domingo, 21 de junho de 2009

Na raíz dos totalitarismos

É tido quase como um axioma na literatura política e histórica nossa liberdade ter raízes no Iluminismo e na Revolução Francesa. Essa crença é de tal modo generalizada, sua aceitação tão completa que os descendentes do racionalismo do século XVIII apropriaram-se da palavra Liberdade, denominando-se liberais.

Não se pode negar que o Iluminismo e a Revolução Francesa contribuíram para a liberdade no século XIX. Mas essa contribuição foi totalmente negativa, dinamitando e varrendo para longe o entulho da antiga estrutura. Em nada contribuíram para os fundamentos da nova estrutura de liberdade sobre os quais foi construída a ordem social no século XIX. Ao contrario: o Iluminismo, a Revolução Francesa e os movimentos que se sucederam, até o liberalismo racionalista de nossos dias, são incompatíveis com a liberdade. Fundamentalmente, o liberalismo racionalista é totalitário.

E todos os movimentos totalitários dos dois últimos séculos da história ocidental nasceram do liberalismo dessa época. Há uma linha reta que liga [Jean-Jacques] Rousseau a [Adolf] Hitler – uma linha que abrange [Maximilien] Robespierre, [Karl] Marx e [Joseph] Stalin. Todos surgiram da falência do liberalismo racionalista de suas épocas. Todos conservaram a essência de seus respectivos credos liberais, e usaram o mesmo mecanismo para converter o totalitarismo latente e ineficaz do racionalismo, no totalitarismo evidente e eficaz do despotismo revolucionário. Longe de serem as raízes da liberdade, o Iluminismo e a Revolução Francesa representam as sementes do despotismo totalitário que hoje ameaça o mundo.

Constatar que a razão humana é absoluta foi a grande descoberta do Iluminismo. Nela basearam-se não só as doutrinas liberais subseqüentes, mas também todas as doutrinas totalitárias que se seguiram a Rousseau. Não foi por acaso que Robespierre criou a Deusa da Razão; seu simbolismo era mais imperfeito do que o dos revolucionários que se seguiram mas, na realidade, não muito diferente. Tampouco foi casual o fato de a Revolução Francesa ter escolhido uma pessoa viva para desempenhar o papel da Deusa Razão. Toda a filosofia racionalista é baseada no fato de que ela atribui a perfeição da razão absoluta a homens vivos. Os símbolos e lemas mudaram. A posição de ser supremo ocupado pelo “filósofo cientista” em 1750, cem anos depois foi ocupada pelo sociólogo e seu utilitarismo econômico. Hoje, foi substituída pelo “psicobiólogo científico” e seu determinismo quanto à raça e à propaganda. Hoje, porém, lutamos basicamente contra o mesmo absolutismo autoritário que foi formulado pelos iluministas e enciclopedistas – os racionalistas de 1750 – e que primeiramente nos conduziu à tirania revolucionária do Terror de 1793.

Deve-se compreender que nem tudo que é chamado de liberalismo é, necessariamente, uma doutrina absolutista. É verdade que todos os movimentos liberais contêm as sementes da filosofia totalitária – assim como todos os movimentos conservadores tendem a se tornar reacionários. No continente europeu nunca houve movimentos ou partidos liberais que não fossem totalitários em suas crenças fundamentais. Nos Estados Unidos, o elemento totalitário teve forte representação desde o início – baseado tanto na influência européia quanto na tradição puritana. E, desde a última guerra [II Guerra Mundial], o liberalismo se tornou absolutista em todos os lugares. Hoje é fato, embora com reservas, que o liberal, no que se refere a suas convicções objetivas, é um absolutista.

O fato do racionalismo ser objetivamente incompatível com a liberdade é uma negação da boa fé do individuo liberal. Sem duvida, o liberal racionalista acredita sinceramente que ele, e apenas ele, defende a liberdade e se opõe à tirania. Também não há duvida de que ele abomina subjetivamente a tirania do totalitarismo e tudo o que ele representa.

[...] O liberal racionalista considera sua função se opor às injustiças, superstições e preconceitos de sua época. Mas essa oposição à injustiça é apenas parte da hostilidade geral para com todas as instituições da sociedade, inclusive as livres e justas.

Os iluministas, por exemplo, derrubaram os privilégios aristocratas, a servidão e a intolerância religiosa. Eles também destruíram a autonomia das províncias e o controle dos governos locais; e nenhum pais do continente europeu conseguiu se recuperar totalmente desse sopro de liberdade. Eles atacaram os abusos, os privilégios e a opressão do clero, diminuíram a importância das igrejas da Europa, submetendo-as à autoridade administrativa do governo e fizeram o possível para privar a vida religiosa de sua autonomia social e moral. E toda a intensidade do desprezo iluminista foi dirigida contra os tribunais independentes e contra o direito consuetudinário.

[...] O racionalista liberal fracassou em todos os lugares onde chegou ao poder. [...] É impossível explicar um registro tão extraordinário e consistente de fracassos como tendo sido causado pelas circunstâncias ou por acidentes. A verdadeira razão é que o liberalismo racionalista está condenado à esterilidade política por sua própria natureza.

[...] Todos os dogmas básicos do liberalismo racionalista durante os últimos cento e cinqüenta anos não foram apenas irracionais, mas basicamente anti-racionais. Isso foi verdade no racionalismo filosófico dos iluministas que proclamava a racionalidade absoluta do homem e no racionalismo utilitarista da geração de 1848 que viu na ganância do indivíduo o mecanismo pelo qual a “mão invisível” da natureza promovia o bem comum. E é particularmente verdade no racionalismo liberal do século XX que considera o homem determinado psicológica e biologicamente. Cada um desses princípios nega não só o livre-arbítrio, como também a razão humana. E cada um desses princípios pode ser transformado em ação política apenas pela força e por um governante absolutista.

