domingo, 1 de fevereiro de 2009

PORTICO: O Senhor da Terra Média


Voltamos depois de longas férias desejando retomar a periodicidade do nossa revista eletrônica. Ao longo das próximas semanas estaremos apresentando-lhes uma serie de textos que abordam a vida e obra de alguns intelectuais católicos que influíram no século passado. Um cada semana, dispondo para vocês uma breve nota biográfica, dois textos do autor e um comentário sobre algum aspecto da sua obra.

Esta semana lhes oferecemos a figura de John Ronald Reuel Tolkien, o Senhor da Terra Media, católico devoto e prestigiadíssimo filólogo de Oxford, criador de uma mitologia para seus contemporâneos que tem suas raízes profundas na fé cristã. Selecionamos para você textos de O Senhor dos Anéis e de O Silmarillion, e uma aguda analises de Stratford Caldecott, diretor do Centre for Faith and Culture de Oxford, sobre o tipo de heroísmo presente na obra de Tolkien. Junto aos textos, pinturas de John Howe e algumas imagens da arte conceitual do filme de Peter Jackson. Boa Leitura...
OS EDITORES

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Tolkien: O Último Bardo


John Ronald Reuel Tolkien nasceu em 3 de Janeiro de 1892 em Bloemfontein na África do Sul. Teve uma infância tumultuada por problemas respiratórios, que pioravam por causa do clima rigoroso e poeirento, infecções oculares e enfermidades cutâneas.

Depois da morte de seu pai, em 1895, Tolkien se viu em uma nova realidade. Foi morar na aldeia de Sarehole, com a mãe e o irmão. Foi o período em que desenvolveu seu gosto pelas línguas e pela mitologia. Em 1900, sua mãe teve de se mudar para o suburbio de Moseley, em Birmingham, devido à sua conversão ao catolicismo iniciada em 1899, a qual causara o abandono financeiro da família. Tanto as impressões positivas de Sarehole quanto as negativas de Moseley juntamente com a têmpera e a força de caráter de sua mãe que foi católica até o fim, marcaram de modo indelével todo o seu trabalho. Em sua velhice, em uma carta a seu filho Michael, afirmou que fora inspirado pelo catolicismo da sua mãe, que tinha uma grande paixão pelo Santíssimo Sacramento.

Outra figura importante que ele conheceu no período em que sua mãe voltou a morar em Birmingham foi o padre Francis Morgan Xavier, que acolheu sua mãe, dando-lhe melhores condições de vida em seus últimos dias e, por fim, tornou-se como um pai para ele e seu irmão na ausência de sua mãe. Ele era um dos sacerdotes do oratório de Birmingham, fundado pelo cardeal John H. Newman.

Depois da morte de sua mãe, ele e o irmão foram morar com a tia Beatriz Suffield, esta de características severas e amargas. Não ligava muito para o que os dois faziam. Seus dias eram passados ao lado do padre Francis. Por saber que não estavam bem, o padre Francis arranjou-lhes um lugar mais agradável na pensão dos Faulkner, casal muito alegre e animado.

Nessa casa feliz, ele conheceu Edith Bratt, com quem anos depois viria a se casar. Ali, ele começou a namorá-la. O padre Francis, preocupado com os estudos de Tolkien, proibiu seu romance com Edith até que ele completasse 21 anos. Relutantemente, ele obedeceu, pois sabia que o padre Francis somente desejava o melhor para ele.

Tal período foi uma época crucial na formação de seu caráter. Ele se dedicou com afinco aos estudos, distinguindo-se no plano acadêmico e a escola King Edward’s passou a ser o foco de sua vida. Lá, fundou um grupo de estudos com outros três colegas (Cristopher Wiseman, Robert Gilson e Geofrey Bach Smith) os quais receberam o título de bibliotecários e eram alunos monitores. O referido grupo, que ficaria conhecido como T. C. B. S. (Tea Club, Barrovian Society), continha os mais brilhantes rapazes do ano que logo seriam agraciados com a residência de estudantes de Oxbridge. Ao fim desse ano, ele conseguiu uma exhibition (bolsa de 60%) e mais uma outra bolsa conferida pela King Edward’s, por ter entrado em Oxford, e a generosa mesada do padre Francis que possibilitariam realizar o seu curso.

