segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Portico: Um Apóstolo dos Céticos


Ao longo das próximas semanas estaremos apresentando-lhes uma serie de textos que abordam a vida e obra de alguns intelectuais católicos que influíram no século passado. Um cada semana, dispondo para vocês uma breve nota biográfica, dois textos do autor e um comentário sobre algum aspecto da sua obra.

Esta semana fazemos uma exceção e lhes oferecemos a figura de Clive Staples Lewis, anglicano, um dos mais renomados críticos literários de língua inglesa, possivelmente o mais popular apologista cristão do século XX, e criador do fantástico mundo de Narnia. Porque incluir um intelectual não católico neste espaço? Porque o pensamento de Lewis é genuinamente cristão e, em muitos aspectos, profundamente católico. Walter Hopper, seu secretario particular e albacea da sua herança literária, depois de ser ordenado sacerdote anglicano, chego a se converter ao Catolicismo em 1988, ao aprofundar as idéias do mentor. Selecionamos para você textos d'A Abolição do Homem, um livro fundamental, e de Cartas do Diabo a seu Aprendiz, onde o demônio Fitafuso dá algumas dicas ao sobrinho Vermebile, um diabo menor, sobre como "salvar" uma "coitada" alma do Inimigo (neste caso, Deus). Também, um interessante artigo sobre a exemplar amizade de Lewis e Tolkien ao cargo de Gabriele Greggersen, mestre e doutora em História e Filosofia da Educação da Universidade de São Paulo. Boa Leitura...
OS EDITORES

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Lewis: O mais relutante dos Convertidos

Um dos maiores e mais influentes autores cristãos do século passado, professor de Literatura Medieval e Renascentista em Cambridge e Oxford, Clive Staples Lewis nasceu a 29 de novembro de 1898 em Belfast, na Irlanda do Norte.

Filho de um advogado e da filha de um pastor presbiteriano, herdou daquele a sensibilidade romântica e a tendência imaginativa, e desta o senso prático, a lucidez e a ironia. Criado no campo, na companhia de um irmão três anos mais velho, C. S. Lewis – ou "Jack", como também era chamado pelos familiares – sentia-se mais à vontade na biblioteca da casa, no ambiente dos velhos livros, das idéias e da fantasia, do que no mundo "lá fora", onde corria o agitado e tecnológico século XX. Data desta época a paixão pela mitologia nórdica e grega e pelos autores de ficção, sobretudo os clássicos da literatura inglesa.

Aos dez anos, perdeu a mãe, vítima de câncer, e se refugiou na escrita de ficção e na leitura dos clássicos. Foi assim que, segundo o próprio Lewis, a tranqüilidade e a segurança dos anos felizes que vivera até então desapareceram. Enviado a estudar numa escola pública na Inglaterra, Lewis passou ali os mais infelizes e solitários anos de sua vida. Aos 15 anos voltou para casa, sendo educado por um tutor particular, a quem dedicou um capítulo inteiro de sua autobiografia Surprised by the Joy ("Surpreendido pela Alegria"). Imenso era o contraste entre seu pai, sempre ocupado e pouco dedicado à família, e seu tutor, que de fato queria ouvir o que o jovem Lewis tinha a lhe dizer. A partir daí viriam anos mais felizes e a sua formação intelectual propriamente dita, para a qual muito contribuiu o rigor analítico ensinado pelo tutor, um pensador lúcido e grande conhecedor de Filosofia. Não demorou muito, também, para que o jovem "Jack" perdesse, sob influência do professor ateu, a fé protestante recebida na infância. Daí em diante sua vida pode ser vista como a busca pelo que ele chamou de "alegria" (joy) e pela segurança perdidas, as quais Lewis iria encontrar somente na fé cristã, abraçada anos mais tarde, depois de uma longa peregrinação pelo materialismo de Marx, pela psicanálise de Freud e pelo evolucionismo de Darwin.

Em 1917 Lewis foi convocado para I Guerra, mas, tendo-se ferido com uma granada, recebeu dispensa e pôde retomar os estudos em Oxford, onde ingressara no ano anterior para estudar Clássicos, Literatura Inglesa e Filosofia. Um episódio interessante ocorre neste período: C. S. Lewis faz um pacto com Paddy Moore, companheiro de guerra, o qual estabelecia que no caso de morte de um dos dois o outro teria o dever de cuidar dos parentes do falecido. O amigo morreu e Lewis cumpriu a promessa fielmente, chegando a adotar a mãe de Moore, uma mulher de temperamento tirânico e anti-social, como se fosse a sua própria. E o fez até o último instante, quando a Sra. Moore morreu com sinais de insanidade.

