domingo, 16 de novembro de 2008

Opinião: Gramsci e as políticas kulturais


Em tese, a existência de políticas culturais a levar a cabo pelo Estado sobretudo como forma de tentar incentivar a procura deste tipo de indústrias – do cinema ao teatro, da música aos livros – seria uma boa notícia não se desse o fato, hoje pacífico, deste tipo de políticas serem na atualidade nada mais do que a mera colocação em prática das convicções em tempos propostas a destino por Gramsci. Ou seja, para além do título que ostentam, estas “políticas culturais” que hoje se obrigam por toda a Europa nada têm a ver com a Cultura que supostamente deveriam servir, sendo antes a sua exata negação. Na verdade, falamos de uma espécie de política de “terra queimada” que vira as costas à herança cultural tradicional e ao patrimônio nacional, assentando o seu poder na progressiva deseducação das gerações – quando se não logra mesmo a sua desejada estupidificação.

Gramsci, um comunista especialmente inteligente e que facilmente se distinguia, também por isso, dos seus companheiros, defendia a tese de que o poder efetivo havia de ser conquistado recolhendo os frutos de um prolongado e persistente combate cultural. Para isso haveriam os comunistas de, progressivamente, ocupar lugares de destaque nas artes, nas academias, nos círculos intelectuais, na imprensa e no mais que pudesse condicionar eficazmente a percepção que o cidadão comum tem da realidade que o rodeia. Com o passar dos anos, travestidos entretanto os comunistas para que se pareçam com sociais-democratas de toda uma vida, foi a esquerda européia a tomar em mãos as acertadas estratégias gramscianas.

Sabia bem o italiano que não se conquista o poder sem antes ter marcado posições de relevo na frente cultural - qualquer tentativa de ignorar este simples fato estará, inevitavelmente, condenada ao fracasso - marcando o ponto, dando o mote para as agendas de cada momento, encaminhando os cidadãos em determinado sentido. Dirá a kultura dominante que falamos de métodos totalitários mas, queiram ou não, é justamente isso que se passa hoje.

Justiça lhes seja feita, o esquema foi muito bem montado e registra doses elevadas de êxitos diversos, de que a recente vitória do ‘sim’ no referendo ao aborto será apenas um exemplo. A direita liberal e permitida, quase sempre tão predisposta a andar de braço-dado com a intelectualidade reinante, havia de pensar um nadinha nestas minudências, tanto mais que por via de regra acaba sempre a discutir alegremente as mesmas agendas que à herança de Gramsci aproveitam. Já devidamente preparadas a régua e esquadro pelas artes, pelo teatro experimental e pelo cinema com rótulo de filme de qualidade, aplaudidas pela imprensa de referência, estão para rebentar as novas alíneas da agenda política, sedimentando as linhas gerais da política kultural: as salas de chuto (injeção de drogas), os casamentos homossexuais, os ataques à família e ao sentir patriótico, a descristianização da sociedade, a promoção de um individualismo acrítico que tudo questiona... sem que de fato questione o que quer que seja. Tudo para se constituir em negação da Cultura que supostamente deveria servir.

Fora destes quadros aceitos como bons para a paisagem cultural, o músico que se lhes oponha não passará na rádio; o poeta não será declamado; o escritor não será editado; o encenador não terá nunca uma sala disponível e o cineasta não conseguirá elenco. Permanecerão numa espécie de “cultura de catacumbas”, perto dos seus fiéis, mas longe dos olhares indiscretos do grande público. Todos serão, isso sim, kulturalmente vigiados para que a super-estrutura permaneça intocável.

Nos casos em que o mecanismo não funciona por si, entram em campo os subsídios, esmolas caríssimas e pagas por todos nós em nome da educação dos públicos que, ainda assim, teimam em não comparecer nas salas de espetáculo aplaudindo efusivamente os coletivos de arte. Recordam-se por certo os leitores daquele episódio mais ou menos recente d’ A Comuna do Rivoli, quando uma série de artistas – no sentido que lhes queiram dar – resolveram ocupar durante três dias o afamado teatro portuense, reclamando querer viver à custa do dinheiro administrado por Rui Rio.

A verdade é que colocar em causa as teses de Gramsci não é barato – os comunistas são, aliás, muito fracos no que às ciências econômicas respeita, conforme a história se vai encarregando de provar. Ora vejamos: segundo os dados tornados públicos, o funcionamento do Teatro Rivoli tinha proveitos globais de 3.314.370 euros, dos quais 2.794.502 (cerca de 85% do total) eram suportados por subsídios camarários. As receitas de bilheteira, essas que demonstram a adesão incondicional das massas, ficavam-se pelos 180 mil euros, arredondando caridosamente para cima. Mesmo assim, com muita caridade e muito pouco público, as contas finais apresentavam custos na ordem dos 3.659.134 euros. Em resumo: um prejuízo de 344.764 euros, que também ajuda a perceber porque faliu – literalmente - o comunismo. É uma espécie de kultura feita para o produtor.
Depois há casos mais grotescos, ainda no domínio do teatro experimental, que acumulam os subsídios a um maior descaramento – posto que visam apenas ofender os pagantes (através dos recorrentes subsídios à tal educação dos públicos). Foi assim que por cá estreou, desta feita no Teatro da Comuna (chama-se mesmo assim) em Lisboa, a peça “Me Cago en Dios”, um vômito com autoria de Iñigo Ramirez de Haro cujo esplendor artístico consistia em colocar uma sanita em pleno palco, onde se deitavam Crucifixos, imagens de Nossa Senhora de Fátima ou simbologia do Crescente Vermelho. O sucesso terá sido idêntico ao que já se havia registrado em Madrid, onde a coisa estreou financiada pelo município e pela Ibéria.

Como é evidente, a estratégia gramsciana é eficaz, mas necessita de um aliado tão relevante quanto dramático: a deseducação, a ignorância e a boçalidade, uma escola que não ensina – antes doutrina, também ela, para a mediocridade, evitando transmitir o desejo de buscar, de saber, de conhecer, de apurar os sentidos. Uma escola que debita meia dúzia de frases feitas e de verdades absolutas, que ensina a encontrar a Verdade em regime prêt-a-porter, seja na Wikipedia ou nas páginas d’ “O Código da Vinci” e dos seus já incontáveis sucedâneos, todos vendedores do mesmo confusionismo que é semente de ignorância. Tudo o mais é relegado para os domínios do distante e do incompreensível. Haverá saída num quadro destes? Talvez sim, é questão de se tentar. Talvez começar pelo princípio, por perceber o fenômeno que condiciona as sociedades européias contemporâneas, ajudando a desmontá-lo aqui e ali, desmascarando-o quando possível, explicando-o aos mais novos, mesmo se apenas para pequenos grupos de receptores interessados. E, entretanto, ler Gramsci é capaz de ser um bom acompanhamento.

Pedro Guedes da Silva, é diretor do site Alameda Virtual, Lisboa, Fevereiro de 2007

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