Em Oxford, Tolkien era um típico universitário de classe média baixa. Se juntou a sociedades de debate, de redação e de dialética. Lá, ele começou a fumar cachimbo e beber cerveja, além de ter relaxado em sua prática religiosa. Devido às questões de vida que enfrentava naquele período, só conseguiu obter uma segunda classe deixando os mestres em Exeter decepcionados. Contudo, em razão da peculiaridade de seus resultados, os Fellows, membros do conselho da universidade, chefiados pelo reitor, recomendaram que ele mudasse do curso de letras clássicas para língua e literatura inglesas, curso em que estaria mais identificada e obteria mais sucesso.

Logo que completou 21 anos, Tolkien reatou com Edith só para descobrir que estava noiva de outro, por medo de ser deixada de lado. Ele aproximou-se dela e, após horas de conversa, esta rompeu o noivado por concluir que ele ainda a amava. Casou-se com Edith pouco antes de servir à Inglaterra por ocasião de Primeira Guerra Mundial. Foi uma relação saudável e produziu muitos e bons frutos. Tolkien sempre foi um pai amoroso e presente para seus quatro filhos.

Tolkien recebeu algum treinamento militar e, pouco depois de se casar, foi para o front. Foi uma experiência trágica e marcante em sua vida. Lá, ele perdeu dois grandes amigos do T. C. B. S.: Robert Gilson e Geoffrey Bach Smith. Em seis meses, ele contraiu febre das trincheiras e passou os dois anos seguintes em tratamento e convalescença. Enquanto convalescia começou a escrever alguns contos de O Silmarillion.

Tolkien passou a trabalhar no The New English Dictionary em Oxford. Começou a dar aulas particulares para estudantes universitários. Em 1920, ele aceita o cargo de reader (professor universitário), em Leeds. Em Outubro de 1925, é nomeado professor titular da cátedra Rawlinson e Bosworth de anglo saxão na universidade de Oxford. Ele incentivava e cultivava a formação de grupos de estudo para os alunos e professores tais como The Coalbiters e os Inklings.

Em Setembro de 1937, sua primeira obra, The Hobbit, é publicada. No verão de 1945, é nomeado professor titular de língua e literatura inglesas do Merton College em Oxford. Em agosto de 1954, é publicado The Lord of the Rings – The Fellowship of the Ring. Em novembro do mesmo ano, é publicado The Lord of the Rings – The Two Towers, e em outubro do ano seguinte, The Lord of the Rings – The Return of the King. Estas obras revelariam sua profunda religiosidade católica em suas entrelinhas. Em 1957, os manuscritos originais de The Lord of the Rings e The Hobbit são vendidos para uma universidade estadounidense.

Em 1959, ele se aposenta de seu professorado. Depois de sua aposentadoria, Tolkien viveu com sua esposa uma vida farta, dando-se a certos luxos, graças ao enriquecimento que a sua obra maior lhe tinha proporcionado. Faleceu em 2 de Setembro de 1973, devido a uma úlcera gástrica não identificada pelos raios x.

Nota biográfica preparada por Fábio C. Rabelo, membro do nuec,
Belo Horizonte, Fevereiro de 2009

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"Salvei o Condado, mas não para mim"

Frodo e Sam pararam e sentaram-se em silêncio na sombra fresca, até que viram uma luz fraca no momento em que os viajantes vieram na direção deles.

Lá estava Gildor e muitos outros belos elfos; para a surpresa de Sam, também vinham a cavalo Elrond e Galadriel. Elrond estava com um manto cinza e tinha uma estrela sobra a testa; trazia na mão uma harpa de prata e no dedo um anel de ouro com uma pedra azul, Vilya, o mais poderoso d’Os Três. Mas Galadriel montava um palafrém branco e vinha toda vestida de um branco reluzente, como as nuvens em torno da lua; pois parecia que ela mesma emanava uma luz suave. Em seu dedo estava? Nenya, o anel feito de mithril, que exibia uma única pedra branca faiscante como uma gélida estrela.

Avançando lentamente logo atrás, num pequeno pônei cinzento, cabeceando de sono ao que parecia, vinha Bilbo em pessoa. Elrond os saudou com graça e gravidade, e Galadriel sorriu para eles.

Bem mestre Samwise - disse ela- ouvi dizer e vejo agora que você usou bem o meu presente. Agora mais que nunca o Condado será abençoado e amado. Sam se curvou, sem saber o que dizer. Esquecera-se de como a Senhora era bela.

Então Bilbo acordou e abriu os olhos. Olá, Frodo! – disse ele. Bem hoje ultrapassei o Velho Tûk. Então fica tudo certo. E agora acho que estou pronto para fazer uma outra viagem. Você vem?