Em sua saga até ao Cristianismo, fundamental foram, por um lado, a descoberta do pensamento de G. K. Chesterton e George MacDonald, a quem "Jack" se referia como "os mestres que me ensinaram o Cristianismo", e, por outro, a amizade com J. R. R Tolkien, Owen Barfield e Hugh Dyson, colegas na universidade com quem compartilhava o interesse pela mitologia nórdica, e membros de um grupo informal de amigos da literatura, os Inklings. Mas deixemos que o próprio Lewis descreva os movimentos finais que antecederam sua conversão:

"Os leitores devem imaginar-me sozinho no meu quarto em Magdalen, noite após noite, a sentir a aproximação contínua e impiedosa d'Aquele que eu desejara tão a sério não encontrar nunca. Aquilo que eu mais temia estava-me alcançando por fim. Durante o trimestre escolar da Trindade de 1929, eu me rendi, admiti que Deus era Deus, ajoelhei-me e rezei: talvez fosse, naquela noite, o convertido mais desanimado e relutante de toda a Inglaterra."

Faltava ainda passar da crença em Deus à crença em Jesus Cristo. O salto definitivo foi dado após uma longa conversa com Tolkien e Dyson, em que os amigos o fizeram entender que todos os mitos antigos que eles tanto admiravam nada mais eram que prefigurações confusas do único "mito" que realmente havia acontecido: a encarnação do Verbo.

Após longo silêncio e amadurecimento intelectual, C. S. Lewis começou a escrever as obras que o tornaram um dos apologistas cristãos mais populares de sua época, clássicos como The Screwtape Letters ("Cartas de um Diabo a seu Aprendiz"), Mere Christianity ("Cristianismo Puro e Simples"), The Abolition of Man ("A Abolição do Homem"). Além da popular série de livros infanto-juvenis "As Crônicas de Nárnia", escreveu também uma trilogia de ficção científica: Out of the Silent Planet ("Para além do Planeta Silencioso"), Perelandra e That Hideous Strength ("Aquela força medonha").

O "apóstolo dos céticos", como também era conhecido o prolífico escritor, passou a ser convidado para dar palestras em empresas e rádios, tanto na Inglaterra como nos Estados Unidos. Sua obra Mero Cristianismo (1952), por exemplo, nasceu de uma série de conferências concedidas a uma rádio inglesa. Três anos após esta publicação, era lançada a sua autobiografia espiritual, Surprised by the Joy.

Em 1956 Lewis casou-se no civil com a poetisa americana Joy Davidman Gresham, que ele conhecera quatro anos antes, a fim de evitar que ela fosse deportada como imigrante ilegal e membro do partido comunista nos Estados Unidos (era o tempo do macartismo). Joy se convertera do comunismo ao cristianismo através da obra de Lewis e os dois se corresponderam longamente antes de se conhecerem pessoalmente. No mesmo ano de 56, tendo o autor britânico se apaixonado por Gresham, deu-se o casamento religioso, de acordo com os ritos da Igreja Anglicana (Lewis pertencia à High Church, ala do anglicanismo mais próxima ao catolicismo). O caso todo, ressaltando-se o fato de Joy Gresham ter-se casado com câncer, o sofrimento que enfrentou e sua morte, ocorrida alguns meses depois, virou tema do livro A Grief Observed ("Uma Dor Observada"), que deu origem ao belíssimo filme Shadowlands ("Terra das Sombras"), dirigido por Richard Attenborough e que tem Anthony Hopkins no papel de C. S. Lewis e Debra Winger como Joy Gresham.

Para resumir, segundo Owen Barfield, existiram três "C. S. Lewises", cada um dos quais cumpriu uma vocação específica: primeiro, o "scholar" e crítico literário de Oxford e Cambridge; segundo, o renomado autor de livros infanto-juvenis e de ficção científica; terceiro, o famoso divulgador e apologista do Cristianismo, tão popular que mereceu a alcunha de "Elvis Presley do Cristianismo".

Perguntado certa vez sobre qual das religiões do mundo traria mais felicidade a seus adeptos, Lewis respondeu com sua costumeira ironia: "Enquanto dura, a religião da auto-adoração é a melhor." E mais adiante arrematou: "Como vocês talvez saibam, não fui sempre cristão. Não me tornei religioso em busca da felicidade. Eu sempre soube que uma garrafa de vinho do Porto me daria isso. Se você quiser uma religião que te faça feliz, eu não recomendo o cristianismo. Tenho certeza que deve haver algum produto americano no mercado que lhe será de maior utilidade, mas não tenho como ajudá-lo nisso."