Porem o liberal racionalista não admite esse fato. Ele precisa sustentar que seus princípios são racionais e que podem tornar-se eficientes por meios racionais. Ele sustenta como um dogma que seus princípios são racionalmente evidentes.

[...] Em pleno Iluminismo, Rousseau deu o passo fatal do racionalismo e da pretensa racionalidade rumo ao totalitarismo, abertamente irracional e anti-racional. Não há o pretexto de que a “vontade geral” é racionalmente determinável ou racionalmente realizável. Trata-se confessadamente de um irracionalismo que desafia a análise racional e que se situa fora e além da compreensão racional. Ele existe - mas como, onde, porquê, ninguém sabe. Ele precisa prevalecer- naturalmente, visto que é perfeito e absoluto. Quem quer que esteja de posse da razão, quem quer que compreenda a vontade suprema da sociedade, tem o direito e, é claro, o dever de impô-la igualmente à maioria, à minoria e aos indivíduos. A liberdade reside somente na perfeita realização da volonté générale.

[...] É verdade que Rousseau insistiu na pequena unidade da cidade-estado, com sua democracia direta e não representativa, como única forma perfeita de governo. E ele estabeleceu o direito inalienável de o indivíduo discordar, abandonando a sociedade, o que foi considerado uma indicação de um desejo de liberdade individual. Porém, em um mundo como o de meados do século XVIII, em que essas condições eram tão pouco prováveis de se realizar, elas dificilmente poderiam ter sido consideradas como algo além de prelúdios românticos, em um mundo que, de fato, era obstinadamente realista e desprovido de romantismo. Por outro lado, a “oferta” feita por Hitler aos judeus para eles emigrarem também poderia ser considerada “liberdade”.

[...] Marx deu um passo a mais que Rousseau. Em 1848, o liberalismo racionalista estava destruído. [... Os liberais tiveram] o poder nas mãos durante a queda da monarquia reacionária na França, Áustria, Alemanha e Espanha e, sem exceção, mostraram-se totalmente incapazes de fazer algo com o poder, exceto perdê-lo outra vez.

Marx converteu o liberalismo racionalista de sua época em uma força politicamente poderosa [...] ; ele conservou o absoluto dos liberais contemporâneos, a tese que vê o homem como Homem Econômico. Mas eliminou o racionalismo que esperava a realização da sociedade econômica perfeita a partir da ação econômica livre e racional do indivíduo. Em seu lugar, divulgou um principio irracional: o da determinação da ação humana pela condição de classe do indivíduo. [...] Marx conservou o materialismo dos utilitaristas; mas substituiu a inevitável harmonia pela igualmente inevitável luta de classes.

[...] Marx preparou as grandes massas para o totalitarismo, deixou-as prontas para aceitar a lógica das idéias absolutistas. [...] Ele também legou para o totalitarismo de nosso tempo o molde e a estrutura das idéias e do pensamento político. O que Marx fez com o fracassado liberalismo da sua época – o liberalismo dos economistas clássicos e dos utilitaristas – Hitler fez com o racionalismo abalado de nossa época – o dos cientistas e psicólogos naturalistas.

As raízes do nazismo encontram-se no determinismo biológico que se iniciou com [Charles] Darwin. [...] Nos sessenta anos transcorridos entre "A origem das espécies" e a Grande Guerra de 1914-18, a explicação do homem como ser psicobiológico foi gradativamente adotada como base para o liberalismo racionalista europeu.

[...] Em 1900, a crença no determinismo psicológico começava a se tornar popular e substituía o desgastado determinismo econômico. Nas esferas sociais e políticas, a mudança se tornou perceptível aproximadamente na mesma época com o agravamento do anti-semitismo.

[Depois da Primeira Guerra Mundial] o nazismo tomou o determinismo biológico e a explicação psicológica do homem e os apresentou como princípios absolutos. Ao mesmo tempo, declarou perfeitos aqueles que entendiam a “raça” e a “propaganda” e lhes conferiu direito à liderança política e ao controle absoluto e incontestável.

[...] A base do hitlerismo – assim como dos totalitarismos anteriores – foi fornecida já pronta pelos liberais racionalistas. O método foi usado duas vezes antes com grande sucesso e Hitler lhe acrescentou um cinismo moral impraticável nas épocas de Rousseau e Marx.

[...] Resumindo, quando o Iluminismo começou a desmoronar, Rousseau substituiu a perfeição racionalmente atingível pela “vontade geral” irracional e até mística. Quando o liberalismo racionalista pós-napoleônico dos utilitaristas e economistas ortodoxos ruiu nas fracassadas revoluções de 1848, Marx substituiu seus princípios absolutos racionalistas pela perfeição irracional do proletariado e pela inevitabilidade da sociedade sem classes. E quando o determinismo racionalista psicobiológico da ciência moderna, de Darwin, Freud e dos behavioristas fracassou sob o impacto da Guerra Mundial e da depressão, Hitler se apropriou dos princípios defendidos por biólogos e psicólogos no irracionalismo da raça e da propaganda.

Nenhum dos totalitaristas modificou os elementos principais, Rousseau manteve as crenças do Iluminismo referentes à natureza do homem e da sociedade. Marx extraiu dos economistas ortodoxos a afirmativa de que o homem é basicamente um animal econômico. Hitler afirma juntamente com biólogos e psicólogos que o homem é basicamente glândulas, hereditariedade e impressões nervosas.

PETER FERDINAND DRUCKER, The future industrial man, New York, 1942.
Tradução de Maria Lúcia L. Rosa.

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