domingo, 21 de junho de 2009

PÓRTICO: A Ideologia Azul

O Liberalismo configurou - progressivamente - a face do Ocidente durante três séculos. O colapso do império soviético (1989-1991) levou alguns a pensarem que presenciávamos o "fim da história" com o triunfo definitivo da ideologia liberal e com a expansão total do chamado "mundo livre". Não foi assim, hoje a ordem mundial gestada pelos liberais está em crise e novos socialismos se fortalecem à sombra do “sadio egoísmo individual”. A Igreja viu sempre no Liberalismo um adversário e o combateu, tanto como ao Socialismo. Apresentamo-lhes neste número uma síntese das idéias liberais num texto do filósofo argentino Carlos Alberto Sacheri, assassinado ao sair da Missa pelo Ejercito Revolucionario del Pueblo, na véspera do Natal de 1974. Uma avaliação crítica desta ideologia é oferecida numa seleção de textos do Magistério, cabe destacar a aguda dissecção que Leão XIII faz dos diversos tipos de liberalismos em Libertas praestantissimum. Do poeta uruguaio Mario Benedetti - militante de esquerda - é o engraçado e perspicaz poema "dialogado" dedicado a como amam e desamam os-que-todo-tem e os-que-nada tem. Dois textos abordam a herança rousseauniana que se encontra no âmago do liberalismo político, um do ex-prefeito de Florença, Giorgio La Pira, atualmente em processo de beatificação, e outro de Peter Drucker, austríaco naturalizado estadounidense, guru da gestão organizacional; este último aponta as raízes liberais dos totalitarismos modernos. Para concluir, publicamos um texto do ex-vice presidente e atual senador Marco Maciel, católico declarado, em que defende sua adesão ao liberalismo. Não concordamos com sua posição ideológica, mas consideramos sua análise relevante para entender porque alguns católicos se engajam nesta corrente .
Boa Leitura.

OS EDITORES

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A liberdade exaltada e absolutizada

Uma das principais correntes que caracterizam a cultura moderna é o chamado liberalismo. Como a sua etimologia indica, a doutrina liberal tem por essência propiciar a exaltação da liberdade humana.

A Igreja sempre rechaçou o liberalismo em numerosos documentos, condenando formalmente suas teses mais graves. O Pontífice Pio IX condenou 80 proposições e teses heréticas em sua encíclica Quanta Cura com Syllabus em anexo, a 8 de dezembro de 1864, reiterando as advertências que o mesmo havia formulado em 32 documentos anteriores. A quase totalidade das teses condenadas tem sido defendida por diversos autores de inspiração liberal.

A atitude da Igreja frente aos erros do liberalismo foi constante e reiterada em inumeráveis textos do Magistério. Desde a carta Quod Aliquantum, em 10 de março de 1791, de Pio VI, [passando pela carta Libertas praestantissimum, em 20 de junho de 1888, de Leão XIII que trata específicamente do tema], até a recente carta Octogesima Adveniens, de Paulo VI ao cardeal Maurício Roy, em 14 de maio de 1971, a coerência doutrinal dos documentos pontifícios é invariável em seu conteúdo ao longo desses dois séculos.

Quais são os motivos de tal severidade por parte da Igreja,frente a uma doutrina que dominou as nações do Ocidente durante quase três séculos? Uma consideração atenta dos principais aspectos da ideologia liberal nos permitirá compreender as razões do constante combate que a Igreja assumiu heroicamente, com todos os riscos que corre, com todos os mártires que conta em suas fileiras.

Fontes doutrinais
A corrente liberal teve particular vigência durante os séculos XVIII e XIX. Através do processo revolucionário francês de 1789 – que constituiu a primeira Revolução internacional – se estendeu rapidamente pelos países europeus, e logo foi difundida pelos exércitos napoleônicos nos países da Hispanoamérica. Desde o final do século XIX, o liberalismo clássico foi adotando posturas mais matizadas, diante da tremenda evidência de caos social e econômico causado na Europa pela aplicação de seus princípios.

As raízes doutrinais da corrente liberal podem sintetizar-se em quatro principais: 1) o nominalismo do século XIV, com sua negação da universalidade do conhecimento e sua ênfase no individual; 2) o racionalismo do século XVI com sua exaltação absoluta da razão humana; 3) o iluminismo que deu lugar ao livre-pensamento e à moral relativista. A eles deve somar-se o influxo do protestantismo, sobretudo em sua versão calvinista, que fomentou – como o provam os estudos de [Ernest] Troelsch, [Richard Henry] Tawney, [Werner] Sombart, [Hillaire] Belloc e Max Weber em A ética protestante e o espírito do capitalismo, de 1904.

O humanismo liberal
Desde o ponto de vista filosófico, o liberalismo considera a liberdade como a essência mesma da pessoa, desconhecendo que os atos humanos são sinais livres enquanto supõe uma guia ou orientação da razão.

O homem é considerado como naturalmente bom e justo, possuidor de uma liberdade absoluta, que não reconhece limite algum. O “bom selvagemrousseauniano é o arquétipo do indivíduo independente e soberano, incapaz de malícia alguma. É bom pelo simples fato de ser homem, sem que sua perfeição requeira uma educação, um esforço ou uma decisão pessoais.

Na medida do exercício pleno de sua independência, o ser humano está chamado a um progresso indefinido e necessário, tanto intelectual como moral. No plano da conduta, o sujeito não pode estar submetido a regulação ética alguma que não provenha da negação de toda ordem objetiva de valores.

A economia liberal
O liberalismo econômico centra tudo na iniciativa e no interesse individual. Adam Smith fala do “sadio egoísmo individual” como motor do dinamismo econômico. A única lei fundamental é a lei da oferta e da demanda; respeitando-a cabalmente se produzirá espontaneamente a harmonia dos interesse particulares.

Esta concepção visa o lucro, a ganância pela ganância mesma, o caráter de fim último da economia. O desejo do lucro não reconhece limitação de nenhum tipo moral nem religioso. O direito de propriedade é exaltado como direito absoluto, de modo tal que o dono pode chegar até a destruição do bem que possui, em nome de seus direitos; não se assegura à propriedade nenhuma função social.

O trabalho humano – em particular, o do trabalhador braçal – é assimilado a uma função de menor valor, objeto de compra-venda no mercado, com esquecimento total da dignidade própria do assalariado. O salário, submetido à Lei de bronze, só leva em conta o indivíduo que trabalha e não a sustentação da família.

A sociedade e o estado
Em razão de postular que só o respeito à liberdade absoluta de cada cidadão assegura automaticamente a harmonia dos interesses particulares, o liberalismo suprime todos os grupos e instituições existentes entre os indivíduos e o Estado.

É assim que a família se vê gravemente afetada pela introdução do divórcio, pela total liberdade de designar herdeiros, pela divisão do patrimônio familiar. Assim também, a Lei de Lê Chapelier (1791) suprimiu todas as organizações artesanais e profissionais existentes na França, proibindo toda forma de reunião e de associação, pelas considerações atentatórias da liberdade individual.

O Estado, definido como ditatorial por natureza, é relegado a mero protetor da liberdade e da propriedade de cada cidadão; em virtude do “laissez passer, laissez faire”, a autoridade política carece de toda função positiva.

A moral e o direito
Dado que o indivíduo é autônomo, não reconhece outras normas a que ele mesmo se dita. Todos os valores morais se reduzem ao domínio subjetivo, razão pela qual o que um concebe como reto e justo não tem por que razão ser admitido pelos demais.

Assim como a moral se separa totalmente da religião, o direito se separa da moral (positivismo jurídico). Todo direito é subjetivo e não reconhece outra regra senão a vontade dos sujeitos que livremente fazem acordo de convênios, contratos, sociedades.

Em nome do sufrágio universal e da soberania popular, a democracia liberal expressa na forma de lei o que os indivíduos decidem. O direito positivo não reconhece nenhuma dependência com relação ao direito natural, e se exige em princípio a separação total entre Igreja e Estado, sem colaboração.

Cultura e religião
Esta exaltação dos valores individuais também afeta o plano da cultura, que é concebido como uma atividade autônoma, desvinculada dos valores éticos. O culto da “arte pela arte” é uma expressão concreta de tal atitude.

No plano religioso, o liberalismo conduziu primeiramente ao indiferentismo e, logo, ao ateísmo. Seu naturalismo integral seculariza tudo. A religião se reduz a sentimentos subjetivos, separados das atividades diárias.

Esse ateísmo prático se traduz no laicismo educativo e social, que elimina toda referência ao transcendente e exalta a liberdade de consciência e de cultos. O recente Concílio [Vaticano II] definiu claramente esta concepção: “Os que professam este ateísmo afirmam que a essência da liberdade consiste em que o homem é o fim de si mesmo, é único artífice e criador de sua própria história”.

O exposto mostra claramente que a ideologia liberal elabora uma concepção da pessoa humana e das relações sociais em aberta oposição ao sentido [cristão] da vida.

CARLOS ALBERTO SACHERI, El ordem natural, Buenos Aires, 1974.
Tradução de Diego da Silva.

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A voz da Igreja: a Ideología Azul

1. LIBERDADE SEM LIMITES. [A primeira Constituição da França, depois da Revolução Francesa] estabelece como um direito humano na sociedade a liberdade absoluta.
[...] Mas o que poderia ser mais insensato, do que estabelecer entre os homens essa igualdade e essa liberdade sem limites, que reprime a razão – o mais precioso dom natural dado ao homem e que o distingue dos animais?
[...] Depois de haver criado o homem em um lugar provido com coisas deleitáveis, Deus não o ameaçou com a morte se comesse a fruta da árvore do bem e do mal? E com essa primeira proibição Ele não estabeleceu limites para a sua liberdade?
[...] O homem deve usar sua razão antes de tudo para mostrar-se agradecido ao seu Soberano Criador, para honrá-lo e admirá-lo, e para submeter toda a sua pessoa a Ele. [...] Deve ordenar sua vida de acordo com as leis da razão, da sociedade e da religião.

PAPA PIO VI, Quod aliquantum, Nos. 7-8,
Roma, 10 de Março de 1791.

2. DE RAÍZ NATURALISTA. Em nosso tempo há não poucos que, aplicando à sociedade civil o ímpio e absurdo princípio chamado de naturalismo [pano de fundo do liberalismo], atrevem-se a ensinar que a perfeição dos governos e o progresso civil exigem imperiosamente que a sociedade humana se constitua e se governe sem preocupar-se em nada com a religião, como se esta não existisse, ou, pelo menos, sem fazer distinção nenhuma entre a verdadeira religião e as falsas. [...] Quando na sociedade civil é desterrada a religião e ainda repudiada a doutrina e autoridade da mesma revelação, também se obscurece e até se perde a verdadeira ideia da justiça e do direito, em qual lugar triunfam a força e a violência, claramente se vê por que certos homens, depreciando em absoluto e desejando a um lado os princípios mais firmes da sã razão, se atrevem a proclamar que a vontade do povo manifestada pela chamada opinião pública ou de outro modo, constitui uma suprema lei, livre de todo direito divino ou humano; e que na ordem política os fatos consumados, pelo mesmo que são consumados, têm já valor de direito. Mas, quem não vê e não sente claramente que uma sociedade, subtraída as leis da religião e da verdadeira justiça, não pode ter outro ideal que acumular riquezas, nem seguir mais lei, em todos seus atos, que um insaciável desejo de satisfazer a concupiscência indomável do espírito servindo tão somente a seus próprios prazeres e interesses?

PAPA PIO IX, Quanta Cura, Nos. 3 e 4,
Roma, 8 de Dezembro de 1864.

3. O RETO CONCEITO DE LIBERDADE. A liberdade, excelente bem da natureza, próprio e exclusivo dos seres dotados de razão, confere ao homem uma dignidade em virtude da qual ele é colocado entre as mãos do seu alvedrio e se torna senhor de seus atos. Mas, o principalmente importante nesta prerrogativa é a maneira como ela se exerce, porque do uso da liberdade nascem os maiores males, assim como os maiores bens. Sem dúvida, está no poder do homem obedecer à razão, praticar o bem, caminhar direito ao seu fim supremo. Mas pode também seguir outra direção diferente, e, seguindo espectros de bens falazes, destruir a ordem legítima e correr para uma perdição voluntária.
[...] A liberdade, portanto, é, como temos dito, herança daqueles que receberam a razão; e esta liberdade, examinando-se a sua natureza, outra coisa não é senão a faculdade de escolher entre os meios que conduzem a um fim determinado. É neste sentido que aquele que tem a faculdade de escolher uma coisa entre alguma outra, é senhor de seus atos. [...] A escolha é sempre precedida dum juízo sobre a verdade dos bens e sobre a preferência que devemos conceder a um deles sobre os outros. Ora, julgar é da razão, não da vontade; não se pode razoavelmente duvidar disto. Admitido, pois, que a liberdade reside na vontade, que por sua natureza é um apetite obediente à razão, segue-se que ela, como a vontade, tem por um bem conforme à razão.

4. LIBERALISMO DE PRIMEIRO GRAU. O naturalismo e o racionalismo na filosofia, coincidem com o liberalismo na moral e a política, pois os liberais introduzem nos costumes e na prática da vida os princípios postos pelos partidários do naturalismo. Ora, o princípio de todo o racionalismo é a supremacia da razão humana, que, recusando a obediência devida à razão divina e eterna e pretendendo não depender senão de si mesma, se arvora em princípio supremo, fonte e juiz da verdade. Tal é a pretensão dos defensores do liberalismo, de que Nós falamos: não há, na vida prática, nenhum poder divino ao qual se tenha de obedecer, mas cada um é para si sua própria lei. Daí procede essa moral que se chama independente, e que, sob a aparência da liberdade, afastando a vontade da observância dos preceitos divinos, conduz o homem a uma licença ilimitada.
[...] Uma vez fixada essa convicção no espírito de que ninguém tem autoridade sobre o homem, a conseqüência é que a causa eficiente da comunidade civil e da sociedade deve ser procurada, não num princípio exterior ou superior ao homem, mas na livre vontade de cada um, e que o poder público dimana da multidão como sendo a sua primeira fonte; além disso, tal como a razão individual é para o indivíduo a única lei que regula a vida particular, a razão coletiva deve sê-lo para a coletividade na ordem dos negócios públicos; daí o poder pertence ao número, e as maiorias criam o direito e o dever.
[...] Estes princípios estão em contradição com a razão. [...] Se o homem faz depender só e unicamente do juízo da razão humana o bem e o mal, suprime a diferença essencial entre o bem e o mal; o honesto e o desonesto já não diferem na realidade, mas somente na opinião e no juízo de cada um: o que agrada será permitido. [...] Nos negócios públicos, o poder de governar separa-se do princípio verdadeiro e natural que lhe dá toda a sua força para procurar o bem comum; a lei que determina o que se deve fazer e o que é necessário evitar é abandonada aos caprichos da maioria, que é o mesmo que preparar o caminho à dominação tirânica.

5. LIBERALISMO DE SEGUNDO GRAU. É certo que nem todos os defensores do liberalismo concordam com estas opiniões. Constrangidos mesmo pela força da verdade, muitos deles não hesitam em reconhecer, confessam-no até espontaneamente, que, entregando-se a tais excessos, com desprezo da verdade e da justiça, a liberdade se vicia e degenera abertamente em licença, sendo necessário, portanto, que ela seja dirigida e governada pela reta razão, e, por conseqüência, que se submeta ao direito natural e à lei divina e eterna. Mas julgam dever parar aqui, e não admitem que o homem livre deva submeter-se às leis que a Deus apraz impor-nos por uma outra via que não a razão natural.

6. LIBERALISMO DE TERCEIRO GRAU. Outros são um pouco mais moderados, mas sem serem mais conseqüentes consigo mesmos. Segundo estes, as leis divinas devem regular a vida e o modo de proceder dos particulares, mas não o dos Estados; é permitido, nas coisas públicas, desviar-se das ordens de Deus e legislador sem as ter em conta alguma. Donde nasce esta perniciosa conseqüência da absoluta separação da Igreja e do Estado.
[...] O poder civil e o poder sagrado, conquanto não tenham o mesmo fim e não marchem pelos mesmos caminhos, devem contudo encontrar-se algumas vezes, no desempenho das suas funções. Ambos, com efeito, exercem a sua autoridade sobre os mesmos súditos e, mais duma vez, sobre as mesmas matérias, embora sob pontos de vista diferentes. O conflito, nesta ocorrência, seria absurdo e repugnaria inteiramente à infinita sabedoria dos conselhos divinos. Deve, portanto, necessariamente haver um meio, um processo para fazer desaparecer as causas de conflitos e lutas, e estabelecer o acordo na prática. E este acordo não é sem razão que foi comparado à união que existe entre a alma e o corpo, e isto para maior vantagem de ambos, pois a separação é particularmente funesta ao corpo, porque o priva da vida.

7. A IGREJA DEFENSORA DA LIBERDADE. Há um grande número de homens que crêem que a Igreja é adversária da liberdade humana. [...] Perante os ataques dos heréticos e dos fautores de novas opiniões, a Igreja tem tomado a liberdade sob a sua proteção e tem salvado da ruína este grande bem do homem [...] A história testemunha a energia com que repeliu os esforços insanos dos Maniqueus e outros; e, em tempos mais recentes, ninguém ignora com que zelo e força, quer no Concílio de Trento, quer mais tarde contra os sectários de Jansênio, ela combateu pela liberdade do homem, não deixando, em nenhum tempo e lugar, tomar incremento ao fatalismo. [...] Basta lembrar a escravidão, essa velha vergonha das nações pagãs, que os seus esforços e principalmente a sua feliz intervenção fizeram desaparecer. O equilíbrio dos direitos, como a verdadeira fraternidade entre os homens, foi Jesus Cristo quem primeiro a proclamou; e à sua voz respondeu a dos seus Apóstolos, declarando que não há nem judeu, nem grego, nem bárbaro, mas que todos são irmãos em Cristo.

PAPA LEÃO XIII, Libertas praestantissimum, Nos. 1, 5, 9, 12-14,
Roma, 20 de Junho de 1888.

8. O LIBERALISMO PREPAROU O CAMINHO DO COMUNISMO. Mas, para mais facilmente se compreender como é que puderam conseguir que tantos operários tenham abraçado, sem o menor exame, os seus sofismas, será conveniente recordar que os mesmos operários, em virtude dos princípios do liberalismo econômico, tinham sido lamentavelmente reduzidos ao abandono da religião e da moral cristã. Muitas vezes o trabalho por turnos impediu até que eles observassem os mais graves deveres religiosos dos dias festivos; não houve o cuidado de construir igrejas nas proximidades das fábricas, nem de facilitar a missão do sacerdote; antes pelo contrário, em vez de se lhes pôr embargo, cada dia mais e mais se foram favorecendo as manobras do chamado laicismo.

PAPA PIO XI, Divini Redemptoris, No. 16,
Roma, 19 de Março de 1937.

9. O LIBERALISMO, UMA AFIRMAÇÃO ERRÔNEA DA AUTONOMIA. Também para o cristão é válido que, se ele quiser viver a sua fé numa ação política, concebida como um serviço, não pode, sem se contradizer a si mesmo, aderir a sistemas ideológicos ou políticos que se oponham radicalmente, ou então nos pontos essenciais, à sua mesma fé e à sua concepção do homem: nem à ideologia marxista, ou ao seu materialismo ateu, ou à sua dialética da violência, ou, ainda, àquela maneira como ele absorve a liberdade individual na coletividade, negando, simultaneamente, toda e qualquer transcendência ao homem e à sua história, pessoal e coletiva, nem à ideologia liberal, que crê exaltar a liberdade individual, subtraindo-a a toda a limitação, estimulando-a com a busca exclusiva do interesse e do poderio e considerando, por outro lado, as solidariedades sociais como conseqüências, mais ou menos automáticas, das iniciativas individuais e não já como um fim e um critério mais alto do valor e da organização social.
[...] Por outro lado, assiste-se também a uma renovação da ideologia liberal. Esta corrente procura afirmar-se tanto em nome da eficiência econômica, como para defender o indivíduo contra a ação cada vez mais invasora das organizações, como, ainda, contra as tendências totalitárias dos poderes políticos. E certamente que a iniciativa pessoal é de conservar e de desenvolver. Mas, os cristãos que se comprometem nesta linha não terão também eles tendência para idealizar o liberalismo, o qual se torna então uma proclamação em favor da liberdade? Eles quereriam um modelo novo, mais adaptado às condições atuais, esquecendo facilmente de que, nas suas próprias raízes, o liberalismo filosófico é uma afirmação errônea da autonomia do indivíduo, na sua atividade, nas suas motivações e no exercício da sua liberdade. Isto equivale a dizer que a ideologia liberal exige igualmente da parte deles um discernimento atento.
[...] Nesta estimativa renovada das ideologias, [...] contornando, pois, todo e qualquer sistema, sem por outro lado deixar de se comprometer concretamente, ao serviço dos seus irmãos, o cristão deve procurar afirmar, no âmago mesmo das suas opções, aquilo que é específico da contribuição cristã, para uma tranformação positiva da sociedade.

PAPA PAULO VI, Octagesima adveniens, Nos. 26, 35 e 36,
Roma, 14 de Maio de 1971.

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Vocês quando amam...


Vocês quando amam
exigem bem-estar
uma cama de cedro
e um colchão especial

Nós quando amamos
é fácil de combinar
com lençóis que bom
sem lençóis dá igual
Vocês quando amam
calculam interesse
e quando se desamam
calculam outra vez
Nós quando amamos
é como renascer
e se desamámos
não passamos bem
Vocês quando amam
são de outra magnitude
há fotos fofoca imprensa
e o amor é um boom
Nós quando amamos
é um amor comum
tão simples e tão saboroso
como ter saúde
Vocês quando amam
consultam o relógio
porque o tempo que perdem
vale meio milhão
Nós quando amamos
sem pressa e com fervor
fruímos e resulta
econômica a função
Vocês quando amam
ao psicanalista vão
ele é quem determina
se fazem-no bem o mal
Nós quando amamos
sem tanta pequenez
o subconsciente pira
se põe a desfrutar
Vocês quando amam
exigem bem-estar
uma cama de cedro
e um colchão especial
Nós quando amamos
é fácil de combinar
com lençóis que bom
sem lençóis dá igual

MARIO BENEDETTI, poema Ustedes y nosotros, do livro Poemas de otros,
Montevidéu, 1974.

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Nos antípodas do cristianismo...

O homem é bom por natureza. O homem é livre. Que significa isto? Significa que é autônomo; significa que é a lei de si próprio, que a vontade não está sujeita a leis externas (heteronomia); move-se por impulsos interiores, e, quando se move por impulso interior, move-se bem e afirma assim a sua liberdade. [...] Este dogma é a pedra angular de todo o edifício metafísico e político de [Jean-Jacques] Rousseau.

O probema do homem está todo aqui: conservar quanto possível, incorrupta – isto é, quanto possível, desvinculada de qualquer lei externa – esta liberdade. Pode dizer-se: o fim do homem está na sua expansão livre, sem controle externo, da sua pessoa.

Terríveis conseqüências as destes postulados! Estamos exatamente nos antípodas do cristianismo. O homem é livre – esta proposição é verdadeira, compreende-se até para o cristianismo – mas o Homem está também manchado pela culpa. Portanto, não bastam a lei interior e o impulso interior da consciência para dar à liberdade uma orientação verídica, para dirigir para o bem os instintos e as paixões; é preciso uma lei externa que sirva de controle e de guia à consciência; é preciso, sobretudo, a graça reparadora de Deus que permite à vontade alcançar o bem!

Duas liberdades, portanto, radicalmente distintas: uma, a de Rousseau, dissociada da graça e da lei; outra, a cristã, integrada na graça e na lei. E estes dois tipos de liberdade têm reflexos de incalculável alcance no corpo social.

Da liberdade de Rousseau derivam – embora sem subavaliar certos elementos preciosos sobre o tema do homem – os males piores de que sofrem a civilização e a sociedade do nosso tempo; a "liberdade" econômica – isto é, a economia subtraída ao controle e direção da ética – produziu a cisão social entre capitalismo e proletariado; a "liberdade" política – isto é, a liberdade subtraída ao controle e direção da ética – produziu, internamente, a tirania da maioria e a desarticulação do corpo social (porque despedaçou a sua organicidade); a própria liberdade política produziu, na vida internacional, a desagregação da unidade das nações; a liberdade individualista produziu o enfrentamento do vínculo familiar e das normas fundamentais da ética cristã.

Em suma, se subtrairmos a liberdade à lei e à graça, teremos como resultado aquilo que acontece em física quando um corpo é subtraído à lei da gravitação: a fora centrífuga não contrabalançada pela centrípeta, produz efeitos terríveis! Um astro que já não é capaz de se mover na sua órbita.

GIORGIO LA PIRA, Per un'architettura cristiana dello Stato, Florencia, 1954.
Tradução de Vasco de Sousa.

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Na raíz dos totalitarismos

É tido quase como um axioma na literatura política e histórica nossa liberdade ter raízes no Iluminismo e na Revolução Francesa. Essa crença é de tal modo generalizada, sua aceitação tão completa que os descendentes do racionalismo do século XVIII apropriaram-se da palavra Liberdade, denominando-se liberais.

Não se pode negar que o Iluminismo e a Revolução Francesa contribuíram para a liberdade no século XIX. Mas essa contribuição foi totalmente negativa, dinamitando e varrendo para longe o entulho da antiga estrutura. Em nada contribuíram para os fundamentos da nova estrutura de liberdade sobre os quais foi construída a ordem social no século XIX. Ao contrario: o Iluminismo, a Revolução Francesa e os movimentos que se sucederam, até o liberalismo racionalista de nossos dias, são incompatíveis com a liberdade. Fundamentalmente, o liberalismo racionalista é totalitário.

E todos os movimentos totalitários dos dois últimos séculos da história ocidental nasceram do liberalismo dessa época. Há uma linha reta que liga [Jean-Jacques] Rousseau a [Adolf] Hitler – uma linha que abrange [Maximilien] Robespierre, [Karl] Marx e [Joseph] Stalin. Todos surgiram da falência do liberalismo racionalista de suas épocas. Todos conservaram a essência de seus respectivos credos liberais, e usaram o mesmo mecanismo para converter o totalitarismo latente e ineficaz do racionalismo, no totalitarismo evidente e eficaz do despotismo revolucionário. Longe de serem as raízes da liberdade, o Iluminismo e a Revolução Francesa representam as sementes do despotismo totalitário que hoje ameaça o mundo.

Constatar que a razão humana é absoluta foi a grande descoberta do Iluminismo. Nela basearam-se não só as doutrinas liberais subseqüentes, mas também todas as doutrinas totalitárias que se seguiram a Rousseau. Não foi por acaso que Robespierre criou a Deusa da Razão; seu simbolismo era mais imperfeito do que o dos revolucionários que se seguiram mas, na realidade, não muito diferente. Tampouco foi casual o fato de a Revolução Francesa ter escolhido uma pessoa viva para desempenhar o papel da Deusa Razão. Toda a filosofia racionalista é baseada no fato de que ela atribui a perfeição da razão absoluta a homens vivos. Os símbolos e lemas mudaram. A posição de ser supremo ocupado pelo “filósofo cientista” em 1750, cem anos depois foi ocupada pelo sociólogo e seu utilitarismo econômico. Hoje, foi substituída pelo “psicobiólogo científico” e seu determinismo quanto à raça e à propaganda. Hoje, porém, lutamos basicamente contra o mesmo absolutismo autoritário que foi formulado pelos iluministas e enciclopedistas – os racionalistas de 1750 – e que primeiramente nos conduziu à tirania revolucionária do Terror de 1793.

Deve-se compreender que nem tudo que é chamado de liberalismo é, necessariamente, uma doutrina absolutista. É verdade que todos os movimentos liberais contêm as sementes da filosofia totalitária – assim como todos os movimentos conservadores tendem a se tornar reacionários. No continente europeu nunca houve movimentos ou partidos liberais que não fossem totalitários em suas crenças fundamentais. Nos Estados Unidos, o elemento totalitário teve forte representação desde o início – baseado tanto na influência européia quanto na tradição puritana. E, desde a última guerra [II Guerra Mundial], o liberalismo se tornou absolutista em todos os lugares. Hoje é fato, embora com reservas, que o liberal, no que se refere a suas convicções objetivas, é um absolutista.

O fato do racionalismo ser objetivamente incompatível com a liberdade é uma negação da boa fé do individuo liberal. Sem duvida, o liberal racionalista acredita sinceramente que ele, e apenas ele, defende a liberdade e se opõe à tirania. Também não há duvida de que ele abomina subjetivamente a tirania do totalitarismo e tudo o que ele representa.

[...] O liberal racionalista considera sua função se opor às injustiças, superstições e preconceitos de sua época. Mas essa oposição à injustiça é apenas parte da hostilidade geral para com todas as instituições da sociedade, inclusive as livres e justas.

Os iluministas, por exemplo, derrubaram os privilégios aristocratas, a servidão e a intolerância religiosa. Eles também destruíram a autonomia das províncias e o controle dos governos locais; e nenhum pais do continente europeu conseguiu se recuperar totalmente desse sopro de liberdade. Eles atacaram os abusos, os privilégios e a opressão do clero, diminuíram a importância das igrejas da Europa, submetendo-as à autoridade administrativa do governo e fizeram o possível para privar a vida religiosa de sua autonomia social e moral. E toda a intensidade do desprezo iluminista foi dirigida contra os tribunais independentes e contra o direito consuetudinário.

[...] O racionalista liberal fracassou em todos os lugares onde chegou ao poder. [...] É impossível explicar um registro tão extraordinário e consistente de fracassos como tendo sido causado pelas circunstâncias ou por acidentes. A verdadeira razão é que o liberalismo racionalista está condenado à esterilidade política por sua própria natureza.

[...] Todos os dogmas básicos do liberalismo racionalista durante os últimos cento e cinqüenta anos não foram apenas irracionais, mas basicamente anti-racionais. Isso foi verdade no racionalismo filosófico dos iluministas que proclamava a racionalidade absoluta do homem e no racionalismo utilitarista da geração de 1848 que viu na ganância do indivíduo o mecanismo pelo qual a “mão invisível” da natureza promovia o bem comum. E é particularmente verdade no racionalismo liberal do século XX que considera o homem determinado psicológica e biologicamente. Cada um desses princípios nega não só o livre-arbítrio, como também a razão humana. E cada um desses princípios pode ser transformado em ação política apenas pela força e por um governante absolutista.

Porem o liberal racionalista não admite esse fato. Ele precisa sustentar que seus princípios são racionais e que podem tornar-se eficientes por meios racionais. Ele sustenta como um dogma que seus princípios são racionalmente evidentes.

[...] Em pleno Iluminismo, Rousseau deu o passo fatal do racionalismo e da pretensa racionalidade rumo ao totalitarismo, abertamente irracional e anti-racional. Não há o pretexto de que a “vontade geral” é racionalmente determinável ou racionalmente realizável. Trata-se confessadamente de um irracionalismo que desafia a análise racional e que se situa fora e além da compreensão racional. Ele existe - mas como, onde, porquê, ninguém sabe. Ele precisa prevalecer- naturalmente, visto que é perfeito e absoluto. Quem quer que esteja de posse da razão, quem quer que compreenda a vontade suprema da sociedade, tem o direito e, é claro, o dever de impô-la igualmente à maioria, à minoria e aos indivíduos. A liberdade reside somente na perfeita realização da volonté générale.

[...] É verdade que Rousseau insistiu na pequena unidade da cidade-estado, com sua democracia direta e não representativa, como única forma perfeita de governo. E ele estabeleceu o direito inalienável de o indivíduo discordar, abandonando a sociedade, o que foi considerado uma indicação de um desejo de liberdade individual. Porém, em um mundo como o de meados do século XVIII, em que essas condições eram tão pouco prováveis de se realizar, elas dificilmente poderiam ter sido consideradas como algo além de prelúdios românticos, em um mundo que, de fato, era obstinadamente realista e desprovido de romantismo. Por outro lado, a “oferta” feita por Hitler aos judeus para eles emigrarem também poderia ser considerada “liberdade”.

[...] Marx deu um passo a mais que Rousseau. Em 1848, o liberalismo racionalista estava destruído. [... Os liberais tiveram] o poder nas mãos durante a queda da monarquia reacionária na França, Áustria, Alemanha e Espanha e, sem exceção, mostraram-se totalmente incapazes de fazer algo com o poder, exceto perdê-lo outra vez.

Marx converteu o liberalismo racionalista de sua época em uma força politicamente poderosa [...] ; ele conservou o absoluto dos liberais contemporâneos, a tese que vê o homem como Homem Econômico. Mas eliminou o racionalismo que esperava a realização da sociedade econômica perfeita a partir da ação econômica livre e racional do indivíduo. Em seu lugar, divulgou um principio irracional: o da determinação da ação humana pela condição de classe do indivíduo. [...] Marx conservou o materialismo dos utilitaristas; mas substituiu a inevitável harmonia pela igualmente inevitável luta de classes.

[...] Marx preparou as grandes massas para o totalitarismo, deixou-as prontas para aceitar a lógica das idéias absolutistas. [...] Ele também legou para o totalitarismo de nosso tempo o molde e a estrutura das idéias e do pensamento político. O que Marx fez com o fracassado liberalismo da sua época – o liberalismo dos economistas clássicos e dos utilitaristas – Hitler fez com o racionalismo abalado de nossa época – o dos cientistas e psicólogos naturalistas.

As raízes do nazismo encontram-se no determinismo biológico que se iniciou com [Charles] Darwin. [...] Nos sessenta anos transcorridos entre "A origem das espécies" e a Grande Guerra de 1914-18, a explicação do homem como ser psicobiológico foi gradativamente adotada como base para o liberalismo racionalista europeu.

[...] Em 1900, a crença no determinismo psicológico começava a se tornar popular e substituía o desgastado determinismo econômico. Nas esferas sociais e políticas, a mudança se tornou perceptível aproximadamente na mesma época com o agravamento do anti-semitismo.

[Depois da Primeira Guerra Mundial] o nazismo tomou o determinismo biológico e a explicação psicológica do homem e os apresentou como princípios absolutos. Ao mesmo tempo, declarou perfeitos aqueles que entendiam a “raça” e a “propaganda” e lhes conferiu direito à liderança política e ao controle absoluto e incontestável.

[...] A base do hitlerismo – assim como dos totalitarismos anteriores – foi fornecida já pronta pelos liberais racionalistas. O método foi usado duas vezes antes com grande sucesso e Hitler lhe acrescentou um cinismo moral impraticável nas épocas de Rousseau e Marx.

[...] Resumindo, quando o Iluminismo começou a desmoronar, Rousseau substituiu a perfeição racionalmente atingível pela “vontade geral” irracional e até mística. Quando o liberalismo racionalista pós-napoleônico dos utilitaristas e economistas ortodoxos ruiu nas fracassadas revoluções de 1848, Marx substituiu seus princípios absolutos racionalistas pela perfeição irracional do proletariado e pela inevitabilidade da sociedade sem classes. E quando o determinismo racionalista psicobiológico da ciência moderna, de Darwin, Freud e dos behavioristas fracassou sob o impacto da Guerra Mundial e da depressão, Hitler se apropriou dos princípios defendidos por biólogos e psicólogos no irracionalismo da raça e da propaganda.

Nenhum dos totalitaristas modificou os elementos principais, Rousseau manteve as crenças do Iluminismo referentes à natureza do homem e da sociedade. Marx extraiu dos economistas ortodoxos a afirmativa de que o homem é basicamente um animal econômico. Hitler afirma juntamente com biólogos e psicólogos que o homem é basicamente glândulas, hereditariedade e impressões nervosas.

PETER FERDINAND DRUCKER, The future industrial man, New York, 1942.
Tradução de Maria Lúcia L. Rosa.

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Sobre o liberalismo

O texto, do ex-vice presidente do Brasil, fundador do Partido da Frente Liberal (hoje Democratas) e atual senador, não representa a opinião do Nuec, porém consideramos que é relevante para compreender as razões do engajamento de alguns católicos com as correntes liberais na América Latina, em geral, e no Brasil, em particular.

Intelectual e estadista, falecido em 1954, Alcide De Gasperi é reconhecido como o "Reconstrutor da Pátria", conforme epitáfio inscrito sobre sua pedra tumular na Itália. Considerado, ao lado do alemão Konrad Adenauer e do francês Robert Schuman, um dos idealizadores do projeto da União Européia, dizia que o democrata tem idéias, e não ideologias.

Sem pretender interpretar a sentença, é provável que De Gasperi considerasse a ideologia como um dogmático sistema de idéias, uma hermética cosmovisão, mesmo porque não se pode ignorar os muitos pontos de intersecção política entre poder e ideologia. Esta, afinal, "mescla descontentamento com o que se tem e esperança com o que se quer ter" e "desenha um mundo desejável, às vezes confundindo realidade com utopia", como observa Rodrigo Borja, ex-presidente do Equador, na sua Enciclopédia Política.

No Brasil, desde que os partidos políticos foram alçados à condição de entes constitucionais -e fomos um dos primeiros países a fazê-lo, há 60 anos-, deles se exige, para seu registro, tão-somente manifesto e programa.

Com relação ao partido de cuja fundação participei, nascido de um movimento histórico que ensejou a transição para a democracia, caberia, preliminarmente, recordar que ser liberal, antes de um ideário ou doutrina, é uma conduta existencial, uma atitude de vida, visto que "o liberalismo não conhece verdades políticas absolutas, a liberdade de espírito é ponto fundamental e, nesse sentido, a tolerância é condição necessária", como apontou Karl Flach em O Futuro da Liberdade.

Nem toda democracia, como se sabe, é liberal, mas só é liberal um regime que seja democrático. Esse silogismo parece deixar claro considerar-se democrático qualquer sistema político que respeite o princípio da maioria, calcado em eleições livres, competitivas; conviva com a renovação periódica dos mandatos; e pratique o pluralismo. Mas também resulta inquestionável que mesmo um sistema com essas características pode não ser liberal, na medida em que liberalismo transcende a democracia.

Isso não significa afirmar que o liberalismo criou o Estado democrático de Direito e, menos ainda, a democracia. Ajuda, porém, a explicar porque o liberalismo se aloja em pressupostos mais amplos que a democracia.

Mencione-se, a propósito, nossa própria evolução política. O império no Brasil, desde a outorga da Constituição de 1824 até sua revogação, em 1889, constituía um Estado de Direito. Havia eleições periódicas que atendiam ao princípio competitivo da época e se admitiu o pluralismo político e doutrinário, como era corrente nas principais democracias do começo do século 19. Entretanto, um sistema que convivia com a escravidão jamais poderia ser caracterizado como liberal.
O que diferencia, portanto, o liberalismo da democracia é o fundamento ético de ambos. Os valores fundamentais e permanentes da democracia são a liberdade e a diversidade, entendida a primeira como princípio sobre o qual deve fundar-se a organização política da sociedade, e a segunda, como corolário que leva necessariamente ao pluralismo. Sob o ângulo político, parece claro que esses valores podem existir em qualquer regime ou sistema democrático, sem que isso prefigure um modelo liberal, cujos fundamentos partem do pressuposto de que não existe liberdade sem igualdade, nem pluralismo ou diversidade sem eqüidade.

Etimologicamente, igualdade e eqüidade se equivalem. Contudo, a idéia de eqüidade difere da idéia de igualdade.

O ideal da justiça liberal, de que fala John Rawls, por exemplo, é permitir que todos tenham um tratamento eqüitativo, o que não significa igual, mas, ao contrário, diferenciado. Igualdade é o princípio de acordo com o qual todos devem contribuir com a mesma parcela para o bem comum. Eqüidade é o princípio pelo qual as contribuições são repartidas de forma proporcional, e não igual. Logo, sob a ótica liberal, igualdade e eqüidade são princípios éticos e políticos distintos, na medida em que o último é compensatório, e não meramente regulatório.

Nessas condições, enquanto o princípio utilitário da democracia é a garantia da liberdade e a igualdade de tratamento para todos, o do liberalismo é não só a garantia da liberdade com as mesmas oportunidades mas algo mais transcendente, que é a busca da eqüidade.

Por fim, é apropriado lembrar que, como na lição bíblica, o joio cresce com o trigo. Assim, não é correto associar o liberalismo com liberismo, um distorcido modo de aplicação do ideário liberal à economia; menos ainda transformá-lo em "neoliberalismo". Aliás, como afirma Vargas Llosa, na obra O Liberalismo entre Dois Mistérios, neoliberalismo "equivale a dizer semi ou pseudoliberal, ou seja, um puro contra-senso".

MARCO MACIEL, publicado na Folha de São Paulo, 30 de janeiro de 2006.

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