Além da ironia, uma das notas características da escrita de C. S. Lewis é a sinceridade: lendo-o, temos a nítida impressão de que não estamos sendo passados para trás. Sabemos que o autor tudo examinou e tudo confrontou antes de escrever cada frase; nada do que é humano lhe é estranho. Acrescente-se a isso a sua singular capacidade de explicar conceitos teológicos e filosóficos complexos recorrendo a metáforas simples e claras. Não há desperdício de palavras e cada uma delas é usada muito conscienciosamente; ficam de fora os subterfúgios e as ambigüidades.

A imaginação, por sua vez, é também um dos principais aspectos da obra lewisiana. Além de empregar constantemente alegorias cristãs, como se vê claramente n'As Crônicas de Nárnia, deve-se ressaltar que C. S. Lewis tem o raro dom de saber explicar os conceitos mais difíceis fazendo uso das analogias mais simples e apropriadas. E isto, por fim, seria impossível se ele não tivesse bebido abundantemente na literatura inglesa e na mitologia grega e nórdica.

Nota biográfica preparada por Davi James Dias, membro do nuec,
Belo Horizonte, Fevereiro de 2009

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O último estágio que tal vez não esteja longe...

“A conquista da Natureza pelo Homem” é uma expressão utilizada habitualmente para descrever o progresso das ciências aplicadas... mas, em que sentido o Homem possui um poder crescente sobre a natureza?

[...] Aquilo que chamamos poder do Homem é, na realidade, um poder que alguns homens possuem, e que por sua vez podem ou não delegar ao resto dos homens... é um poder exercido por alguns homens sobre outros, com o controle de certos aspectos da Natureza como instrumento.

[...] É um lugar comum reclamar que os homens tem usado erroneamente e contra seus próprios congêneres o poder que a ciência lhes outorgou. Mas não é isso o que quero demonstrar aqui. Não me refiro a abusos ou degradações particulares que pudessem ser sanados por um aperfeiçoamento da virtude moral; estou tratando daquilo que sempre e essencialmente será aquilo que chamamos de “o poder do Homem sobre a Natureza”.

[...] A conquista da Natureza pelo Homem, caso se realizem os sonhos de alguns cientistas planejadores, significaria que algumas centenas de homens estariam governando os destinos de bilhões e bilhões... cada novo poder conquistado pelo homem é da mesma forma um poder sobre o homem. Cada avanço o deixa mais fraco, ao mesmo tempo que mais forte. Em toda vitória, o homem é ao mesmo tempo o general que triunfa e o escravo que segue o carro dos vencedores.

Ainda não estou considerando se o resultado de tais vitórias ambivalentes é algo bom o mau. Estou apenas esclarecendo o que verdadeiramente significa a conquista da Natureza e, especialmente, qual é o seu último estágio (que talvez não esteja longe). O último estágio virá quando, mediante a eugenia, a manipulação pré-natal e uma educação e propaganda baseadas numa perfeita psicologia aplicada, o Homem alcançar um completo domínio sobre si mesmo. A natureza humana será a última parte da Natureza a se render ante o Homem. A batalha estará então vencida. Teremos “arrancado o fio da vida das mãos de Cloto”... Mas, quem exatamente terá vencido?

Pois o poder do Homem para fazer de si mesmo o que bem quiser, significa, conforme vimos, o poder de alguns homens para fazer dos outros o que bem quiserem. Não há duvida de que sempre, ao longo da história, a educação e a cultura, de algum modo, pretenderam exercer tal poder. Mas a situação para a qual voltamos nossas atenções é inusitada em dois aspectos.

Em primeiro lugar, o poder estará enormemente hipertrofiado... Os projetistas de homens destes novos tempos estarão armados com os poderes de um Estado onicompetente e uma irresistível tecnologia científica: obteremos finalmente uma raça de manipuladores que poderão, verdadeiramente, esculpir toda a posteridade a seu bel-prazer.

A segunda diferença é ainda mais importante. Nos sistemas antigos, tanto o tipo de homem que os educadores pretendiam produzir quanto seus motivos para fazê-lo estavam prescritos pelo (que aqui chamamos) Tao (o seja, uma doutrina do valor objetivo, a convicção de que certas posturas são realmente verdadeiras, e outras realmente falsas, a respeito do que é o universo e do que somos nós, quer dizer, uma ordem natural)... Não reduziam os homem a um esquema por eles estabelecido. Transmitiam o que tinham recebido... Mas isso vai mudar. Os valores são agora meros fenômenos naturais... Os Manipuladores sabem como produzir a consciência e decidem qual tipo de consciência irão produzir... A última vitória foi obtida... Os Manipuladores estarão em condição de escolher que tipo artificial de Tao irão impor à raça humana, segundo as razões que lhes convierem.