-Sim , eu vou – disse Frodo. Os Portadores dos Anéis devem ir juntos.

-Aonde o senhor vai, Mestre? - exclamou Sam, embora finalmente percebesse o que estava se passando.

- Para os Portos, Sam – disse Frodo .

- E eu não posso ir.

- Não, Sam. Pelo menos não por enquanto, não além dos Portos. Embora você também tenha sido um Portador do Anel, mesmo que por pouco tempo. O seu tempo pode chegar. Não fique muito triste, Sam. Você não pode sempre ficar dividido em dois. Terá de ser um e inteiro, por muitos anos. Ainda tem muito para desfrutar, para ser e para fazer.

- Mas - disse Sam, com as lágrimas brotando em seus olhos – achei que o senhor também ia desfrutar o Condado, por muitos e muitos anos, depois de tudo o que fez.

- Eu também já pensei desse modo. Mas meu ferimento foi muito profundo, Sam. Tentei salvar o Condado, e ele foi salvo, mas não para mim. Muitas vezes precisa ser assim, Sam, quando as coisas correm perigo alguém tem de desistir delas, perdê-las , para que outros possam tê-las. Mas você é meu herdeiro: tudo o que tive e poderia ter tido lhe deixo. E também você tem a Rosa e Elanor; e o menino Frodo virá, e a menina Rosinha; e Merry, Cachinhos Dourados e Pippin e talvez ainda outros mais que eu não consigo ver. Suas mãos e suas atenções serão necessárias em todo lugar. Você será Prefeito, é claro, enquanto quiser ser, e o jardineiro mais famoso da história; e você lerá coisas no Livro Vermelho, e manterá viva a memória da era que se passou; assim as pessoas se lembrarão do Grande Perigo e amarão mais ainda sua terra querida. E isso o manterá tão ocupado e feliz quanto alguém pode estar, enquanto prosseguir a sua parte da História.

JOHN RONALD REUEL TOLKIEN, The Lord of the Rings: The Return of the King, Oxford, 1955.

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Os Filhos de Ilúvatar


Agora já se disse tudo o que estava relacionado à natureza da Terra e seus governantes no início dos tempos, e antes que o mundo se tornasse tal como os filhos de Ilúvatar [Deus] o conheceram. Pois elfos e homens são os filhos de Ilúvatar; e, como os Ainur [anjos] não entendessem plenamente o tema através do qual os filhos entraram na música, nenhum Ainu ousou acrescentar nada de seu próprio alvitre. Motivo pelo qual os Valar estão para essas famílias mais como antepassados e chefes do que como senhores. E, se algum dia no seu trato com elfos e homens, os Ainur tentaram forçá-los quando eles não queriam ser orientados, raramente o resultado foi bom, por melhor que fossem as intenções. As relações dos Ainur na realidade se deram principalmente com os elfos, pois Ilúvatar os fez mais parecidos com os Ainur, embora inferiores em poder e em estatura; enquanto aos homens conferiu dons estranhos.

Pois diz-se que, depois da partida dos Valar, houve silêncio, e, por uma eternidade, Ilúvatar permaneceu sentado, meditando. Falou ele então e disse: - Olhem, eu amo a Terra, que será uma mansão para os quendi [elfos] e os atani [homens]! Mas os quendi serão as mais belas criaturas da Terra; e irão ter, conceber e produzir maior beleza do que todos os meus Filhos; e terão a maior felicidade neste mundo. Já aos atani concederei um novo dom. Ele, assim, determinou que os corações dos homens sempre buscassem algo fora do mundo e que nele não encontrassem descanso; mas que tivessem capacidade de moldar sua vida, em meio aos poderes e aos acasos do mundo, fora do alcance da música dos Ainur, que é como que o destino de todas as outras coisas; e por meio de sua atuação tudo deveria, em forma e de fato, ser completado; e o mundo seria concluído até o último e mais ínfimo detalhe.

Ilúvatar sabia, porém, que os homens, colocados em meio ao torvelinho dos poderes do mundo, se afastariam com freqüência do caminho e não usariam seus dons em harmonia; e disse: - Esses também, no seu tempo, descobrirão que tudo o que fazem resulta no final em glória para minha obra.

