domingo, 16 de novembro de 2008

PORTICO: Antes e depois de Marx


De novo Marx e o marxismo. Muito do dito por Marx não é novo nem original. Antes de Marx já os católicos se opunham ferrenhamente ao capitalismo selvagem, a "exploração do homem pelo homem", e identificavam claramente os erros do sistema liberal. O jesuíta Fernando Bastos demonstrou que algumas "novidades" do filosofo alemão já tinham sido indicadas pelos cristãos antes mesmo da publicação do Manifesto do Partido Comunista, em 1848. Veio Marx, foi acolhido e parte do mundo se tornou vermelho, um Império levantou e caiu no mesmo século. Depois de Marx, e pouco antes da queda do Muro, vieram as reformulações dos princípios marxistas. Para sobreviver foram necessários Socialismos novos. Apresentamos-lhes esta semana um texto pré-marxista sobre a pobreza, da autoria de um do professor e advogado do século XIX, Antoine Frédéric Ozanam, católico e beato reconhecido pela Igreja. Junto, um texto atualíssimo do Papa Bento XVI sobre a necessidade de estruturas justas. Uma análise enxuta de uma nova quimera, o chamado Socialismo Liberal, é feita pelo professor chileno Joaquim García Huidobro, da Universidade de Valparaiso. No artigo de opinião Pedro Guedes da Silva, diretor do site português Alameda Digital analisa o impacto de Gramsci entre nós. Quem como católico não tem experimentado a exclusão a priori das suas convicções perante os dogmas esquerdizantes no espaço universitário? Sobre este ponto, para concluir, oferecemos um pequeno e saboroso texto do filosofo brasileiro Miguel Reale. Em portada, uma pintura da serie Hammer and Sickle de Andy Warhol, 1977. Boa Leitura.

OS EDITORES

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Antes de Marx

Karl Marx (1818-1883) se encontra na origem de um gigantesco processo histórico que durou até nossos dias e que vai se extinguindo a partir da implosão, em 1991, da União Soviética. Hoje, ao menos no Ocidente, o marxismo começa a ser evocado como algo anacrônico. No entanto, não se pode negar que pensamos a sociedade de uma maneira diferentes antes e depois de Marx. Ele foi autor de uma denúncia certa para cuja solução ele propunha um resposta errada. Denunciou a iniqüidade do capitalismo original, que só poderia ser solucionada pela luta de classes. Poucos se lembram contudo que Karl Marx não foi um começo absoluto na crítica da sociedade.

[...] Hoje, estou convencido de que a crítica do capitalismo como sistema global já se consumara, antes da publicação do Manifesto do Partido Comunista, em 1848. Todos os pontos vulneráveis do modelo tinham sido denunciados com clareza inequívoca, pelo catolicismo social. Muitos elementos integrados por Marx em sua síntese, como dados originais, de fato ele os encontrou elaborados numa corrente de pensamentos que inundara o espaço cultural europeu. Antes de Marx, pensadores cristãos já conheciam o mecanismo da plus-valia e tinham descoberto no processo espoliador do capitalismo, a causa secreta da questão social. Até expressões habitualmente atribuídas a Marx, como a “exploração do homem pelo homem”, são encontradas ipsis litteris, na tradição pré-marxista.

[...] Félicité-Robert de la Mennais, por exemplo, viu com nitidez os impactos sociais do processo da industrialização que nascia sob o signo do capitalismo... viu tão claro a iniqüidade a que era reduzido a proletário, que o comparou ao antigo escravo... pressentiu o efeito alienante da produção capitalista, onde "homem é esvaziado de sua personalidade", sua exclamação "Povo, ó povo, desperta em fim! escravos, levantai-vos, rompei vossos grilhões, não permitais que por mais tempo seja ultrajado o vosso nome de seres humanos" evoca de modo impressionante o apelo a uma movilização geral, que finaliza o Manifesto.

[...] Entre outros, Philippe Olympe Gerbet percebeu as contradições internas da sociedade burguesa, as quais, se não fossem superadas dentro do espírito cristão, haveriam de conduzir àquilo que Marx chamaria umpouco mais tarde de luta de classes... Louis René Villermé soube apresentar-nos nos seus escritos uma das fontes mais preciosas da história socieconômica dos inicios da revolução industrial... sugere proibir o trabalho a menores de 8 anos e a adoção do sistema de escolaridade compulsoria, que depois Marx havería introduzir nas reivindicações básicas do Manifesto... Charles Forbes de Montalembert pede impedir e punir o emprego abusivo da mão de obra inantil... Charles de Coux foi provavelmente o primeiro escritor e economista a usar o termo "mudança social", como categoria sociológica... e viu também, antes de Marx, quanto a mudança social é condicionada pela evolução do sistéma económico.