[... Os Manipuladores] são homens que sacrificam sua porção de humanidade tradicional a fim de dedicar-se à tarefa de decidir o que “Humanidade” deve significar a partir de agora... Não que eles sejam homens maus. Eles não são homens em absoluto. Saindo do Tao, eles caíram no vazio. Nem os objetos do condicionamento dos Manipuladores serão homens infelizes. Eles não são homens em absoluto. A conquista final do homem mostrou-se a abolição do Homem.

[...] Só há duas possibilidades: ou somos espíritos racionais obrigados para sempre a obedecer aos valores absolutos do Tao, ou então não passamos de mera natureza a ser manuseada e esculpida em novas formas para o deleite dos mestres, que por sua vez serão motivados unicamente por seus impulsos “naturais”. Somente o Tao é capaz de promover uma lei de ação humana comum que possa abarcar legisladores e legislados igualmente.

Uma crença dogmática em valores objetivos é necessária para a própria idéia de uma regra que não seja tirânica ou de uma obediência que não seja servil.

[...] No próprio Tao, desde que permaneçamos dentro dele, encontramos a realidade concreta cuja participação nos torna verdadeiramente humanos: a verdadeira vontade comum e razão comum da humanidade, vivas e crescendo como uma árvore, ramificando-se conforme variam as situações, encontrando novas aplicações, sempre mais belas e dignas.

CLIVE STAPLES LEWIS, A Abolição do Homem, Oxford, 1943.

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"Faça-o prestar atenção apenas na sua vida interior..."

Há dois erros semelhante mas opostos que os seres humanos podem cometer quanto aos demônios. Um é não acreditar em sua existência. O outro é acreditar que eles existem e sentir um interesse excessivo e pouco saudável por eles. (C.S. Lewis)

Querido Vermebile,

Fiquei muito contente com o que você me disse o relacionamento desse homem com a mãe. Mas você deve persistir. O Inimigo trabalha de dentro para fora, transformando gradualmente as ações do paciente para que correspondam ao novo padrão, e talvez até mesmo a conduta dele para com a velha senhora mude a qualquer momento. Seria bom você intervir primeiro. Mantenha sempre contato com o nosso colega Gomalósio, que é responsável pela mãe, e fortaleça os dois naquela casa o bom e estável hábito da irritação mútua, das alfinetadas diárias. Os métodos que descreverei a seguir são de grande valia.

1. Faça-o prestar atenção apenas na sua vida interior. Ele pensa que sua conversão é algo que se deu den­tro dele e que sua atenção está, portanto, voltada neste momento para os estados do seu próprio espírito - ou pelo menos para a versão mais purificada deles, que é tudo o que você deve permitir que ele veja. Encoraje esse sentimento de introversão. Mantenha-o distante dos deveres mais elementares voltando sua atenção para os deveres espirituais mais avançados. Faça o possível para piorar essa útil característica humana, o horror e a negligência em relação às coisas óbvias. Você deve man­tê-lo num estado tal que ele possa perscrutar a si mes­mo durante uma hora sem descobrir nenhum desses fatos sobre ele mesmo, fatos que são perfeitamente vi­síveis para quem quer que viva com ele na mesma casa ou trabalhe com ele no mesmo escritório.

2. Certamente, é impossível impedir que ele reze pela mãe, mas temos meios de fazer com que as preces não tenham efeito. Certifique-se de que sejam bem "es­pirituais", que ele sempre se preocupe com o estado da alma da mãe, e nunca com seu reumatismo. Disso ad­vêm duas vantagens. Em primeiro lugar, ele prestará mais atenção naquilo que ele julga serem os pecados da mãe — se você guiá-lo um pouco, poderá induzi-lo a considerar qualquer um dos atos da mãe que ele julga inconvenientes ou irritantes como pecados. Assim, você poderá cutucar um pouco as feridas do dia mesmo quando ele estiver de joelhos. Toda essa operação não é nem um pouco difícil, e você achará tudo bem divertido. Um segundo lugar, já que as ideias dele sobre alma da mãe serão muito rudimentares e em sua maioria erróneas, ele, em algum grau, irá rezar por uma pessoa imaginária, e sua tarefa será fazer essa pessoa imaginária dia após dia cada vez menos parecida com a mãe verdadeira - a senhora de língua ferina que irrita o filho na mesa do café da manhã. Com o tempo, você conseguirá aprofundar a distância entre eles de tal forma que nenhum pensamento ou sentimento advindo das preces pela mãe imaginária jamais alcançará ou servirá de ajuda à mãe verdadeira. Já tive tamanho controle so­bre alguns de meus pacientes, que conseguia desviar sua atenção, num segundo, da prece fervorosa pela "alma" de uma esposa ou de um filho para o ato de insultar ou bater na esposa ou no filho sem nenhum remorso.