[...] Inclui-se, neste dom de liberdade, que os filhos dos homens permaneçam vivos por um curto intervalo no mundo, não sendo presos a ele, e partam logo, para onde, os elfos não sabem. Ao passo que os elfos ficam até o final dos tempos, e seu amor pela Terra e por todo o mundo é mais exclusivo e intenso por esse motivo e, com o passar dos anos, cada vez mais cheio de tristezas. Pois os elfos não morrem enquanto o mundo não morrer, a menos que sejam assassinados ou que definhem de dor (e a essas duas mortes aparentes eles estão sujeitos); nem a idade reduz a sua força, a menos que estejam fartos de dez mil séculos; e, ao morrer, eles são reunidos na morada de Mandos, em Valinor, de onde podem depois retornar.

Já os filhos dos homens morrem de verdade, e deixam o mundo, motivo pelo qual são chamados de Hóspedes ou Forasteiros. A morte é seu destino, o dom de Ilúvatar, que, com o passar do tempo, até os poderes hão de invejar. Melkor [Lúcifer], porém lançou sua sombra sobre esse dom, confundindo-o com as trevas; e fez surgir o mal do bem; e o medo, da esperança. Outrora, no entanto, os Valar declararam aos elfos em Valinor que os homens juntarão suas vozes ao coro na segunda música dos Ainur; embora Ilúvatar não tenha revelado suas intenções com relação aos elfos depois do fim do mundo; e Melkor ainda não as tenha descoberto.

JOHN RONALD REUEL TOLKIEN, The Silmarillion, Londres, 1977.

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O Heroísmo Cristão na Obra de Tolkien


O Senhor dos Anéis é a obra de um católico devoto. Seus cantos élficos estão forjados segundo umas linhas melódicas que evocam a Benção, e sua estrutura moral procede diretamente do Novo Testamento. Esta é, pois, uma obra cristã, ainda que de gênero antiqüíssimo e ao mesmo tempo brilhantemente original.

Na medida que avança dos capítulos iniciais situados no Condado à vasta tela da Terra Media, O Senhor dos Anéis consegue integrar a forma da novela moderna à tradição muito mais antiga da poesia épica e da saga heróica. Isto não significa que Tolkien fora um bardo profissional louvando as gestas do seu herói tribal ou embelezando antigas lendas em algum castelo cheio de fumaça. Era um catedrático de Oxford, um professor de línguas que tinha de escrever suas histórias na solidão da noite e a risco de perder sua reputação diurna. O mais perto que esteve de uma fogueira de castelo foi na taberna cheia de fumaça The Eagle and Child, com seus amigos os Inklings.

O Senhor dos Anéis não é uma obra sem defeito, mas é mais rica e profunda que muitos livros preparados mais cuidadosamente por homens menos profundos. O que levava Tolkien a trabalhar até altas horas da noite não era só o desejo de contar uma história, mas a consciência de que ele era parte de uma historia. Talvez estivera escrevendo ficção, mas estava narrando a verdade sobre o mundo, como esta revelava-se para ele. E esta verdade foi descoberta na medida de que escrevia. "Tive sempre a sensação de registrar o que sempre esteve 'ali', emalguma parte, não de inventar", disse em uma das suas cartas.

[...] O Senhor dos Anéis trata de uma Busca, mas sua redação foi também uma Busca, assim como pode sê-lo sua leitura. A Busca é, sem lugar a dúvidas, uma das três ou quatro "estruturas profundas" utilizadas pelos narradores. Uma Busca é qualquer viagem na qual deve alcançar-se um objetivo difícil, acometer algum desafio, passar por alguma iniciação, ganhar ou descobrir algum objeto, local ou pessoa. A razão que explica a persistente popularidade do livro é evidente. Uma Busca deste tipo dá sentido à nossa existência. Não estamos onde queremos ou não somos o que desejamos ser: para chegar ali é necessário viajar, ainda que viajando, como G. K. Chesterton e T. S. Eliot, só para retornar ao ponto de partida "e conhecer o lugar pela vez primeira" (Little Gidding)... Todos sabemos, no fundo do nosso coração, que nossa vida não é simplesmente um progresso mecânico do berço ao túmulo, senão a busca de algo, de um esquivo tesouro. Este objetivo final inspira nosso trabalho e nosso comportamento... A Busca desencadeia nossa nostalgia de um paraíso perdido, nossa anseio de restauração e realização vindouras.

O livro que conhecemos como O Senhor dos Anéis é só um fragmento de um corpo muito mais amplo de contos, a maioria dos quais não foram publicados na vida de Tolkien. No transcurso dos anos foi ampliando-os pouco a pouco, preenchendo uma vasta tela histórica, tecendo tema sobre tema, até que a coleção chegou a ser uma "grande árvore", sólida e venerável como um velho carvalho, a tentativa de uma "mitologia para Inglaterra".