FERNANDO BASTOS DE ÁVILA, Antes de Marx: As Raízes do Humanismo Cristão,
Rio de Janeiro, 2002.

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Deus não faz pobres


Habituados até agora a considerar unicamente o interesse temporal no governo dos homens, os políticos só procuram as causas da miséria na desordem material. Formaram-se assim duas escolas que reproduziram todo o problema social à produção ou à distribuição das riquezas. De um lado, para a antiga escola dos economistas, a maior catástrofe social é uma produção insuficiente e a única solução é acelerá-la, multiplicá-la, através de uma concorrência ilimitada; não há outra lei do trabalho além do interesse pessoal, que é o mais insaciável tirano. De outro lado, a escola dos socialistas modernos vê toda a raiz do mal numa distribuição viciosa dos bens e crê salvar a sociedade suprimindo a concorrência, fazendo da organização do trabalho uma prisão destinada a alimentar seus prisioneiros e ensinando ao povo a aceitar a barganha de sua liberdade pela certeza do pão e a promessa do prazer.

Esses dois sistemas, por caminhos diversos, chegam ao mesmo materialismo. Um reduz o destino humano a produzir; outro, a gozar. Não sabemos se temos mais horror daqueles que humilham os pobres, os operários, a ponto de transformá-los em instrumentos da fortuna dos ricos, do que daqueles que os corrompem até lhes inocular as paixões dos maus ricos.

[...] Deus não faz pobres, não envia criaturas humanas às contingências desse mundo, sem as prover de duas riquezas que são as fontes das demais: a inteligência e a vontade. As riquezas morais tanto são a origem de todas as outras que as coisas materiais só se transformam em riquezas quando atingidas pela inteligência que as elabora e pela vontade que as utiliza... Por que pois pretender esconder ao povo aquilo que ele está farto de saber? Por que querer lisonjeá-lo, como se fazia com os tiranos?

É a liberdade humana que faz os pobres. É ela que seca essas duas fontes primitivas de toda riqueza, a inteligência e a vontade, deixando a primeira se extinguir na ignorância e a segunda se extenuar na devassidão.

ANTOINE FRÉDÉRIC OZANAM, trecho de artigo publicado L'Ere Nouvelle,
Paris, outubro de 1848.

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A Mudança de Estruturas


As estruturas justas são uma condição sem a qual não é possível uma ordem justa na sociedade. Porém, como nascem? Como funcionam? Tanto o capitalismo como o marxismo prometeram encontrar o caminho para a criação de estruturas justas e afirmaram que estas, uma vez estabelecidas, funcionariam por si mesmas; afirmaram que não só não teriam tido necessidade de uma precedente moralidade individual, mas também que fomentariam a moralidade comum. E esta promessa ideológica demonstrou-se falsa.

Os fatos o comprovam. O sistema marxista, onde governou, deixou não só uma triste herança de destruições econômicas e ecológicas, mas também uma dolorosa opressão das almas. E o mesmo vemos também no ocidente, onde cresce constantemente a distância entre pobres e ricos e se produz uma inquietadora degradação da dignidade pessoal com a droga, o álcool e as sutis ilusões de felicidade.

As estruturas justas são... uma condição indispensável para uma sociedade justa, mas não nascem nem funcionam sem um consenso moral da sociedade sobre os valores fundamentais e sobre a necessidade de viver estes valores com as necessárias renúncias, inclusive contra o interesse pessoal.

[...] As estruturas justas têm que ser procuradas e elaboradas à luz dos valores fundamentais, com todo o empenho da razão política, econômica e social. São uma questão da recta ratio e não provêm de ideologias nem das suas promessas. Certamente há um tesouro de experiências políticas e de conhecimentos sobre os problemas sociais e econômicos, que evidenciam elementos fundamentais de um Estado justo e os caminhos que devem ser evitados.

Contudo, em situações culturais e políticas diversas, e nas mudanças progressivas das tecnologias e da realidade histórica mundial, devem ser procuradas de maneira racional as respostas adequadas e se deve criar com os compromissos indispensáveis o consenso sobre as estruturas que devem ser estabelecidas.

PAPA BENTO XVI, Discurso na sessão inaugural da V Conferência Geral da
V CELAM
,
Aparecida, 13 de Maio de 2008.

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Marx, o Falso Moises para as Massas


Dentre os muitos opositores da fé cristã, o marxismo certamente não é a filosofia mais importante, imponente ou impressionante da história.