3. Quando dois humanos vivem juntos por muitos anos, é bem comum que cada um tenha um tom de voz ou uma expressão facial que sejam quase insupor­táveis para o outro. Aproveite-se disso. Faça-o prestar muita atenção naquela sobrancelha erguida da mãe, ma­neirismo que ele aprendeu a detestar já no berço, e dei­xe-o pensar no quanto isso o irrita. Deixe-o supor que ela sabe o quanto isso é irritante e que o faz apenas para irritá-lo — se você souber fazer o seu trabalho direitinho, ele não notará quão improvável é essa suposição. E, claro, nunca o deixe suspeitar de que ele também tem tons de voz e expressões que igualmente a irritam. Como ele não pode ver ou ouvir a si mesmo, será fácil.

4. Em meios civilizados, o ódio na vida doméstica costuma se expressar quando se dizem coisas que po­dem parecer bastante inofensivas quando escritas (as palavras não são ofensivas), mas que, ditas em deter­minado tom de voz ou em determinado momento, são como um soco no rosto. Para manter esse jogo em an­damento, você e Gomalósio devem fazer de tudo para que os dois tolos tenham dois pesos e duas medidas. O seu paciente deverá exigir que todas as suas frases sejam tomadas pelo seu valor literal, julgadas apenas pelas pa­lavras utilizadas, ao mesmo tempo que julga e interpreta todas as frases da mãe com uma sensibilidade exagera­da em relação ao tom, ao contexto e à intenção. Ela de­verá ser encorajada a fazer o mesmo. Assim, depois de cada briga, cada um pode ir para um lado, convencido, ou quase convencido, de que é inocente. Você sabe como é: "Basta que eu pergunte quando o jantar vai fi­car pronto para ela ter um acesso de fúria." Uma vez que o hábito estiver bem arraigado, você terá a deliciosa situação em que um ser humano diz coisas com o cla­ro intuito de ofender e ainda assim se ressente quando lhe dirigem uma ofensa.

Por fim, diga-me algo sobre a posição religiosa da senhora, Teria ela algum ciúme do novo fator na vida filho? Sente-se de algum modo ofendida com o fato de ele aprender com outros, e tão tarde na vida, aquilo que ela acha que deu a ele tantas oportunidades de aprender na infância? Ela acha que ele está fazendo uma tempestade em um copo d'água com esse assunto, ou que está, aceitando tudo muito calmamente? Lembra-se do irm­ão mais velho na história do Inimigo?

Afetuosamente, seu tio,
FITAFUSO

CLIVE STAPLES LEWIS, Cartas de um Diabo a seu Aprendiz, Carta 3, Oxford, 1942.

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Lewis e Tolkien: uma amizade fecunda


A amizade de John Ronald Reuel Tolkien e Clive Staples Lewis é exemplar pelos bons frutos que este diálogo trouxe para o legado cultural da humanidade e particularmente para o mundo cristão... Muitos leitores ignoram que o que os uniu foi sua fé cristã, bem como da contribuição de ambos para a cultura em geral e particularmente, para a filologia, no caso de Tolkien, e para a literatura, no caso de Lewis.

Enquanto C.S. Lewis é mais conhecido no meio cristão, tanto protestante, quanto católico, a profunda fé de J.R. Tolkien não é muito levada em conta por muitos dos seus fãs, que o veneram somente pela riqueza das sua fantasia, línguas e mundos que criou.

Temos fortes razões para acreditar que Lewis foi o melhor amigo de Tolkien em Oxford, embora a amizade de Lewis tivesse se dividido por algum tempo entre Tolkien e outro autor, Charles Williams, por quem Tolkien não tinha tanto apreço, e com a sua esposa, Joy Gresham, com quem se casou já na proximidade dos sessenta anos de idade e que certamente também contava entre suas melhores amigas (Lewis tinha várias amigas mulheres, também, coisa que para um intelectual daquela época era bastante incomum). Ambos tinham muito em comum, fato que Lewis sintetiza em sua autobiografia, Surpreendido pela Alegria, como o esforço pela “quebra de preconceitos”, particularmente entre os cristãos:

"A amizade com J.R.R. Tolkien... ficou marcada pela quebra de dois velhos preconceitos. Assim que eu ingressei neste mundo (o de Oxford) recomendaram-me (implicitamente) nunca confiar em um papista e quando ingressei novamente na Faculdade de Língua Inglesa recomendaram-me (explicitamente) jamais confiar nos filólogos. E Tolkien se enquadrava em ambas as coisas".

Podemos dizer ainda que os maiores preconceitos que ambos foram felizes em quebrar são contra a imaginação e contra a articulação de fé e razão, antiqüíssimo problema da humanidade. Na verdade eles se empenhavam pela articulação de tudo isto: devoção cristã, sensibilidade artística e competência acadêmica.

Tanto Tolkien quanto Lewis defendiam que o profissional, seja das letras, seja da educação ou outra "ciência humana" deve se valer de várias áreas do conhecimento na sua busca pela verdade, não apenas pela via da razão, mas também usando um importante mediador: a imaginação. Com isto, eles se colocavam contra o pensamento predominante na sua época, pautada pelo racionalismo e iluminismo acadêmico. É preciso considerar ainda a rivalidade que pode haver entre um campo “prático” como a crítica literária, representada por Lewis, e a filologia, considerada mais analítica. Assim, ao invés de separa-los, a especialidade dos dois intelectuais redundou em uma importante complementação e no incentivo à efetiva interdisciplinaridade, beirando a transdisciplinaridade.

Assim eles faziam diferença, ficando conhecidos como os “cristãos de Oxford”. Na verdade, eles faziam críticas aos chamados “cientistas cristãos”, que seguiam os passos dos não cristão em termos de racionalismo e positivismo. Com relação à questão do mal e do sofrimento, por exemplo, Lewis os considerava , de uma maneira geral, demasiadamente simplistas, quando tentavam explica-los como meras “ilusões”. Se assim fosse, diz Lewis tal ilusão é que seria uma “monstruosidade” e o que é pior, “permitida por Deus.” Certamente os males não aparecem desta forma na obra de nenhum dos dois autores. O sofrimento também se destaca como algo realmente existente e, de fato, assustador para alguns, embora, por outro lado, ele não tenha substância. No fundo o sofrimento, que é até mais natural ao cristão, do que ao não-cristão, que pode fazer um estrago para se defender dele, é um grande mistério, que exige fé antes de tudo.

Outra crítica que ambos faziam aos cristãos na academia era a suposição de que o mal poderia ter sido “criado” por Satanás, ou que ele fosse capaz de “inventar” alguma coisa boa. Tudo o que ele sabe fazer é imitar e imitar mal. Com estes conceitos fortes e bíblicos, todos os críticos concordam que O Senhor dos Aneis, jamais poderia ser considerada alguma “historinha para ninar” sobre um mundo “cor de rosa”. O mesmo, diríamos, vale para As Crônicas de Nárnia. O mal existe mesmo e é feio. E sua desvantagem é que só o que ele sabe fazer é corromper e distorcer o que já existe. Neste sentido ele pode ser comparado mais a uma doença e não, do que a algum estado permanente ou “normal.” Esta ênfase antimaniqueísta é fundamental para entendermos ambos os autores e suas obras.

Além da preocupação com a relação entre ciência e cristianismo e a questão do bem e do mal, o que unia os amigos era o seu empenho em serem bons escritores e bons críticos, até mesmo do cristianismo. Para além do interesse acadêmico, eles mostravam também um forte interesse artístico comum, particularmente pela literatura. Mas o que coroava mesmo a sua amizade é o teológico. No caso de Tolkien, a contribuição literária e do campo da filologia fosse mais reconhecida do que a teológica e acadêmica. Entretanto, suas cartas e depoimentos dos Inklings revelam a importância de suas convicções religiosas.

Apesar do clima de disputa reinante na Universidade de Oxford dos tempos de Tolkien e Lewis, e de ambos terem sido até certo ponto vítimas de ciúmes e preconceitos pelo sucesso de suas obras de ficção e pela coragem com que se referiam a temas religiosos, eles não se deixavam intimidar facilmente. De acordo com Humphrey Carpenter, Tolkien mesmo não escapou de revelar certa “inveja” da obra de Lewis e ciúme de certas amizades com autores de que ele não gostava muito. E a sua esposa, Edith, freqüentemente manifestava ciúmes em relação ao próprio Lewis, que sempre teve uma personalidade cativante. Entretanto, foi certamente a amizade entre os dois que inspirou grande parte do livro, dedicado por Lewis ao tema amor, Os Quatro Amores, particularmente no que tange à amizade.

