1. UMA ANTIGA TRADIÇÃO. Tem sido um costume muito antigo chamar Jesus Cristo de Rei, no sentido metafórico, a causa de supremo grado de excelência que possui e que lhe coloca acima de todas as coisas criadas. Assim, se diz que reine nas inteligências dos homens, não tanto pelo sublime e altíssimo grau de sua ciência quanto porque Ele é a Verdade e porque os homens necessitam beber d’Ele e receber obedientemente a verdade. Diz-se também que reina nas vontades dos homens, não só porque n’Ele a vontade humana está inteira e perfeitamente submetida a santa vontade divina, mas porque Ele influi na nossa livre vontade e a incendeia em nobilíssimos propósitos. Finalmente, se diz com verdade que Cristo reina nos corações dos homens porque, com superabundante caridade (Ef 3,19) e com mansidão e benigdade, se faz amar pelas almas de maneira que ninguém jamais – entre todos os nascidos – há sido e nunca será amado como Cristo Jesus.
2. REI EM SENTIDO ESTRITO. Também em sentido próprio e estrito lhe pertence a Jesus Cristo como homem o título e a potestade de Rei; pois só enquanto homem se diz de Ele que recebeu do Pai a potestade, a honra e o reino (Dan 7, 13-14); porque como Verbo de Deus, cuja substancia é idêntica ao Pai, não pode menos de ter em comum com Ele o que é próprio da divindade e, por tanto, possuir também como o Pai o mesmo império supremo e absolutíssimo sobre todas as criaturas.
3. TRÍPLICE POTESTADE. Vindo agora explicar a força e natureza deste principado e soberania de Jesus Cristo, indicaremos brevemente que contem uma tríplice potestade, sem a qual apenas se comprende um verdadeiro e próprio principado. Os testemunhos, mencionados das Sagradas Escrituras, acerca do império universal de nosso Redentor, provam mais que o suficiente quanto temos dito; e é dogma de fé católica, que Jesus Cristo foi dado aos homens como Redentor, em quem deve confiar, e como legislador a quem deve obedecer (Concílio de Trento, sessão 6 canone 21.). Os santos Evangelhos não só narram que Cristo legislou, mas apresenta-se também legislando. Em diferentes circunstâncias e com diversas expressões disse o Divino Mestre que quem guardar seus preceitos demonstrará que lhe ama e permanecerá nele sua caridade (Jn 14, 15; 15, 10.). O mesmo Jesus, ao responder aos judeus, que lhe acusavam de haver violado o sábado com a maravilhosa cura do paralítico, afirma que o Pai lhe havia dado a potestade judicial, porque o Pai não julga ninguém, se não que deu todo o poder de julgar a seu Filho (Jn 5, 22), no qual se compreende também seu direito de premiar e castigar os homens, ainda durante sua vida mortal, porque isso não se pode separar do juízo, ademais, deve atribuir a Jesus Cristo a potestade chamada de executiva, posto que é necessário que todos obedeçam a seu mandato, potestade que inflige castigos aos rebeldes, aos que ninguém pode subtrair.
4. REI DO AMBITO ESPIRITUAL. Sem dúvida os textos que temos citado da Escritura demonstra evidentíssimamente, o mesmo Jesus Cristo confirma com seu modo de trabalhar, que este reino é principalmente espiritual e se refere as coisas espirituais. Com efeito, em várias ocasiões, quando os judeus, e ainda os mesmo apóstolos, imaginaram erroneamente que o Messias devolveria a liberdade ao povo e restabeleceria o reino de Israel, Cristo lhes pagou e arrancou esta vã esperança. Assim mesmo, quando ia ser proclamado Rei pela multidão, que, cheia de admiração, o rodeava, Ele recusou o título de honra fugindo e escondendo da solenidade. Finalmente, na presença do governador romano manifestou que seu reino não era deste mundo. Este reino está demonstrado nos evangelhos com tais características, que os homens, para entrar nele, devem preparar-se fazendo penitência e não podem entrar se não pela fé e o batismo, o qual, ainda que seja um rito externo, significa e produz a regeneração interior. Este unicamente se opõe ao reino de satanás e a potestade das trevas; e exige de seus súditos não só que, despegadas suas almas das coisas e riquezas terrenas, guardem os ordenados costumes e tenham fome e sede de justiça, se não também que se neguem a si mesmo e tomem sua cruz. Tendo feito Cristo, Redentor, resgatado a Igreja com seu Sangue e oferecendo-se que se renova cada dia perpetuamente, quem não vê que a dignidade real do Salvador se reveste e participa da natureza espiritual de ambos ofícios?
5. REI DO AMBITO TEMPORAL. Por outra parte, erraria gravemente aquele que negasse a Cristo-Homem o poder sobre todas as coisas humanas e temporais, pois que o Pai lhe confiou um direito absolutismo sobre as coisas criadas, de tal sorte que todas estão submetidas ao seu arbítrio. Enquanto viveu sobre a terra se absteve inteiramente de exercitar seu poder, e assim como desprezou a posição e o cuidado das coisas humanas, assim que também permitiu, e segue permitindo, que os possuidores delas as utilizem.
6. CONTRA O LAICISMO. E agora mandamos que Cristo Rei seja honrado por todos os católicos do mundo, com isso proveremos também as necessidades dos tempos presentes, e ofereceremos um remédio muito eficaz a peste que hoje infecciona a humana sociedade. Julgamos peste de nosso tempo ao chamado laicismo com seus erros e abomináveis intentos; e vós sabeis, veneráveis irmãos, que tal impiedade não apareceu em um só dia, se não que está a muito tempo dentro da sociedade. Começou-se por negar o império de Cristo sobre todas as gentes; se negou a Igreja o direito, fundado no direito mesmo de Cristo de ensinar o gênero humano, isto é, de dar leis e dirigir os povos para conduzi-los a eterna felicidade. Depois, pouco a pouco, a religião cristã foi igualada com as demais religiões falsas e rebaixada indecorosamente ao nível destas. Se a submeteu logo ao poder civil e a arbitrária permissão dos governantes e magistrados. E se avançou mais: houve alguns destes que imaginaram substituir a religião de Cristo com certa religião natural, com certos sentimentos puramente humanos. Não faltaram Estados que creram poder passar sem Deus, e pusseram sua religião na impiedade e no desprezo de Deus.
PAPA PIO XI, encíclica Quas primas, Nos. 6, 13-15, 23.
Roma, 11 de Dezembro de 1925.
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Santa faz, Georges Rouault, 1946, Museo Vaticano de Arte Moderna, Vaticano.
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