Como filólogo, Tolkien estava bem preparado para sua Busca pessoal. Já na escola havia aprendido sem ajuda uma dúzia de idiomas. E como cristão, sabia que "no principio a Palavra era... Nela estava a vida, e a vida era a luz dos homens". Sua mitologia própria inicia com a criação. O Deus Único, Ilúvatar, dá existência ao mundo com a palavra, "Eä! Que sejam estas coisas!" Enviando ao vazio à Chama Imperecível. Depois do momento exato da criação está a musica dos Ainur, a harmoniados arquétipos. Mas Eä, o "mundo que é", começa, como no livro do Gênesis, com a Palavra e a Luz.

A árvore dos Contos de Tolkien cresceu a partir de uma única semente. Em uma de suas cartas descreve o momento exato em que essa semente começou germinar. Em 1913, em quanto lia o poema Crist do escritor anglo saxão do século VIII, Cynewulf, dois dos versos impressionaram-lhe poderosamente:

Salve Earendel, o mais brilhante dos anjos
Enviado aos homens sobre a Terra Media.

"Senti uma curiosa excitação
–escreveu-, como se saindo de um sono, alguma coisa se agitara em mim. Atrás daquelas palavras havia algo muito remoto, raro e formoso, se podia apropriá-lo, algo que estava muito alem do antigo inglês". Com os anos, "Earendel", agora "Eärendil", se converteu para Tolkien no grande antepassado dos reis de Númenor, mensageiro das Duas Linhagens diante dos Senhores do Oeste. Para obter a ajuda destes paraderrotar o Grande Inimigo, Morgoth (de quem Sauron não é mais do que um servente), teve que ingressar nas praias proibidas de Eldamar. Impossibilitado depois para retornar a Terra Media que havia salvado, os Valar lhe colocaram nos céus para que viajasse eternamente como a Estrela da Manhã. Sujeito à sua frente brilhava uma Silmaril, a última das três jóias forjadas por Fëanor em um distante passado, preenchidas com uma luz extinta no mundo há muito tempo.

Deste modo, os versosde Cynewulf teriam crescido até se converter em toda mitologia:

Salve, Eärendil,
Portador da luz diante do Sol e da Lua!
Esplendor dos Filhos da Terra,
Estrela que brilha na escuridão,
Jóia no crepúsculo,
Radiante na manhã!

Mas, como chegou o Silmaril a Eärendil? Essa pergunta levou a Tolkien até Beren e Lúthen, ao mesmo coração do sistema mitológico do qual O Senhor dos Anéis é só um fragmento, e à essência da sua concepção do heroísmo... o conto de Beren e Lúthein é narrado por Bilbo a Frodo, e pelos Elfos em Valfenda, e é lembrado pelos personagens em numerosas passagens em O Senhor dos Anéis. A história de amor entre Aragorn e Arwen segue o modelo de Beren e Lúthien e ajuda aos protagonistas acompreender qual é sua missão do mesmo modo que ajudou Tolkien a compreender qual era a sua. Os dois mundos se unem na morte: umal ápide em Wolvercote identifica ao autor como Beren e a Edith, sua esposa, como Lúthien. "A Luz deve ser resgatada das trevas, inclusiveao preço da vida mesma, se temos chegado a ser dignos do amor".

A vontade de um homem não pode aspirar sem pecado à "Chama Imperecível", eterna fonte do ser. Mas, como nas Silmarils de Feanor, a criatividade pode forjar na terra um lugar para que essa luz brilhe, relembrando ou prolongando a perfeição perdida da inocência e contribuindo a perfeição final de um tempo fora do tempo ainda por vir. A guerra desencadeada pelo mal para ganhar a possessão da luz parece ser interminável, mas no meio da tragédia, a esperança nunca morre.

[...] Com maior claridade que em O Silmarillion, o heroísmo em O Senhor dos Anéis adota uma inconfundível forma cristã. Cada um dos três heróis principais é uma espécie de figura “crística”. Todos eles oferecem sua vida pelos outros, todos eles passam através da escuridão e inclusive de uma sorte de morte a uma espécie de ressurreição. Gandalf defende os companheiros contra o Balrog demoníaco na estreita ponte de Moria e cai com seu inimigo. Vitorioso, na morte é envidado de “volta”, já não como Gandalf o cinzento, mas dotado de uma autoridade de poder ainda maiores como Gandalf o Branco. Passolargo / Aragorn também “desce aos infernos” atrevendo-se a transitar as trilhas dos mortos sob a montanha encantada, e convoca os espíritos dos mortos perjuros na pedra negra de Erech. Finalmente, Frodo passa através da impenetrável escuridão de Laracna sob Minas Morgul, ficando inconsciente até o ponto que Sam não pode distinguir se estava vivo ou morto. Mas em seu caso, a identificação com Cristo sofredor continua depois da vitória conseguida com tanto sacrifício. Suas feridas que lhe fazem parecer “cheio de luz”, nunca poderão sarar de todo na Terra Média. Desde os Portos Cinzentos passa ao oeste, e sua partida junto aos altos Elfos e Gandalf marca o final da Terceira Idade do mundo.