Sua postura cristã é que permitia que ambos autores resolvessem suas diferenças de maneira tranquila, até mesmo as religiosas. Como se sabe, Tolkien manifestava certo ressentimento contra a igreja anglicana, a igreja da Inglaterra, por ter-se desviado do lar original do cristianismo, enquanto Lewis insistia que, ao se converter, sentia-se chamado a “voltar” ao seu lar original, a Igreja da Inglaterra.

Para além destas diferenças, Tolkien e Lewis procuravam complementar-se tanto nos seus esforços acadêmicos e debates teológicos. Enquanto Lewis escrevia histórias paralelamente aos seus livros teológicos, Tolkien empenhava-se por criar uma mitologia para a Inglaterra com fundo inevitavelmente cristão. Enquanto Lewis denunciava o que ele chamava de “o processo lingüístico inconsciente da degradação contínua de boas palavras e embotamento de distinções úteis”. Tolkien criava as suas próprias palavras e línguas.

Em Studies in Words, Lewis prova que tinha consciência de que nenhuma palavra humana é eterna. Como tudo o que é temporal, a linguagem humana tende ao caos e à dispersão do seu sentido. Pode-se dizer assim, que as línguas inventadas por Tolkien tinham esta função de resgate dos sentidos perdidos da nossa própria linguagem. Estas preocupações em comum é que permitiam o diálogo entre os dois pensadores, que visivelmente desenvolveram um profundo respeito um pelo outro, inclusive por seu campo acadêmico, como se vê nestas palavras de Lewis:

"Ouvi dizer que existe gente que gostaria mais que o estudo da literatura fosse completamente livrado da filologia; isto é, do amor e conhecimento das palavras. É provável que nem exista gente assim. Mas, se existir então, só podem ser lunáticos, ou candidatos ao tratamento de... alguma desilusão obstinada e fechada a sete chaves".

Mas o maior sinal de respeito de Lewis em relação ao amigo e sua especialidade é o herói de seu trilogia espacial, Longe do Planeta Silencioso, Perelandra e Esta Força Medonha, o filólogo Ransom, de um College de Cambridge, numa clara homenagem ao amigo.

Tolkien por sua vez, também faz homenagens ao amigo, neste comentário por exemplo: “A amizade com Lewis é compensatória em muitos aspectos: além do prazer constante, o contato com um homem ao mesmo tempo honesto, corajoso, intelectual – um acadêmico, um poeta e um filósofo – e, depois de sua longa peregrinação, finalmente um amante do nosso Senhor – fez-me um enorme bem.” E não se tratava de nenhuma admiração idealista ou acrítica. Apesar do respeito que Lewis tinha pelos filólogos, ele também reconhecia os seus limites, como se vê nesta comentário:

"O sonho do filólogo é de mapear todos os sentidos de uma palavra, gerando uma árvore semântica perfeita; cada ramo remetendo a um galho, cada galho, a um tronco. Isto em detrimento do fato de que seja algo que raramente possa ser feito com perfeição; afinal toda pesquisa redunda na incerteza".

A propósito, esta incerteza não se encontra somente na ciência, mas até nos jornais, como tão bem notaram filósofos famosos como os integrantes da Escola de Frankfurt, idealizadores da “teoria crítica” e uma das criadoras da teoria da chamada “indústria cultural”. Para Tolkien a verdade usualmente se encontra nos livros e não, nos jornais. Tanto Tolkien, quanto Lewis faziam severas críticas às manifestações do totalitarismo da tecnologia, que ao invés de suscitar reflexão filosófica como à semelhança da leitura, banaliza a realidade e embrutece as pessoas. Assim a filosofia é remetida aos filósofos e representante das “ciências humanas”, entendidas como as únicas a terem a competência e o direito de filosofar. E uma das melhores formas de manifestação desta crítica está em O Senhor dos Anéis como bem coloca Jane Chance: À semelhança de Foucault, J.R. Tolkien, da mesma forma que o seu companheiro dos Inklings, C.S. Lewis, questionava a validade de se eleger as ciências humanas como representante da razão da sua geração.... Tolkien manifestava esta crítica pela via da ficção através de instituições como Sauron, o Senhor do Escuro, e os seus seguidores associados ao território da morte, Mordor, que ele governava de maneira tão tirana. Todos os três pensadores levantam objeções contra o espírito combativo das tecnologias aplicadas ao governo das nações do mundo pós-iluminista.

