Uma das principais correntes que caracterizam a cultura moderna é o chamado liberalismo. Como a sua etimologia indica, a doutrina liberal tem por essência propiciar a exaltação da liberdade humana.
A Igreja sempre rechaçou o liberalismo em numerosos documentos, condenando formalmente suas teses mais graves. O Pontífice Pio IX condenou 80 proposições e teses heréticas em sua encíclica Quanta Cura com Syllabus em anexo, a 8 de dezembro de 1864, reiterando as advertências que o mesmo havia formulado em 32 documentos anteriores. A quase totalidade das teses condenadas tem sido defendida por diversos autores de inspiração liberal.
A atitude da Igreja frente aos erros do liberalismo foi constante e reiterada em inumeráveis textos do Magistério. Desde a carta Quod Aliquantum, em 10 de março de 1791, de Pio VI, [passando pela carta Libertas praestantissimum, em 20 de junho de 1888, de Leão XIII que trata específicamente do tema], até a recente carta Octogesima Adveniens, de Paulo VI ao cardeal Maurício Roy, em 14 de maio de 1971, a coerência doutrinal dos documentos pontifícios é invariável em seu conteúdo ao longo desses dois séculos.
Quais são os motivos de tal severidade por parte da Igreja,frente a uma doutrina que dominou as nações do Ocidente durante quase três séculos? Uma consideração atenta dos principais aspectos da ideologia liberal nos permitirá compreender as razões do constante combate que a Igreja assumiu heroicamente, com todos os riscos que corre, com todos os mártires que conta em suas fileiras.
Fontes doutrinais
A corrente liberal teve particular vigência durante os séculos XVIII e XIX. Através do processo revolucionário francês de 1789 – que constituiu a primeira Revolução internacional – se estendeu rapidamente pelos países europeus, e logo foi difundida pelos exércitos napoleônicos nos países da Hispanoamérica. Desde o final do século XIX, o liberalismo clássico foi adotando posturas mais matizadas, diante da tremenda evidência de caos social e econômico causado na Europa pela aplicação de seus princípios.
As raízes doutrinais da corrente liberal podem sintetizar-se em quatro principais: 1) o nominalismo do século XIV, com sua negação da universalidade do conhecimento e sua ênfase no individual; 2) o racionalismo do século XVI com sua exaltação absoluta da razão humana; 3) o iluminismo que deu lugar ao livre-pensamento e à moral relativista. A eles deve somar-se o influxo do protestantismo, sobretudo em sua versão calvinista, que fomentou – como o provam os estudos de [Ernest] Troelsch, [Richard Henry] Tawney, [Werner] Sombart, [Hillaire] Belloc e Max Weber em A ética protestante e o espírito do capitalismo, de 1904.
O humanismo liberal
Desde o ponto de vista filosófico, o liberalismo considera a liberdade como a essência mesma da pessoa, desconhecendo que os atos humanos são sinais livres enquanto supõe uma guia ou orientação da razão.
O homem é considerado como naturalmente bom e justo, possuidor de uma liberdade absoluta, que não reconhece limite algum. O “bom selvagem” rousseauniano é o arquétipo do indivíduo independente e soberano, incapaz de malícia alguma. É bom pelo simples fato de ser homem, sem que sua perfeição requeira uma educação, um esforço ou uma decisão pessoais.
Na medida do exercício pleno de sua independência, o ser humano está chamado a um progresso indefinido e necessário, tanto intelectual como moral. No plano da conduta, o sujeito não pode estar submetido a regulação ética alguma que não provenha da negação de toda ordem objetiva de valores.
A economia liberal
O liberalismo econômico centra tudo na iniciativa e no interesse individual. Adam Smith fala do “sadio egoísmo individual” como motor do dinamismo econômico. A única lei fundamental é a lei da oferta e da demanda; respeitando-a cabalmente se produzirá espontaneamente a harmonia dos interesse particulares.
Esta concepção visa o lucro, a ganância pela ganância mesma, o caráter de fim último da economia. O desejo do lucro não reconhece limitação de nenhum tipo moral nem religioso. O direito de propriedade é exaltado como direito absoluto, de modo tal que o dono pode chegar até a destruição do bem que possui, em nome de seus direitos; não se assegura à propriedade nenhuma função social.
O trabalho humano – em particular, o do trabalhador braçal – é assimilado a uma função de menor valor, objeto de compra-venda no mercado, com esquecimento total da dignidade própria do assalariado. O salário, submetido à Lei de bronze, só leva em conta o indivíduo que trabalha e não a sustentação da família.
A sociedade e o estado
Em razão de postular que só o respeito à liberdade absoluta de cada cidadão assegura automaticamente a harmonia dos interesses particulares, o liberalismo suprime todos os grupos e instituições existentes entre os indivíduos e o Estado.
É assim que a família se vê gravemente afetada pela introdução do divórcio, pela total liberdade de designar herdeiros, pela divisão do patrimônio familiar. Assim também, a Lei de Lê Chapelier (1791) suprimiu todas as organizações artesanais e profissionais existentes na França, proibindo toda forma de reunião e de associação, pelas considerações atentatórias da liberdade individual.
O Estado, definido como ditatorial por natureza, é relegado a mero protetor da liberdade e da propriedade de cada cidadão; em virtude do “laissez passer, laissez faire”, a autoridade política carece de toda função positiva.
A moral e o direito
Dado que o indivíduo é autônomo, não reconhece outras normas a que ele mesmo se dita. Todos os valores morais se reduzem ao domínio subjetivo, razão pela qual o que um concebe como reto e justo não tem por que razão ser admitido pelos demais.
Assim como a moral se separa totalmente da religião, o direito se separa da moral (positivismo jurídico). Todo direito é subjetivo e não reconhece outra regra senão a vontade dos sujeitos que livremente fazem acordo de convênios, contratos, sociedades.
Em nome do sufrágio universal e da soberania popular, a democracia liberal expressa na forma de lei o que os indivíduos decidem. O direito positivo não reconhece nenhuma dependência com relação ao direito natural, e se exige em princípio a separação total entre Igreja e Estado, sem colaboração.
Cultura e religião
Esta exaltação dos valores individuais também afeta o plano da cultura, que é concebido como uma atividade autônoma, desvinculada dos valores éticos. O culto da “arte pela arte” é uma expressão concreta de tal atitude.
No plano religioso, o liberalismo conduziu primeiramente ao indiferentismo e, logo, ao ateísmo. Seu naturalismo integral seculariza tudo. A religião se reduz a sentimentos subjetivos, separados das atividades diárias.
Esse ateísmo prático se traduz no laicismo educativo e social, que elimina toda referência ao transcendente e exalta a liberdade de consciência e de cultos. O recente Concílio [Vaticano II] definiu claramente esta concepção: “Os que professam este ateísmo afirmam que a essência da liberdade consiste em que o homem é o fim de si mesmo, é único artífice e criador de sua própria história”.
O exposto mostra claramente que a ideologia liberal elabora uma concepção da pessoa humana e das relações sociais em aberta oposição ao sentido [cristão] da vida.
CARLOS ALBERTO SACHERI, El ordem natural, Buenos Aires, 1974.
Tradução de Diego da Silva.
Tradução de Diego da Silva.
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