O livro, porém, não termina com a partida de Frodo. Finaliza quando Sam retorna ao Condado e senta-se com sua filhinha no colo. Isto nos leva ao quarto, e eu diria central, herói dos Senhor dos Anéis Samwise Gamgee. Por que Sam mais do que Frodo, quem encarna melhor a condado e quem está mais profundamente mais enraizado naquela terra. No Senhor dos Anéis, o crescimento e o restabelecimento do condado andam juntos. Isto tem sentido por que, como Tolkien escreveu uma vez o propósito da narração é o “enobrecimento, ou santificação dos humildes”. O Senhor dos Anéis é um narração onde “ os últimos serão os primeiros, e os primeiros serão os últimos”.

O Anel é um símbolo de orgulho e poder. Representa tudo o que nos arrasta até o reino do senhor escuro tentando-nos a ser como ele. Sua forma circular é a mesma da vontade centrada em si mesma. Seu centro vazio sugere o vazio ao que nos jogamos usando o Anel. A invisibilidade que o portador é encoberto quebra as relações normais que mantemos em nosso entorno. Todos temos um Anel como este: conforme o alicerces da nossa própria Torre Obscura, quer dizer no seu falso Eu. Nossa Busca, como a de Frodo e Sam, consiste em renunciar o Anel e libertar-nos de sua influência sobre nós, seguindo a trilha que só Cristo tem seguido até o fim: sacrificando-se pelos amigos. Se este é o significado do Anel, renunciar a ele é impossível, como Tolkien compreendeu sem ajuda “externa”. Em Teologia isto seria a graça. Lembremos que já nas Fendas da Perdição o portador do Anel reclama o Anel para si. Sua liberdade para jogá-lo no fogo havia sido minada pela tarefa de chegar até lá. O que finalmente o salva é o acidente, mas só aparentemente, pois em realidade é a conseqüência direta de sua decisão de salvar a vida de Gollum. Portanto, de certo modo não é Frodo propriamente dito quem salva a Terra Média, muito menos Gollum que lhe tira o Anel numa mordida, fazendo-o cair no fogo. Também não é Sam, que aprendeu da compaixão de Frodo e sem o qual este nunca haveria alcançaado as Fendas da Perdição. O Salvador da Terra Média é Aquele que atua por meio do amor e da liberdade das suas criaturas, que perdoa nossas dividas “assim como nós perdoamos aos nossos devedores”, utilizando nos seus erros e até os desígnos do inimigo para produzir em nós o bem. O final do Senhor dos Anéis é o triunfo da Providência sobre o Destino , mas também o triunfo da Misericórdia na qual o livre arbítrio auxiliado pela graça é plenamente afirmado.

[...] A queda do homem abriu um abismo cheio de fogo entre o mundo real e o mundo ideal, entre verdade e bondade. A ponte da beleza está danificada irremediavelmente, porém devemos unir os dois extremos convertendo nossa existência na trilha que salve os demais do abismo: qualquer um que atue desta forma converte-se em Herói e em Rei. No livro bíblico do Apocalipse se diz: “Ao que vença lhe darei maná escondido, lhe darei uma pedra branca, e sobre a pedra um novo nome escrito que ninguém conhece a não ser aquele que o recebe” (Ap 2,17). Este “nome novo” é a identidade eterna, a personalidade transfigurada, o tesouro oculto que cada um de nós tem vindo a descobrir na Terra. Mas não se trata de somente descobrir, mas de fazer , de cumprir. Deus aguarda nossa resposta na liberdade. Nossa eleição é essencial para o drama. E isso converte o mundo em um drama carregado de perigo real.

STRATFORD CALDECOTT, Over the Chasm of Fire: Christian Heroism in Lord of the Rings and The Silmarillion, ensaio publicado no livro Tolkien: A Celebration, de Joseph Pearce, Londres, 1999.

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