Como tantos outros acadêmicos e escritores, (Júlio Verne, Monteiro Lobato, Miguel de Cervantes, Aldous Huxley, Guimarães Rosa, George Orwell) Tolkien e Lewis descobriram que a via da imaginação e da ficção é a melhor para se dizer o que tem que ser dito, fazendo a crítica do seu tempo e contribuindo, assim, para a transformação da história.

Tolkien e Lewis também mantinham o saudável hábito de fazer a crítica às suas respectivas obras de ficção, em particular ou na roda de amigos, os mencionados Inklings. De acordo com Lewis, eles costumavam reunir-se para discutir literatura, mas acabavam fazendo algo “bem melhor”, isto é, teologia. Lewis mostrava-se crítico até em relação à reação do amigo às críticas em geral. Diz ele que Tolkien tinha duas reações a elas “ ou ele começa tudo de novo desde o começo, ou ele não liga a mínima.” Evidentemente então a amizade não era sem atritos, mas qual amizade verdadeira e sincera poderia ser?

O que interessa para os nossos efeitos aqui é destacar que a amizade entre Lewis e Tolkien contribuiu muito para lançar pontes importantes para o diálogo, não somente entre os campos da lingüística e da literatura, mas também entre estes campos e outras áreas das ciências humanas tais como a filosofia, a história, a educação e até a teologia.

Em um ensaio sobre O Senhor dos Anéis, Lewis arrola algumas razões, porque considera a obra “indispensável”, notando, em primeiro lugar, que não se trata de uma continuação de O Hobbit. Pelo contrário, O Hobbit é que é uma tentativa de adaptação de O Senhor dos Anéis para crianças. A intenção de O Hobbit era de apresentar o jeito de ser e viver “doméstico”, quase vulgar e anárquico, de boa índole, apesar da aparência não muito atraente, destes seres peculiares, que, segundo Lewis, só um inglês seria capaz de criar. Já em O Senhor dos Anéis, a ênfase está no contraste entre os hobbits e o seu destino. Sua existência depende de poderes insuspeitos e surpreendentes. O mais irônico de tudo é que o herói principal deste drama épico é hobbit, o mais frágil de todos os seres. Daí que Lewis também chamasse O Senhor dos Anéis de “romance heróico”, o que não representou para ele um retrocesso, como para certos críticos, e sim, um avanço. Trata-se de um exemplar único da capacidade de sub-criação de Tolkien, pela qual ele recria o mundo todo. O livro é assim reservado a leitores “predestinados”. Na verdade, conclui Lewis, O Senhor dos Anéis é um mito, que não serve como meio de escape da realidade, como julgam alguns, mas como pura e saudável “invencionice” e consciente das ilusões da vida ordinária.

O elemento de nostalgia e angústia presente na obra, pode não ter efeito muito relaxante para o leitor, e diríamos que isto se aplica ainda mais ao filme, mas ele pode (esta é precisamente sua intenção), sim, ser revigorador, trazendo-lhe novas esperanças em meio às suas próprias angústias. Assim, a arte “mitopoeica” de Tolkien põe em jogo emoções, leveza, virtudes e horizontes distantes, procurando retratar o caráter paradoxal da vida humano situada que está neste vão intermediário entre a ilusão e o estar desiludido.

Naquele ensaio, Lewis contesta ainda as acusações de dualismo na obra, pois todos os personagens apresentam bons e maus aspectos misturados entre si. Não há pessoas, nem realidades “pretas” ou “brancas”. O melhor exemplo dessa mistura é Gollum. Contra a acusação de dualismo pesa ainda o fato de as coisas não acontecerem de forma aleatória, e nem tão pouco previsível em O Senhor dos Anéis. Não há relativismo, pois a ênfase está na providência divina que conduz tudo nos bastidores, mesmo que nem sempre de maneira visível. Lewis diz que Tolkien consegue tornar visíveis as almas invisíveis, trazendo para fora o que está dentro do coração. Desta forma, ele defende consistentemente a ideia de que a vida humana tem, de fato, este elemento heróico e mitológico, que só pode ser captado e devidamente “degustado” pelos que têm a simplicidade de uma criança no coração.

GABRIELE GREGGERSEN, artigo publicado no site Nas Pegadas de Aslan,
dedicado ao pensamento e obra de C.S. Lewis,
Sao Paulo, 11 de Maio de 2008

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