele descobriu a misericórdia; qualquer um poderia descobrir a misericórdia. De fato todo o mundo o fez. Mas descobrir o plano para ser misericordioso e também severo — isso foi antecipar uma estranha necessidade da natureza humana. Pois ninguém quer ser perdoado por um pecado grande como se fosse um pecado pequeno.

Qualquer um poderia dizer que não deveríamos ser totalmente infelizes, nem totalmente felizes. Mas descobrir até que ponto alguém pode ser totalmente infeliz sem eliminar a possibilidade de ser totalmente feliz — isso foi uma descoberta na psicologia. Qualquer um poderia dizer: "Nem pavonear-se, nem rastejar;" e seria um limite. Mas dizer: "Aqui você pode pavonear-se e ali você pode rastejar" — isso foi uma emancipação.

Esse foi o grande feito envolvendo a ética cristã; a descoberta de um novo equilíbrio. O paganismo fora como um pilar de mármore, reto por sua proporção simétrica. O cristianismo foi como uma áspera e romântica rocha, que, embora oscile sobre o pedestal a um ligeiro toque, todavia, sendo que suas exageradas excrescências se equilibram entre si, ali está entronizada há mil anos.

Numa catedral gótica as colunas eram todas diferentes, mas todas necessárias. Cada suporte parecia acidental e fantástico; cada pilar era um contraforte. Assim também no cristianismo, aparentes acidentes se equilibravam. Thomas Becket (Arcebispo de Cantuária) usava um cilício sob suas vestes de ouro e púrpura, e há muito a dizer em defesa dessa combinação; pois Becket se beneficiava com o cilício enquanto as pessoas na rua se beneficiavam vendo o ouro e a púrpura. Trata-se no mínimo de um estilo melhor que o do milionário moderno, que por fora exibe o preto e o desbotado para os outros e esconde o ouro junto ao seu coração.

Mas o equilíbrio não estava sempre no corpo físico como no caso de Becket; o equilíbrio muitas vezes se distribuía por todo o corpo da cristandade. Pelo fato de um homem rezar e jejuar nas neves do norte, flores poderiam ser arremessadas em seus festivais nas cidades do sul; e pelo fato de fanáticos beberem água nas areias da Síria, outros homens ainda poderiam beber sidra nos pomares da Inglaterra. Isso é o que torna o cristianismo ao mesmo tempo muito mais intrigante e interessante do que o império pagão; exatamente como a catedral de Amiens não é melhor, mas é mais interessante do que o Partenon.

Se alguém quer uma prova moderna de tudo isso, que considere o curioso fato seguinte: sob o cristianismo, a Europa (embora continue sendo uma unidade) dividiu-se em nações individuais. O patriotismo é um exemplo perfeito desse deliberado equilíbrio de uma qualidade enfática contra outra. O instinto do império pagão teria dito: "Vocês todos serão cidadãos romanos e se tornarão semelhantes entre si; que os alemães sejam menos lentos e reverentes; que os franceses sejam menos experimentais e rápidos". Mas o instinto da Europa cristã diz: "Que os alemães permaneçam lentos e reverentes, para que os franceses possam, em maior segurança, ser rápidos e experimentais. Vamos criar um equilíbrio a partir desses excessos. O absurdo chamado Alemanha deverá corrigir a insensatez chamada França". Último e mais importante: é exatamente isso que explica o que é tão inexplicável para todos os críticos modernos da história do cristianismo. Refiro-me às monstruosas guerras sobre pequenos pontos de teologia, os terremotos de emoção envolvendo um gesto ou uma palavra. Era apenas uma questão de um centímetro; mas um centímetro é tudo quando você está equilibrando.

A Igreja não poderia se dar ao luxo de oscilar um milímetro em alguns pontos, se quisesse continuar seu grande e ousado experimento do equilíbrio irregular. Assim que se permitisse que uma idéia perdesse um pouco de sua força, alguma outra idéia ganharia força demais. O que o pastor cristão conduzia não era um rebanho de ovelhas, mas sim uma manada de touros e tigres, de terríveis ideais e vorazes doutrinas, cada uma delas forte o suficiente para transformar-se numa falsa religião e devastar o mundo.

Lembre-se de que a Igreja abraçou especificamente idéias perigosas; ela foi uma domadora de leões. A idéia do nascimento por meio do Espírito Santo, da morte de um ser divino, do perdão dos pecados ou do cumprimento das profecias — qualquer um pode ver que são idéias que precisam apenas de um toque para transformar-se em algo blasfemo ou feroz. Os artífices do Mediterrâneo deixaram que o menor elo se partisse, e o leão do pessimismo ancestral rompeu sua cadeia nas esquecidas florestas do norte. Dessas compensações teológicas devo falar mais adiante. Aqui basta observar que se algum pequeno erro fosse cometido na doutrina, geraria enormes transtornos para a felicidade humana.

Uma frase formulada erroneamente acerca da natureza do simbolismo teria quebrado todas as melhores estátuas da Europa. Um deslize nas definições poderia parar todas as danças; poderia secar todas as árvores de Natal ou quebrar todos os ovos de Páscoa.

As doutrinas tinham de ser definidas dentro de rigorosos limites, até mesmo para que o homem pudesse desfrutar de liberdades humanas gerais. A Igreja precisou ser cuidadosa, se não por outro motivo para que o mundo pudesse ficar despreocupado.

Essa é a emocionante aventura da Ortodoxia. As pessoas adquiriram o tolo costume de falar de ortodoxia como algo pesado, enfadonho e seguro. Nunca houve nada tão perigoso ou tão estimulante como a ortodoxia. Ela foi a sensatez, e ser sensato é mais dramático que ser louco. Ela foi o equilíbrio de um homem por trás de cavalos em louca disparada, parecendo abaixar-se para este lado, depois para aquele, mas em cada atitude mantendo a graça de uma escultura e a precisão da aritmética.

A Igreja em seus primeiros dias correu violenta e velozmente como qualquer cavalo de batalha; no entanto, é totalmente anti-histórico dizer que ela apenas cometeu loucuras apegando-se a uma única idéia, como um fanatismo vulgar. Ela curvou-se para a esquerda e para a direita, na medida exata a fim de evitar enormes obstáculos. Num dado momento ela abandonou o enorme vulto do arianismo, apoiado por todos os poderes deste mundo para fazer o cristianismo mundano demais. No instante seguinte ela estava se curvando para evitar o orientalismo, que o teria espiritualizado demais.

A Igreja, por viver a ortodoxia, nunca tomou a rota fácil ou aceitou as convenções; a Igreja, por viver a ortodoxia, nunca foi respeitável. Teria sido mais fácil ter aceitado o poder terreno dos arianos. Teria sido mais fácil, durante o calvinista século XVII, cair no abismo infinito da predestinação. É fácil ser louco; é fácil ser herege. É sempre fácil deixar que cada época tenha a sua cabeça; o difícil é não perder a própria cabeça. E sempre fácil ser um modernista; assim como é fácil ser um snob. Cair em qualquer uma das ciladas explícitas de erro e exagero que um modismo depois de outro e uma seita depois de outra espalharam ao longo da trilha histórica do cristianismo — isso teria sido de fato simples.

É sempre simples cair; há um número infinito de ângulos para levar alguém à queda, e apenas um para mantê-lo de pé. Cair em qualquer um dos modismos, do agnosticismo à chamada Ciência Cristã, teria de fato sido óbvio e sem graça. Mas evitá-los a todos tem sido uma estonteante aventura; e na minha visão a carruagem celestial voa esfuziante atravessando as épocas. Enquanto as monótonas heresias estão esparramadas e prostradas, a furiosa verdade cambaleia, mas segue de pé.

GILBERT KEITH CHESTERTON, Ortodoxia, Londres, 1908.
Tradução de Almiro Pisetta.

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De repente me senti só...

Para Frances Blogg


De repente, no meio dos meus amigos,
de irmãos que conheço mais e mais,
e seus segredos, histórias, gostos, heróis,
projetos, amores, que também conheço,
de repente me senti só.

Me senti como uma criança sem mais jogos para jogar
porque não tenho uma mulher
à qual envie então meu pensamento
para que ela coroe minha obra.