Mas até há pouco tempo era decerto a mais influente. Uma comparação entre os mapas-múndi de 1917, 1947 e 1987 mostra como esse sistema de pensamento fluiu inexoravelmente, a ponto de inundar um terço do mundo em apenas duas gerações, feito apenas emulado duas vezes na história: uma pelo cristianismo e outra pelo islamismo.

Vinte anos atrás, todas as disputas políticas e militares do mundo, da América Central ao Oriente Médio, podiam ser consideradas em termos de comunismo versus anticomunismo.

Em grande medida, o próprio fascismo se tornou popular na Europa – e ainda tem uma força considerável na América Latina – pela sua oposição ao que Marx chama de “espectro do comunismo” na primeira frase do seu Manifesto do Partido Comunista.

O Manifesto foi um dos momentos-chave da história. Publicado em 1848, “o ano das revoluções” pela Europa afora, foi, como a Bíblia, essencialmente uma filosofia da história, passada e futura. Toda a história passada foi reduzida à luta de classes entre opressor e oprimido, mestre e escravo, seja na forma de rei versus povo, pároco versus paroquiano, mestre de guilda versus aprendiz, e mesmo marido versus mulher e pais versus filhos.

Era uma visão da história que conseguia ser mais cínica que a de Maquiavel. O amor é totalmente negado ou ignorado; a regra universal é a competição e a exploração.

Mas, para Marx, isso agora pode ser mudado, porque precisamente agora, pela primeira vez na história, não teríamos muitas classes sociais, mas apenas duas: a burguesia (“aqueles que têm”, os proprietários dos meios de produção) e o proletariado (“aqueles que não têm”, que não são proprietários dos meios de produção).

Os proletários deveriam vender-se a si próprios e vender o seu trabalho aos proprietários, até o dia em que a revolução comunista “eliminaria” (eufemismo para “assassinar”) a burguesia, abolindo assim as classes e a luta de classes para sempre e estabelecendo um milênio de paz e igualdade. Ou seja: depois de ter sido cínico com relação ao passado, Marx mostrava-se gritantemente ingênuo com relação ao futuro.

O que fez Marx ser como era? Quais eram as fontes da sua crença? Marx deliberadamente repudiou a sobrenaturalidade e a peculiaridade das suas raízes judaicas para abraçar o ateísmo e o comunismo. Contudo, o marxismo ainda retinha, de forma secularizada, todos os principais fatores estruturais e emocionais da religião bíblica. Marx, como Moisés, era o profeta que libertava o novo povo escolhido, o proletariado, da escravidão do capital e o conduzia para a Terra Prometida do comunismo, para além do Mar Vermelho da sangrenta revolução mundial e através de um deserto de sofrimento passageiro dedicado ao partido, que era o novo clero.

A revolução era o novo “Dia de Javé”, o Dia do Juízo; os porta-vozes do partido eram os novos profetas; e os expurgos políticos para manter a pureza ideológica dentro do partido eram os novos juízos divinos sobre os descaminhos dos eleitos e dos seus líderes. O tom messiânico do Comunismo tornava-o, tanto na estrutura como no sentimento, mais parecido com uma religião do que qualquer outro sistema político, excetuado o fascismo.

Marx fez à sua herança filosófica hegeliana o mesmo que fez à sua herança religiosa: assumiu as suas formas e o seu espírito sem assumir o seu conteúdo. Transformou o “idealismo dialético” de Hegel no “materialismo dialético”! Por isso, costuma-se dizer que o marxismo inverteu o hegelianismo.

As sete idéias radicais que Marx herdou de Hegel foram:
Monismo: tudo é uma coisa só e a distinção que o senso comum faz entre matéria e espírito é ilusória. Para Hegel, a matéria é apenas uma forma do espírito; para Marx, o espírito é apenas uma forma da matéria.

Panteísmo: a distinção entre Criador e criatura, marca distintiva do judaísmo, é falsa. Na filosofia de Hegel, o mundo transforma-se num aspecto de Deus (Hegel era panteísta); no marxismo, Deus é reduzido ao mundo (Marx era ateu).

Historicismo: tudo muda, mesmo a verdade. Não há nada acima da história e, portanto, o que foi verdade numa época pode ser falso na época seguinte, e vice-versa. Em outras palavras, o Tempo é Deus.

Dialética: a história move-se apenas por conflitos entre forças opostas, a “tese” versus a “antítese” que se unem num patamar superior que é a “síntese”. Isto aplica-se às classes, às nações e às idéias. A valsa da dialética é executada no salão de bailes da história até que finalmente chegue o Reino de Deus – que Hegel identificou com o Estado prussiano. Marx deixou tudo mais internacional e identificou o Reino de Deus com o Estado mundial comunista.

Necessitarismo ou fatalismo: a dialética e os seus resultados não são livres, mas inevitáveis e necessários. O marxismo é uma espécie de predestinação calvinista sem um predestinador divino.

Estatismo: uma vez que não há lei ou verdade eterna e trans-histórica, o Estado é supremo e incriticável. Neste ponto, Marx novamente torna o pensamento de Hegel mais internacional.

Militarismo: uma vez que acima dos Estados não há leis universais, naturais ou eternas para resolver as diferenças entre eles, a guerra é inevitável e necessária enquanto existirem Estados.

Como muitos outros pensadores anti-religiosos desde a Revolução Francesa, Marx adotou o secularismo, o ateísmo e o humanismo do século XVIII, o “século das luzes”, juntamente com o racionalismo e a sua fé na aparente onisciência da ciência e onipotência da tecnologia. Novamente, tratou-se de uma transferência das formas, do sentimento e da função da religião bíblica para um outro deus e uma outra fé. Porque o racionalismo baseia-se numa fé, e não numa evidência. A fé em que a razão humana pode conhecer tudo o que é real não pode ser provada pela razão humana; e a própria crença de que tudo o que é real pode ser provado pelo método científico não pode ser provada pelo método científico.

Além do hegelianismo e do iluminismo, Marx ainda sofreu uma terceira influência: o reducionismo econômico. Como o nome diz, trata-se da redução de todas as questões a questões econômicas. Estivesse Marx lendo este texto agora, diria que a causa real das minhas idéias não é a capacidade da minha mente para conhecer a verdade, mas as estruturas econômicas capitalistas da sociedade que me “produziu”. Marx acreditava que o pensamento é, na sua raiz, totalmente determinado pela matéria; que o homem é totalmente determinado pela sociedade; e que a sociedade é totalmente determinada pela economia. Isso é pôr de cabeça para baixo a idéia tradicional de que a mente comanda o corpo, que os homens comandam as sociedades e as sociedades comandam a economia.

Por fim, dos “socialistas utópicos”, Marx adotou a idéia de posse coletiva da propriedade e dos meios para produzi-la. Diz Marx: “A teoria do comunismo pode ser resumida numa só frase: abolição da propriedade privada”. Na realidade, as únicas sociedades em toda a história a serem bem-sucedidas na prática do comunismo foram os mosteiros, os kibutzim, as tribos e as famílias (instituições que Marx também queria abolir). Todos os governos comunistas (tais como o da União Soviética) transferiram a propriedade privada para as mãos do Estado, não do povo. A crença de Marx de que o Estado “definharia” por conta própria e de bom grado uma vez que eliminasse o capitalismo e pusesse o comunismo no seu lugar provou ser surpreendentemente ingênua. Bem sabemos que, uma vez tomado o poder, apenas a sabedoria e a santidade podem libertá-lo.

O apelo mais profundo do comunismo, especialmente nos países do Terceiro Mundo, não foi a vontade de comunitarismo, mas o que Nietzsche chamou de “a vontade de poder”. Nietzsche viu mais fundo no coração do comunismo que o próprio Marx.

Como Marx lidou com as objeções mais óbvias ao comunismo: que o comunismo suprime a privacidade e a propriedade privada, a individualidade, a liberdade, a motivação para o trabalho, a educação, o casamento, a família, a cultura, as nações, a religião e a filosofia? Marx não negou que o comunismo eliminava essas coisas, mas afirmou que o capitalismo já fizera isso. Argumentva, por exemplo, que o “burguês vê a esposa como um simples instrumento de produção”. Em assuntos mais importantes e delicados, como a família e a religião, oferece-nos mais retórica do que lógica; exemplo: “A conversa mole da burguesia sobre a família e a educação, sobre a sagrada relação entre pais e filhos, deixa o assunto ainda mais asqueroso...” E eis aqui a sua “resposta” às objeções religiosas e filosóficas à sua teoria: “As acusações contra o comunismo feitas de pontos de vista religioso, filosófico e, em suma, ideológico, não merecem um exame sério”.

