segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Lewis e Tolkien: uma amizade fecunda


A amizade de John Ronald Reuel Tolkien e Clive Staples Lewis é exemplar pelos bons frutos que este diálogo trouxe para o legado cultural da humanidade e particularmente para o mundo cristão... Muitos leitores ignoram que o que os uniu foi sua fé cristã, bem como da contribuição de ambos para a cultura em geral e particularmente, para a filologia, no caso de Tolkien, e para a literatura, no caso de Lewis.

Enquanto C.S. Lewis é mais conhecido no meio cristão, tanto protestante, quanto católico, a profunda fé de J.R. Tolkien não é muito levada em conta por muitos dos seus fãs, que o veneram somente pela riqueza das sua fantasia, línguas e mundos que criou.

Temos fortes razões para acreditar que Lewis foi o melhor amigo de Tolkien em Oxford, embora a amizade de Lewis tivesse se dividido por algum tempo entre Tolkien e outro autor, Charles Williams, por quem Tolkien não tinha tanto apreço, e com a sua esposa, Joy Gresham, com quem se casou já na proximidade dos sessenta anos de idade e que certamente também contava entre suas melhores amigas (Lewis tinha várias amigas mulheres, também, coisa que para um intelectual daquela época era bastante incomum). Ambos tinham muito em comum, fato que Lewis sintetiza em sua autobiografia, Surpreendido pela Alegria, como o esforço pela “quebra de preconceitos”, particularmente entre os cristãos:

"A amizade com J.R.R. Tolkien... ficou marcada pela quebra de dois velhos preconceitos. Assim que eu ingressei neste mundo (o de Oxford) recomendaram-me (implicitamente) nunca confiar em um papista e quando ingressei novamente na Faculdade de Língua Inglesa recomendaram-me (explicitamente) jamais confiar nos filólogos. E Tolkien se enquadrava em ambas as coisas".

Podemos dizer ainda que os maiores preconceitos que ambos foram felizes em quebrar são contra a imaginação e contra a articulação de fé e razão, antiqüíssimo problema da humanidade. Na verdade eles se empenhavam pela articulação de tudo isto: devoção cristã, sensibilidade artística e competência acadêmica.

Tanto Tolkien quanto Lewis defendiam que o profissional, seja das letras, seja da educação ou outra "ciência humana" deve se valer de várias áreas do conhecimento na sua busca pela verdade, não apenas pela via da razão, mas também usando um importante mediador: a imaginação. Com isto, eles se colocavam contra o pensamento predominante na sua época, pautada pelo racionalismo e iluminismo acadêmico. É preciso considerar ainda a rivalidade que pode haver entre um campo “prático” como a crítica literária, representada por Lewis, e a filologia, considerada mais analítica. Assim, ao invés de separa-los, a especialidade dos dois intelectuais redundou em uma importante complementação e no incentivo à efetiva interdisciplinaridade, beirando a transdisciplinaridade.

Assim eles faziam diferença, ficando conhecidos como os “cristãos de Oxford”. Na verdade, eles faziam críticas aos chamados “cientistas cristãos”, que seguiam os passos dos não cristão em termos de racionalismo e positivismo. Com relação à questão do mal e do sofrimento, por exemplo, Lewis os considerava , de uma maneira geral, demasiadamente simplistas, quando tentavam explica-los como meras “ilusões”. Se assim fosse, diz Lewis tal ilusão é que seria uma “monstruosidade” e o que é pior, “permitida por Deus.” Certamente os males não aparecem desta forma na obra de nenhum dos dois autores. O sofrimento também se destaca como algo realmente existente e, de fato, assustador para alguns, embora, por outro lado, ele não tenha substância. No fundo o sofrimento, que é até mais natural ao cristão, do que ao não-cristão, que pode fazer um estrago para se defender dele, é um grande mistério, que exige fé antes de tudo.

Outra crítica que ambos faziam aos cristãos na academia era a suposição de que o mal poderia ter sido “criado” por Satanás, ou que ele fosse capaz de “inventar” alguma coisa boa. Tudo o que ele sabe fazer é imitar e imitar mal. Com estes conceitos fortes e bíblicos, todos os críticos concordam que O Senhor dos Aneis, jamais poderia ser considerada alguma “historinha para ninar” sobre um mundo “cor de rosa”. O mesmo, diríamos, vale para As Crônicas de Nárnia. O mal existe mesmo e é feio. E sua desvantagem é que só o que ele sabe fazer é corromper e distorcer o que já existe. Neste sentido ele pode ser comparado mais a uma doença e não, do que a algum estado permanente ou “normal.” Esta ênfase antimaniqueísta é fundamental para entendermos ambos os autores e suas obras.