GILBERT KEITH CHESTERTON, poema De repente no meio,
do Caderno de Notas do autor, Londres, 1882.

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Devo a ele as primeiras alegrias católicas...

[...] Foi G. K. Chesterton, o incomparável escritor inglês, quem mais indelevelmente me marcou a alma nos dias em que andei perdido pelo mundo a procurar uma luz, luz de João e Maria, luz de Casa, luz de acolhimento entre as trevas de meu triste exílio.

Devo a Chesterton as primeiras alegrias católicas. No seu grande livro, Ortodoxy, onde esteve mais à vontade para atirar nos braços da cruz seu jogo de inebriantes paradoxos, entre outras descobertas maravilhosas do cristianismo, ele nos diz aquilo que Cristo de si mesmo nos escondeu: “There was some one thing that was too great for God to show us when He walked upon our earth; and I have sometimes fancied that it was His mirth.” Tentemos traduzir estas palavras de ouro com que Chesterton fecha sua obra-prima: “Uma coisa houve que era n’Ele grande demais para nos ser mostrada enquanto Ele andou por este mundo, e eu penso às vezes que foi sua alegria”. Ou seu riso. Ou seu júbilo. O termo mirth é aqui intraduzível. E ouso dizer que o grande poeta da língua fechou seu livro-jóia sabendo bem que só podia encerrar com um termo impróprio, tratando-se de coisa que esteve sempre presente e todavia escondida na vida de Jesus.

Outro notável inglês deixou-nos, sobre a poesia, uma definição inesquecível: “poetry is emotion recollected in tranquility”; donde nós tiramos uma definição de liturgia: “liturgy is passion recollected in tranquillity”, cujo teor paradoxal, próprio do Mistério da Fé, parece mostrar, sob as aparências do júbilo e da festa, a dor e o Sangue de nossa Redenção. Fiel a esse espírito, Chesterton não procurou nos seus tão admirados paradoxos fazer acrobacias verbais, e muito menos procurou jogos para agradar os jovens e os imaturos. Pascal, com seu timbre de abismos, não é mais trágico nem mais sério do que Gilbert Keith Chesterton, em cuja obra, como disse atrás, eu tive a felicidade de encontrar no caminho daquilo que Jesus nos escondeu, isto é, das mais puras e vivas alegrias católicas deste mundo.

Com um extraordinário vigor do Dom da Ciência, que está na linha da Fé e da Esperança, isto é, das virtudes peregrinas, Chesterton viu que o mundo, e mais fortemente os dias deste século de corrida atrás do vento, está desconcertado, subvertido, de cabeça para baixo, e então, para poder descobrir melhor seus erros e suas malícias, punha-se ele mesmo freqüentemente de pernas para o ar. Sua obra de apologia, assim condicionada, fazia função de revulsivo, de purgativo, e operava inopinadas restaurações nos desconcertos do mundo. O personagem principal de O Poeta e os Loucos era ágil, nessa ginástica, e, em quase todos os contos dessa série, quem diz loucuras é o sábio, o sisudo, o poeta, o sério; e quem fazia as mais desvairadas loucuras era o homem pausado, equilibrado na representação diplomática dos desvarios do tempo.

Chesterton criou, depois de Edgar Poe e Conan Doyle, o tipo de novela policial em que o genial investigador, longe de ser o esmiuçador sagaz e raciocinante, era o Padre Brown, o Padre Vicente O.F.M., seu amado confessor, que tinha os olhos lavados pela Fé e pelo colírio das lágrimas e assim conseguia, mesmo cochilando, descobrir os meandros da malícia mais pela ingenuidade do que pela sagacidade.

Em A Esfera e a Cruz, espécie de romance simbólico e apocalíptico, reaparece o personagem obsessivo de Chesterton, em luta implacável, mas por fim, cordialíssima, com o ateísmo desvairado da época. Na verdade, porém, não é o ateu Tornbull o adversário; não, em A Esfera e a Cruz, o espírito hediondo que Chesterton detesta, como detesta o Diabo, é o liberalismo que pretende evitar o confronto e a luta entre o Bem e o Mal. O personagem mais repugnante da sucessão de figuras que se levantam contra o Combate é o pacifista, contra o qual Chesterton não disfarça sua náusea extrema. Porque Chesterton foi sempre guerreiro. Em tempo e contratempo combateu o bom combate, e guardou a Fé até o momento supremo em que o Padre Vicente, depois de ministrar-lhe a extrema-unção, ajoelhou-se aos pés da cama do agonizante e com piedade profunda beijou a pena que estava à mesa-de-cabeceira, como que a descansa-la também, depois de ter escrito mais de oitenta volumes a serviço de seu Rei e de sua Dama.

Grande falta nos fazem hoje autores como Chesterton, que souberam desarmar, denunciar, desmascarar os ídolos, os ideais dos tempos modernos, que não passam das “antigas virtudes cristãs tornadas loucas” ou perversas.

Na falta dessa leitura saudável, tônica, fortificante, curativa, inebriante do melhor espírito, surgiu em seu lugar, a fazer um sucesso editorial que deveria ruborizar o planeta Terra e empalidecer o planeta Marte, surgiu o repulsivo impostor Teilhard de Chardin, que renega a Fé, abandona os mestre da Companhia de Jesus e da Igreja, para inventar uma gnose tola, de medíocre ciência ensopada com religião ainda pior, graças a cuja fétida composição consegue atrair os espíritos fracos.

Não me canso de agradecer a Deus o fato de ter encontrado Chesterton nos dias de desolação em que, sempre crendo em Deus-Todo-Poderoso, Criador do Céu e da Terra, das coisas visíveis e invisíveis, não conseguia, entretanto, encontrar a alameda e a porta de Sua Casa. A par de todos os defeitos e imperfeições, tenho a alma muito agradecida, porque desde cedo até tarde, na tarde da vida, deu-me Deus a ventura de sentir a dependência em que vivi, de minha mãe, de meus irmãos, de meus alunos, de meus professores, de todos os que neste longo trajeto que já se aproxima do marco assinalado pelo salmista para os vigorosos, sim, sempre tive a ventura de sentir muito melhor o bem que me fizeram e que especialmente reservo aos que me ajudaram na morte para o mundo. E entre esses reservo um especial lugar no altar que hoje adornei em meu velho coração para lembra G. K. Chesterton.

O resto desta apologia e deste estudo está no livro Três alqueires e uma vaca, que escrevi quando, graças a Chesterton, entre tantos autores e amigos, consegui passar no vestibular da Casa do Pai, isto é, consegui voltar à Fé e à Igreja de meu batismo. Ave Maria!

GUSTAVO CORÇÃO, artigo G. K. Chesterton, publicado no jornal O Globo,
Rio de Janeiro, 06 de Junho de 1974.

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Porque eu sou católico?

A dificuldade em explicar “Por que eu sou Católico” é que há dez mil razões para isso, todas se resumindo a uma única: o catolicismo é verdadeiro. Eu poderia preencher todo o meu espaço com sentenças separadas, todas começando com as palavras, “É a única coisa que ...”. Como, por exemplo, (1) É a única coisa que previne um pecado de se tornar um segredo. (2) É a única coisa em que o superior não pode ser superior; no sentido da arrogância e do desdém. (3) É a única coisa que liberta o homem da escravidão degradante de ser sempre criança. (4) É a única coisa que fala como se fosse a verdade; como se fosse um mensageiro real se recusando a alterar a verdadeira mensagem. (5) É o único tipo de cristianismo que realmente contém todo tipo de homem; mesmo o respeitável. (6) É a única grande tentativa de mudar o mundo desde dentro; usando a vontade e não as leis; etcétera.

Ou posso tratar o assunto de forma pessoal e descrever minha própria conversão; acontece que tenho uma forte impressão de que esse método faz a coisa parecer muito menor do que realmente é. Homens muito melhores, em muito maior número, se converteram a religiões muito piores. Preferiria tentar dizer, aqui, coisas a respeito da Igreja Católica que não se podem dizer mesmo sobre suas mais respeitáveis rivais. Em resumo, diria apenas que a Igreja Católica é católica. Preferiria tentar sugerir que ela não é somente maior que eu, mas maior que qualquer coisa no mundo; que ela é realmente maior que o mundo. Mas, como neste pequeno espaço, disponho apenas de uma pequena seção, abordarei sua função como guardiã da verdade.

Outro dia, um conhecido escritor, muito bem informado em outros assuntos, disse que a Igreja Católica é uma eterna inimiga das novas idéias. Provavelmente não ocorreu a ele que sua própria observação não é exatamente uma nova idéia. É uma daquelas noções que os católicos têm de refutar continuamente, porque é uma idéia muito antiga. Na realidade, aqueles que reclamam que o catolicismo não diz nada novo, raramente pensam que seja necessário dizer alguma coisa nova sobre o catolicismo. De fato, o estudo real da História mostrará que isso é curiosamente contrário aos fatos. Na medida em que as idéias são realmente idéias, e na medida em que tais idéias são novas, os católicos têm sofrido continuamente por apoiarem-nas quando elas são realmente novas; quando elas eram muito novas para encontrar alguém que as apoiasse. O católico foi não só o pioneiro na área, mas o único; e até hoje não houve ninguém que compreendesse o que se tinha descoberto lá.

Assim, por exemplo, quase duzentos anos antes da Declaração de Independência e da Revolução Francesa, numa era devotada ao orgulho e ao louvor aos príncipes, o Cardeal Bellarmine e Suarez, o Espanhol, formularam lucidamente toda a teoria da democracia real. Mas naquela era do Direito Divino, eles somente produziram a impressão de serem jesuítas sofisticados e sanguinários, se insinuando com adagas para assassinarem os reis. Então, novamente, os casuístas das escolas católicas disseram tudo o que pode ser dito e que constam de nossas peças e romances atuais, duzentos anos antes de eles serem escritos. Eles disseram que há sim problemas de conduta moral, mas eles tiveram a infelicidade de dizê-lo muito cedo, cedo de dois séculos. Num tempo de extraordinário fanatismo e de uma vituperação livre e fácil, eles foram simplesmente chamados de mentirosos e trapaceiros por terem sido psicólogos antes da psicologia se tornar moda. Seria fácil dar inúmeros outros exemplos, e citar o caso de idéias que são ainda muito novas para serem compreendidas. Há passagens da Encíclica do Papa Leão sobre o trabalho [conhecida como Rerum Novarum, publicada em 1891] que somente agora estão começando a ser usadas como sugestões para movimentos sociais muito mais novos do que o socialismo. E quando o Sr. Belloc escreveu a respeito do Estado Servil, ele estava apresentando uma teoria econômica tão original que quase ninguém ainda percebeu do que se trata. E então, quando os católicos apresentam objeções, seu protesto será facilmente explicado pelo conhecido fato de que católicos nunca se preocupam com idéias novas.

Contudo, o homem que fez essa observação sobre os católicos quis dizer algo; e é justo fazê-lo compreender muito mais claramente o que ele próprio disse. O que ele quis dizer é que, no mundo moderno, a Igreja Católica é, de fato, uma inimiga de muitas modas influentes; muitas delas ainda se dizem novas, apesar de algumas delas começarem a se tornar um pouco decadentes. Em outras palavras, na medida em que diz que a Igreja freqüentemente ataca o que o mundo, em cada era, apóia, ele está perfeitamente certo. A Igreja sempre se coloca contra a moda passageira do mundo; e ela tem experiência suficiente para saber quão rapidamente as modas passam. Mas para entender exatamente o que está envolvido, é necessário tomarmos um ponto de vista mais amplo e considerar a natureza última das idéias em questão, considerar, por assim dizer, a idéia da idéia.

Nove dentre dez do que chamamos novas idéias são simplesmente erros antigos. A Igreja Católica tem como uma de suas principais funções prevenir que os indivíduos comentam esses velhos erros; de cometê-los repetidamente, como eles fariam se deixados livres. A verdade sobre a atitude católica frente à heresia, ou como alguns diriam, frente à liberdade, pode ser mais bem expressa utilizando-se a metáfora de um mapa. A Igreja Católica possui uma espécie de mapa da mente que parece um labirinto, mas que é, de fato, um guia para o labirinto. Ele foi compilado a partir de um conhecimento que, mesmo se considerado humano, não tem nenhum paralelo humano.

Não há nenhum outro caso de uma instituição inteligente e contínua que tenha pensado sobre o pensamento por dois mil anos. Sua experiência cobre naturalmente quase todas as experiências; e especialmente quase todos os erros. O resultado é um mapa no qual todas as ruas sem saída e as estradas ruins estão claramente marcadas, todos os caminhos que se mostraram sem valor pela melhor de todas as evidências: a evidência daqueles que os percorreram.

Nesse mapa da mente, os erros são marcados como exceções. A maior parte dele consiste de playgrounds e alegres campos de caça, onde a mente pode ter tanta liberdade quanto queira; sem se esquecer de inúmeros campos de batalha intelectual em que a batalha está eternamente aberta e indefinida. Mas o mapa definitivamente se responsabiliza por fazer certas estradas se dirigirem ao nada ou à destruição, a um muro ou ao precipício. Assim, ele evita que os homens percam repetidamente seu tempo ou suas vidas em caminhos sabidamente fúteis ou desastrosos, e que podem atrair viajantes novamente no futuro. A Igreja se faz responsável por alertar seu povo contra eles; e disso a questão real depende. Ela dogmaticamente defende a humanidade de seus piores inimigos, daqueles grisalhos, horríveis e devoradores monstros dos velhos erros. Agora, todas essas falsas questões têm uma maneira de parecer novas em folha, especialmente para uma geração nova em folha. Suas primeiras afirmações soam inofensivas e plausíveis. Darei apenas dois exemplos. Soa inofensivo dizer, como muitos dos modernos dizem: “As ações só são erradas se são más para a sociedade.” Siga essa sugestão e, cedo ou tarde, você terá a desumanidade de uma colméia ou de uma cidade pagã, o estabelecimento da escravidão como o meio mais barato ou mais direto de produção, a tortura dos escravos pois, afinal, o indivíduo não é nada para o Estado, a declaração de que um homem inocente deve morrer pelo povo, como fizeram os assassinos de Cristo. Então, talvez, voltaremos às definições da Igreja Católica e descobriremos que a Igreja, ao mesmo tempo que diz que é nossa tarefa trabalhar para a sociedade, também diz outras coisas que proíbem a injustiça individual. Ou novamente, soa muito piedoso dizer, “Nosso conflito moral deve terminar com a vitória do espiritual sobre o material.” Siga essa sugestão e você terminará com a loucura dos maniqueus, dizendo que um suicídio é bom porque é um sacrifício, que a perversão sexual é boa porque não produz vida, que o demônio fez o sol e a lua porque eles são materiais. Então, você pode começar a adivinhar a razão de o cristianismo insistir que há espíritos maus e bons; e que a matéria também pode ser sagrada, como na Encarnação ou na Missa, no sacramento do casamento e na ressurreição da carne.

Não há nenhuma outra mente institucional no mundo que está pronta a evitar que as mentes errem. O policial chega tarde, quando ele tentar evitar que os homens cometam erros. O médico chega tarde, pois ele apenas chega para examinar o louco, não para aconselhar o homem são a como não enlouquecer. E todas as outras seitas e escolas são inadequadas a esse propósito. E isso não é porque elas possam não conter uma verdade, mas precisamente porque cada uma delas contém uma verdade; e estão contentes por conter uma verdade. Nenhuma delas pretende conter a verdade. A Igreja não está simplesmente armada contra as heresias do passado ou mesmo do presente, mas igualmente contra aquelas do futuro, que podem estar em exata oposição com as do presente. O catolicismo não é ritualismo; ele poderá estar lutando, no futuro, contra algum tipo de exagero ritualístico supersticioso e idólatra. O catolicismo não é ascetismo; ele, repetidamente no passado, reprimiu os exageros fanáticos e cruéis do ascetismo. O catolicismo não é mero misticismo; ele está agora mesmo defendendo a razão humana contra o mero misticismo dos pragmatistas. Assim, quando o mundo era puritano, no século XVII, a Igreja era acusada de exagerar a caridade a ponto da sofisticação, por fazer tudo fácil pela negligência confessional. Agora que o mundo não é puritano mas pagão, é a Igreja que está protestando contra a negligência da vestimenta e das maneiras pagãs. Ela está fazendo o que os puritanos desejariam fazer, quando isso fosse realmente desejável. Com toda a probabilidade, o melhor do protestantismo somente sobreviverá no catolicismo; e, nesse sentido, todos os católicos serão ainda puritanos quando todos os puritanos forem pagãos.

Assim, por exemplo, o catolicismo, num sentido pouco compreendido, fica fora de uma briga como aquela do darwinismo em Dayton. Ele fica fora porque permanece, em tudo, em torno dela, como uma casa que abarca duas peças de mobília que não combinam. Não é nada sectário dizer que ele está antes, depois e além de todas as coisas, em todas as direções. Ele é imparcial na briga entre fundamentalistas e a teoria da Origem das Espécies, porque ele se funda numa origem anterior àquela Origem; porque ele é mais fundamental que o Fundamentalismo. Ele sabe de onde veio a Bíblia. Ele também sabe aonde vão as teorias da Evolução. Ele sabe que houve muitos outros evangelhos além dos Quatro Evangelhos e que eles foram eliminados somente pela autoridade da Igreja Católica. Ele sabe que há muitas outras teorias da evolução além da de Darwin; e que a última será muito provavelmente eliminada pela ciência mais recente. Ele não aceita, convencionalmente, as conclusões da ciência, pela simples razão de que a ciência ainda não chegou a uma conclusão. Concluir é se calar; e o homem de ciência dificilmente se calará. Ele não acredita, convencionalmente, no que a Bíblia diz, pela simples razão de que a Bíblia não diz nada. Você não pode colocar um livro no banco das testemunhas e perguntar o que ele quer dizer. A própria controvérsia fundamentalista se destrói a si mesma. A Bíblia por si mesma não pode ser a base do acordo quando ela é a causa do desacordo; não pode ser a base comum dos cristãos quando alguns a tomam alegoricamente e outros literalmente. O católico se refere a algo que pode dizer alguma coisa, para a mente viva, consistente e contínua da qual tenho falado; a mais alta consciência do homem guiado por Deus.

Cresce a cada momento, para nós, a necessidade moral por tal mente imortal. Devemos ter alguma coisa que suportará os quatro cantos do mundo, enquanto fazemos nossos experimentos sociais ou construímos nossas Utopias. Por exemplo, devemos ter um acordo final, pelo menos em nome do truísmo da irmandade dos homens, que resista a alguma reação da brutalidade humana. Nada é mais provável, no momento presente, que a corrupção do governo representativo solte os ricos de todas as amarras e que eles pisoteiem todas as tradições com o mero orgulho pagão. Devemos ter todos os truísmos, em todos os lugares, reconhecidos como verdadeiros. Devemos evitar a mera reação e a temerosa repetição de velhos erros. Devemos fazer o mundo intelectual seguro para a democracia. Mas na condição da moderna anarquia mental, nem um nem outro ideal está seguro. Tal como os protestantes recorreram à Bíblia contra os padres e não perceberam que a Bíblia também podia ser questionada, assim também os republicanos recorreram ao povo contra os reis e não perceberam que o povo também podia ser desafiado. Não há fim para a dissolução das idéias, para a destruição de todos os testes da verdade, situação tornada possível desde que os homens abandonaram a tentativa de manter uma Verdade central e civilizada, de conter todas as verdades e identificar e refutar todos os erros. Desde então, cada grupo tem tomado uma verdade por vez e gastado tempo em torná-la uma mentira. Não temos tido nada, exceto movimentos; ou em outras palavras, monomanias. Mas a Igreja não é um movimento e sim um lugar de encontro, um lugar de encontro para todas as verdades do mundo.

GILBERT KEITH CHESTERTON, Twelve Modern Apostles and Their Creeds, Londres, 1926.
Tradução de Antonio Emilio Angueth de Araújo, professor da Universidade Federal de Minas Gerais.

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