A mais simples refutação do marxismo é o fato de o materialismo ser autocontraditório. Se as idéias não são nada além de produtos das forças materiais e econômicas, tal como os carros e os sapatos, então as idéias comunistas são simplesmente isso também. Se todas as nossas idéias são determinadas, não pela intuição da verdade, mas pelos movimentos necessários da matéria; se não há meios de controlar os movimentos da nossa língua, então o pensamento de Marx não é mais verdadeiro que o de Moisés. Atacar as bases do pensamento é atacar o próprio ataque.

Marx viu isso e até o admitiu. Reinterpretou as palavras como armas, não como verdades. A finalidade das palavras do Manifesto (e também, em última análise, as palavras da sua obra mais longa e ainda mais pseudo-científica: O capital) não foi provar alguma verdade, mas suscitar a revolução: “Até agora os filósofos interpretaram o mundo de diversas formas, cabe a nós transformá-lo”. Marx era basicamente um pragmático.

Mas há contradição mesmo do ponto de vista pragmático. O Manifesto termina com esta famosa exortação: “Os comunistas rejeitam dissimular as suas perspectivas e propósitos. Declaram abertamente que os seus fins só podem ser alcançados pela derrubada violenta de toda a ordem social até aqui. Podem as classes dominantes tremer ante uma revolução comunista! Nela os proletários nada têm a perder a não ser as suas cadeias. Têm um mundo a ganhar. Proletários de todos os países, uni-vos!” Mas essa exortação é contraditória, porque Marx negava o livre arbítrio. Tudo já estava definido, a revolução era “inevitável”, escolhesse eu participar dela ou não. Não se pode fazer um apelo ao livre arbítrio e negá-lo ao mesmo tempo.

Além dessas duas objeções filosóficas, há também fortes objeções práticas ao comunismo. Uma delas é o fato de nenhuma das suas previsões ter dado certo. A revolução não aconteceu na data nem no lugar previsto pelos marxistas. O capitalismo não desapareceu, nem o Estado, a família e a religião. E o comunismo não produziu contentamento e igualdade em nenhum dos lugares onde ganhou força.

Marx só foi capaz de fazer uma coisa: bancar o Moisés e conduzir os tolos de volta à escravidão no Egito (mundanidade). O verdadeiro Libertador espera na coxia pelo truão “que se empavona e agita por uma hora no palco” para conduzi-lo, juntamente com os seus colegas tolos, à “empoeirada morte”, precisamente o assunto que os filósofos marxistas se negam a tocar.

PETER KREEFT, artigo da serie The Pillars of Unbelief, publicados no National Catholic Register, Boston, Fevereiro de 1988.

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O Socialismo Liberal

Até a alguns anos, muito criticavam o uso da expressão “socialismo liberal” afirmando que são contraditórios.

Socialismo e liberalismo, se diz, são doutrinas contrapostas de modo que uma pessoa aproxima-se à primeira, ficando afastada no ato da segunda, e vice versa. Parecem separados por barreiras intransponíveis.

Porém, contraditório ou não, o socialismo liberal existe. Seja chamado com este nome ou não, há políticos que governam aplicando dentro de programas socialistas políticas liberais, tanto no campo econômico como o social.

Muitos destes políticos seguiram em alguma época ao socialismo ortodoxo, mas por diversas razões, nas últimas décadas do anos 80, foram abandonando as teses fundamentais do marxismo. Hoje, em muitos lugares, é freqüente que socialistas liberais e social-democratas atuam em conjunto e até sejam confundidos. Por exemplo, na Espanha e no Chile, onde o socialismo liberal coincide com aqueles setores que tem abraçado a renovação do socialismo.

[...] Entre os fatores que influíram na renovação do socialismo, naturalmente estão alguns de caráter histórico, como o descobrimento do autêntico rosto do “socialismo real” e a publicação de testemunhos como O Arquipélago Gulag. No plano intelectual, influiu a leitura de Antônio Gramsci, que permitiu observar a importância da cultura nos processos de transformação e motivou um afastamento das formas clássicas.

O caso protótipo do socialismo liberal é o espanhol, nele os traços deste socialismo encontram-se especialmente nítidos e, inclusive, exagerados. Para que o socialismo tenha futuro, segundo seus renovadores, deve assentar-se sobre novas bases: um utopismo racional, um igualitarismo mais político do que econômico, no qual o poder estatal contrabalance as desigualdades criadas pela adoção da economia de mercado, e uma democratização total da sociedade submetendo ao princípio democrático que até então estavam reservados à discricionalidade privada.

A aceitação da economia de mercado é uma nota distintiva da renovação socialista, separando-a das suas raízes marxistas, parecendo haver um acordo geral de aplicar a única economia que parece ser viável e ter sucesso, ainda que se argumente que esta aplicação seja feita com critérios técnicos, pelo que não haveria contradição ideológica.

O aprofundamento da idéia e da lógica democrática a todos os âmbitos da vida, é outra nota distintiva, na qual os socialistas liberais tem recebido uma importante influência da Escola de Frankfurt, e em especial de Jürgen Habermas, assim como de outras correntes de índole consensualistas.

[...] A relevância dada à cultura será sua quarta nota característica. Seguindo a Gramsci, na tarefa de conseguir a hegemonia cultural joga um papel fundamental, mas este deixa de ser um homem dedicado ao pensamento e passa a ser um livre-opinador, com uma ativa presença na mídia, na qual ele assume o papel de novo magistério, adequado para uma sociedade secularizada... A arte adquire um relevo especial, pois cobre de alguma maneira o oco que deixa a religião.

Os socialistas liberais fazem sua também uma tese que tem chegado a ser um chavão na filosofia política do século XX, autores como Kelse, Ross e Bobbio, tem sustentado que a democracia fundamenta-se no relativismo dos valores. Pelo contrário, qualquer pretensão de alcançar princípios e valores de caráter absoluto leva em si o perigo de adotar posturas políticas totalitárias, ou ao menos autoritárias. Abre-se caminho para o império do relativismo. O socialismo liberal, com seu hedonismo individualista e igualitário, corresponde notavelmente à caracterização do despotismo democrático que fez Aléxis de Tocqueville em A Democracia na América.

JOAQUIN GARCÍA HUIDOBRO, trecho da conferencia La Propuesta del Socialismo Liberal, no VI Congresso Interamericano de Historia, Cidade do México, 1992.

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Os iluminados do futuro

Consultando mais uma vez o relógio, o velho mestre de História Moderna e Contemporânea entrou apressado no anfiteatro que havia sido destinado pelo Diretório Acadêmico para a realização dos exames finais. A sala estava apinhada, como num dia de festa, pairando no ambiente a nervosa expectativa de uma representação teatral. Era a primeira vez que se realizavam provas segundo as disposições dos novos estatutos, baseados na fórmula salvadora: "A Universidade é do estudante", quando antes se pensara "erroneamente" que ela fosse do povo para os estudantes e os valores da ciência e da cultura.

– "Desculpem-me, mas um acidente de trânsito..."

– "Não se preocupe, professor, atalhou o presidente da banca examinadora, as providências todas já foram tomadas. A comissão de exames está aqui, pronta para proferir o julgamento com base nas respostas dadas às suas perguntas.

"Há uma comunicação prévia a fazer-lhe. Como sabe, temos andado absorvidos no estudo da reorganização universitária e da reformulação do currículo de História, razão pela qual bem reduzido foi o tempo disponível para o preparo da matéria. Diante dessa situação conjuntural, o Diretório Acadêmico houve por bem deferir o pedido feito pelos alunos, há dez dias, reduzindo à metade o programa dos exames. Ficou assente que a argüição de hoje versará sobre os pontos de número par."

– "Não compreendo como terão podido estudar a história assim, aos saltos, sem atender a certa linha de continuidade que, pelo menos sob dada perspectiva metodológica... "

Não o deixaram terminar a frase. Um dos examinadores, que parecia ser o líder intelectual da mesa diretora dos trabalhos, exclamou com ênfase:

– "É compreensível e até certo ponto justificável a sua perplexidade! A sua geração vê a história com o espírito do passado. Nós a vemos com os olhos do futuro. Qualquer episódio isolado vale na medida em que nos permite a intuição do amanhã que nos pertence!"

Uma salva de palmas acolheu essas palavras, enquanto nos lábios do velho professor brotava um sorriso, que parecia emergir da noite dos tempos, um misto da percuciente ironia socrática e da bonomia humanística de Montaigne.

– "Se essa é a conjuntura, sussurrou, passemos ao exame dos pares... Eis aqui um belo tema para o primeiro examinando: "O liberalismo econômico de Adam Smith". Que diz o colega sobre o assunto?"

O aluno, após um longo e estudado silêncio, respondeu:

– "Eis aí uma questão que nos permite compreender a grandiosidade da obra de Karl Marx, o gênio que soube desmascarar a ideologia dos economistas a serviço dos interesses da burguesia inglesa, que precisava da capa da liberdade econômica para impor salários de fome ao proletariado das tecelagens e das minas de carvão. Foi em O Capital que Marx, em 1848..."

– "Perdão, observou o professor, há aí um equívoco. O senhor está querendo se referir, naturalmente, ao Manifesto Comunista de Marx e Engels, pois O Capital só apareceu mais de vinte anos depois... "

– "E que importa? indagou abruptamente o presidente da banca. O seu reparo é bem o reflexo de uma mentalidade ultrapassada, para a qual o que interessa são os pormenores, os aspectos secundários dos fatos, e não o seu espírito, entendido em função do futuro!"

Nova explosão de aplausos acolheu essa proclamação, enquanto o líder intelectual da banca retomava a palavra, com o mesmo tom retórico:

– "Muito bem, presidente! Num exame o que interessa é verificar se o jovem está devidamente conscientizado e se é capaz de dar aos acontecimentos uma interpretação significativa para a práxis revolucionária. A meu ver, o examinando sabe, a respeito de liberalismo econômico, o essencial e indispensável, revelando uma clara tomada de posição perante o fato histórico, que só vale, repito, como intuição do futuro!"

Enquanto ainda ressoavam palmas e gritos de aplausos, levantou-se o velho mestre, tão sereno e altivo que parecia de redobrada estatura, os olhos fixos na assembléia tumultuante. Como por encanto fez-se silêncio, e o professor falou, com voz firme, mas repassada de emoção.

–"Não creio que haja necessidade de prosseguir nos exames. Os iluminados do futuro já escondem, misteriosamente, no fundo da consciência, os arcanos todos do passado. Não haverá mais necessidade de estudo, de vigílias, de dúvidas, de inquietações. Tudo será de antemão modelado e medido segundo uma intuitiva e desveladora imagem do futuro. Eu prefiro cultivar os meus mortos e as minhas lembranças, porque são eles que me auxiliam a compreender o presente e a construir com mais perspectiva e segurança os dias de amanhã."

E retirou-se, cruzando corpos e olhos inquietos de estudantes. Uma voz ressoou no anfiteatro: "Fora, reacionário!", mas ficou sem eco.

Os moços seguiram-no, com os olhos, até a porta, e sentiram que algo deles mesmos se perdia, a linha do horizonte que lhes possibilitava a determinação da própria juventude.

MIGUEL REALE, Atualidades Brasileiras: Problemas de nosso Tempo, São Paulo, 1969

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Opinião: Gramsci e as políticas kulturais


Em tese, a existência de políticas culturais a levar a cabo pelo Estado sobretudo como forma de tentar incentivar a procura deste tipo de indústrias – do cinema ao teatro, da música aos livros – seria uma boa notícia não se desse o fato, hoje pacífico, deste tipo de políticas serem na atualidade nada mais do que a mera colocação em prática das convicções em tempos propostas a destino por Gramsci. Ou seja, para além do título que ostentam, estas “políticas culturais” que hoje se obrigam por toda a Europa nada têm a ver com a Cultura que supostamente deveriam servir, sendo antes a sua exata negação. Na verdade, falamos de uma espécie de política de “terra queimada” que vira as costas à herança cultural tradicional e ao patrimônio nacional, assentando o seu poder na progressiva deseducação das gerações – quando se não logra mesmo a sua desejada estupidificação.

Gramsci, um comunista especialmente inteligente e que facilmente se distinguia, também por isso, dos seus companheiros, defendia a tese de que o poder efetivo havia de ser conquistado recolhendo os frutos de um prolongado e persistente combate cultural. Para isso haveriam os comunistas de, progressivamente, ocupar lugares de destaque nas artes, nas academias, nos círculos intelectuais, na imprensa e no mais que pudesse condicionar eficazmente a percepção que o cidadão comum tem da realidade que o rodeia. Com o passar dos anos, travestidos entretanto os comunistas para que se pareçam com sociais-democratas de toda uma vida, foi a esquerda européia a tomar em mãos as acertadas estratégias gramscianas.

Sabia bem o italiano que não se conquista o poder sem antes ter marcado posições de relevo na frente cultural - qualquer tentativa de ignorar este simples fato estará, inevitavelmente, condenada ao fracasso - marcando o ponto, dando o mote para as agendas de cada momento, encaminhando os cidadãos em determinado sentido. Dirá a kultura dominante que falamos de métodos totalitários mas, queiram ou não, é justamente isso que se passa hoje.

Justiça lhes seja feita, o esquema foi muito bem montado e registra doses elevadas de êxitos diversos, de que a recente vitória do ‘sim’ no referendo ao aborto será apenas um exemplo. A direita liberal e permitida, quase sempre tão predisposta a andar de braço-dado com a intelectualidade reinante, havia de pensar um nadinha nestas minudências, tanto mais que por via de regra acaba sempre a discutir alegremente as mesmas agendas que à herança de Gramsci aproveitam. Já devidamente preparadas a régua e esquadro pelas artes, pelo teatro experimental e pelo cinema com rótulo de filme de qualidade, aplaudidas pela imprensa de referência, estão para rebentar as novas alíneas da agenda política, sedimentando as linhas gerais da política kultural: as salas de chuto (injeção de drogas), os casamentos homossexuais, os ataques à família e ao sentir patriótico, a descristianização da sociedade, a promoção de um individualismo acrítico que tudo questiona... sem que de fato questione o que quer que seja. Tudo para se constituir em negação da Cultura que supostamente deveria servir.

Fora destes quadros aceitos como bons para a paisagem cultural, o músico que se lhes oponha não passará na rádio; o poeta não será declamado; o escritor não será editado; o encenador não terá nunca uma sala disponível e o cineasta não conseguirá elenco. Permanecerão numa espécie de “cultura de catacumbas”, perto dos seus fiéis, mas longe dos olhares indiscretos do grande público. Todos serão, isso sim, kulturalmente vigiados para que a super-estrutura permaneça intocável.

Nos casos em que o mecanismo não funciona por si, entram em campo os subsídios, esmolas caríssimas e pagas por todos nós em nome da educação dos públicos que, ainda assim, teimam em não comparecer nas salas de espetáculo aplaudindo efusivamente os coletivos de arte. Recordam-se por certo os leitores daquele episódio mais ou menos recente d’ A Comuna do Rivoli, quando uma série de artistas – no sentido que lhes queiram dar – resolveram ocupar durante três dias o afamado teatro portuense, reclamando querer viver à custa do dinheiro administrado por Rui Rio.

A verdade é que colocar em causa as teses de Gramsci não é barato – os comunistas são, aliás, muito fracos no que às ciências econômicas respeita, conforme a história se vai encarregando de provar. Ora vejamos: segundo os dados tornados públicos, o funcionamento do Teatro Rivoli tinha proveitos globais de 3.314.370 euros, dos quais 2.794.502 (cerca de 85% do total) eram suportados por subsídios camarários. As receitas de bilheteira, essas que demonstram a adesão incondicional das massas, ficavam-se pelos 180 mil euros, arredondando caridosamente para cima. Mesmo assim, com muita caridade e muito pouco público, as contas finais apresentavam custos na ordem dos 3.659.134 euros. Em resumo: um prejuízo de 344.764 euros, que também ajuda a perceber porque faliu – literalmente - o comunismo. É uma espécie de kultura feita para o produtor.
Depois há casos mais grotescos, ainda no domínio do teatro experimental, que acumulam os subsídios a um maior descaramento – posto que visam apenas ofender os pagantes (através dos recorrentes subsídios à tal educação dos públicos). Foi assim que por cá estreou, desta feita no Teatro da Comuna (chama-se mesmo assim) em Lisboa, a peça “Me Cago en Dios”, um vômito com autoria de Iñigo Ramirez de Haro cujo esplendor artístico consistia em colocar uma sanita em pleno palco, onde se deitavam Crucifixos, imagens de Nossa Senhora de Fátima ou simbologia do Crescente Vermelho. O sucesso terá sido idêntico ao que já se havia registrado em Madrid, onde a coisa estreou financiada pelo município e pela Ibéria.

Como é evidente, a estratégia gramsciana é eficaz, mas necessita de um aliado tão relevante quanto dramático: a deseducação, a ignorância e a boçalidade, uma escola que não ensina – antes doutrina, também ela, para a mediocridade, evitando transmitir o desejo de buscar, de saber, de conhecer, de apurar os sentidos. Uma escola que debita meia dúzia de frases feitas e de verdades absolutas, que ensina a encontrar a Verdade em regime prêt-a-porter, seja na Wikipedia ou nas páginas d’ “O Código da Vinci” e dos seus já incontáveis sucedâneos, todos vendedores do mesmo confusionismo que é semente de ignorância. Tudo o mais é relegado para os domínios do distante e do incompreensível. Haverá saída num quadro destes? Talvez sim, é questão de se tentar. Talvez começar pelo princípio, por perceber o fenômeno que condiciona as sociedades européias contemporâneas, ajudando a desmontá-lo aqui e ali, desmascarando-o quando possível, explicando-o aos mais novos, mesmo se apenas para pequenos grupos de receptores interessados. E, entretanto, ler Gramsci é capaz de ser um bom acompanhamento.

Pedro Guedes da Silva, é diretor do site Alameda Virtual, Lisboa, Fevereiro de 2007

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