Além da preocupação com a relação entre ciência e cristianismo e a questão do bem e do mal, o que unia os amigos era o seu empenho em serem bons escritores e bons críticos, até mesmo do cristianismo. Para além do interesse acadêmico, eles mostravam também um forte interesse artístico comum, particularmente pela literatura. Mas o que coroava mesmo a sua amizade é o teológico. No caso de Tolkien, a contribuição literária e do campo da filologia fosse mais reconhecida do que a teológica e acadêmica. Entretanto, suas cartas e depoimentos dos Inklings revelam a importância de suas convicções religiosas.

Apesar do clima de disputa reinante na Universidade de Oxford dos tempos de Tolkien e Lewis, e de ambos terem sido até certo ponto vítimas de ciúmes e preconceitos pelo sucesso de suas obras de ficção e pela coragem com que se referiam a temas religiosos, eles não se deixavam intimidar facilmente. De acordo com Humphrey Carpenter, Tolkien mesmo não escapou de revelar certa “inveja” da obra de Lewis e ciúme de certas amizades com autores de que ele não gostava muito. E a sua esposa, Edith, freqüentemente manifestava ciúmes em relação ao próprio Lewis, que sempre teve uma personalidade cativante. Entretanto, foi certamente a amizade entre os dois que inspirou grande parte do livro, dedicado por Lewis ao tema amor, Os Quatro Amores, particularmente no que tange à amizade.

Sua postura cristã é que permitia que ambos autores resolvessem suas diferenças de maneira tranquila, até mesmo as religiosas. Como se sabe, Tolkien manifestava certo ressentimento contra a igreja anglicana, a igreja da Inglaterra, por ter-se desviado do lar original do cristianismo, enquanto Lewis insistia que, ao se converter, sentia-se chamado a “voltar” ao seu lar original, a Igreja da Inglaterra.

Para além destas diferenças, Tolkien e Lewis procuravam complementar-se tanto nos seus esforços acadêmicos e debates teológicos. Enquanto Lewis escrevia histórias paralelamente aos seus livros teológicos, Tolkien empenhava-se por criar uma mitologia para a Inglaterra com fundo inevitavelmente cristão. Enquanto Lewis denunciava o que ele chamava de “o processo lingüístico inconsciente da degradação contínua de boas palavras e embotamento de distinções úteis”. Tolkien criava as suas próprias palavras e línguas.

Em Studies in Words, Lewis prova que tinha consciência de que nenhuma palavra humana é eterna. Como tudo o que é temporal, a linguagem humana tende ao caos e à dispersão do seu sentido. Pode-se dizer assim, que as línguas inventadas por Tolkien tinham esta função de resgate dos sentidos perdidos da nossa própria linguagem. Estas preocupações em comum é que permitiam o diálogo entre os dois pensadores, que visivelmente desenvolveram um profundo respeito um pelo outro, inclusive por seu campo acadêmico, como se vê nestas palavras de Lewis:

"Ouvi dizer que existe gente que gostaria mais que o estudo da literatura fosse completamente livrado da filologia; isto é, do amor e conhecimento das palavras. É provável que nem exista gente assim. Mas, se existir então, só podem ser lunáticos, ou candidatos ao tratamento de... alguma desilusão obstinada e fechada a sete chaves".

Mas o maior sinal de respeito de Lewis em relação ao amigo e sua especialidade é o herói de seu trilogia espacial, Longe do Planeta Silencioso, Perelandra e Esta Força Medonha, o filólogo Ransom, de um College de Cambridge, numa clara homenagem ao amigo.

Tolkien por sua vez, também faz homenagens ao amigo, neste comentário por exemplo: “A amizade com Lewis é compensatória em muitos aspectos: além do prazer constante, o contato com um homem ao mesmo tempo honesto, corajoso, intelectual – um acadêmico, um poeta e um filósofo – e, depois de sua longa peregrinação, finalmente um amante do nosso Senhor – fez-me um enorme bem.” E não se tratava de nenhuma admiração idealista ou acrítica. Apesar do respeito que Lewis tinha pelos filólogos, ele também reconhecia os seus limites, como se vê nesta comentário:

"O sonho do filólogo é de mapear todos os sentidos de uma palavra, gerando uma árvore semântica perfeita; cada ramo remetendo a um galho, cada galho, a um tronco. Isto em detrimento do fato de que seja algo que raramente possa ser feito com perfeição; afinal toda pesquisa redunda na incerteza".

A propósito, esta incerteza não se encontra somente na ciência, mas até nos jornais, como tão bem notaram filósofos famosos como os integrantes da Escola de Frankfurt, idealizadores da “teoria crítica” e uma das criadoras da teoria da chamada “indústria cultural”. Para Tolkien a verdade usualmente se encontra nos livros e não, nos jornais. Tanto Tolkien, quanto Lewis faziam severas críticas às manifestações do totalitarismo da tecnologia, que ao invés de suscitar reflexão filosófica como à semelhança da leitura, banaliza a realidade e embrutece as pessoas. Assim a filosofia é remetida aos filósofos e representante das “ciências humanas”, entendidas como as únicas a terem a competência e o direito de filosofar. E uma das melhores formas de manifestação desta crítica está em O Senhor dos Anéis como bem coloca Jane Chance: À semelhança de Foucault, J.R. Tolkien, da mesma forma que o seu companheiro dos Inklings, C.S. Lewis, questionava a validade de se eleger as ciências humanas como representante da razão da sua geração.... Tolkien manifestava esta crítica pela via da ficção através de instituições como Sauron, o Senhor do Escuro, e os seus seguidores associados ao território da morte, Mordor, que ele governava de maneira tão tirana. Todos os três pensadores levantam objeções contra o espírito combativo das tecnologias aplicadas ao governo das nações do mundo pós-iluminista.

Como tantos outros acadêmicos e escritores, (Júlio Verne, Monteiro Lobato, Miguel de Cervantes, Aldous Huxley, Guimarães Rosa, George Orwell) Tolkien e Lewis descobriram que a via da imaginação e da ficção é a melhor para se dizer o que tem que ser dito, fazendo a crítica do seu tempo e contribuindo, assim, para a transformação da história.

Tolkien e Lewis também mantinham o saudável hábito de fazer a crítica às suas respectivas obras de ficção, em particular ou na roda de amigos, os mencionados Inklings. De acordo com Lewis, eles costumavam reunir-se para discutir literatura, mas acabavam fazendo algo “bem melhor”, isto é, teologia. Lewis mostrava-se crítico até em relação à reação do amigo às críticas em geral. Diz ele que Tolkien tinha duas reações a elas “ ou ele começa tudo de novo desde o começo, ou ele não liga a mínima.” Evidentemente então a amizade não era sem atritos, mas qual amizade verdadeira e sincera poderia ser?

O que interessa para os nossos efeitos aqui é destacar que a amizade entre Lewis e Tolkien contribuiu muito para lançar pontes importantes para o diálogo, não somente entre os campos da lingüística e da literatura, mas também entre estes campos e outras áreas das ciências humanas tais como a filosofia, a história, a educação e até a teologia.

Em um ensaio sobre O Senhor dos Anéis, Lewis arrola algumas razões, porque considera a obra “indispensável”, notando, em primeiro lugar, que não se trata de uma continuação de O Hobbit. Pelo contrário, O Hobbit é que é uma tentativa de adaptação de O Senhor dos Anéis para crianças. A intenção de O Hobbit era de apresentar o jeito de ser e viver “doméstico”, quase vulgar e anárquico, de boa índole, apesar da aparência não muito atraente, destes seres peculiares, que, segundo Lewis, só um inglês seria capaz de criar. Já em O Senhor dos Anéis, a ênfase está no contraste entre os hobbits e o seu destino. Sua existência depende de poderes insuspeitos e surpreendentes. O mais irônico de tudo é que o herói principal deste drama épico é hobbit, o mais frágil de todos os seres. Daí que Lewis também chamasse O Senhor dos Anéis de “romance heróico”, o que não representou para ele um retrocesso, como para certos críticos, e sim, um avanço. Trata-se de um exemplar único da capacidade de sub-criação de Tolkien, pela qual ele recria o mundo todo. O livro é assim reservado a leitores “predestinados”. Na verdade, conclui Lewis, O Senhor dos Anéis é um mito, que não serve como meio de escape da realidade, como julgam alguns, mas como pura e saudável “invencionice” e consciente das ilusões da vida ordinária.

O elemento de nostalgia e angústia presente na obra, pode não ter efeito muito relaxante para o leitor, e diríamos que isto se aplica ainda mais ao filme, mas ele pode (esta é precisamente sua intenção), sim, ser revigorador, trazendo-lhe novas esperanças em meio às suas próprias angústias. Assim, a arte “mitopoeica” de Tolkien põe em jogo emoções, leveza, virtudes e horizontes distantes, procurando retratar o caráter paradoxal da vida humano situada que está neste vão intermediário entre a ilusão e o estar desiludido.

Naquele ensaio, Lewis contesta ainda as acusações de dualismo na obra, pois todos os personagens apresentam bons e maus aspectos misturados entre si. Não há pessoas, nem realidades “pretas” ou “brancas”. O melhor exemplo dessa mistura é Gollum. Contra a acusação de dualismo pesa ainda o fato de as coisas não acontecerem de forma aleatória, e nem tão pouco previsível em O Senhor dos Anéis. Não há relativismo, pois a ênfase está na providência divina que conduz tudo nos bastidores, mesmo que nem sempre de maneira visível. Lewis diz que Tolkien consegue tornar visíveis as almas invisíveis, trazendo para fora o que está dentro do coração. Desta forma, ele defende consistentemente a ideia de que a vida humana tem, de fato, este elemento heróico e mitológico, que só pode ser captado e devidamente “degustado” pelos que têm a simplicidade de uma criança no coração.

GABRIELE GREGGERSEN, artigo publicado no site Nas Pegadas de Aslan,
dedicado ao pensamento e obra de C.S. Lewis,
Sao Paulo, 11 de Maio de 2008

Sem comentários: