segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

"Faça-o prestar atenção apenas na sua vida interior..."

Há dois erros semelhante mas opostos que os seres humanos podem cometer quanto aos demônios. Um é não acreditar em sua existência. O outro é acreditar que eles existem e sentir um interesse excessivo e pouco saudável por eles. (C.S. Lewis)

Querido Vermebile,

Fiquei muito contente com o que você me disse o relacionamento desse homem com a mãe. Mas você deve persistir. O Inimigo trabalha de dentro para fora, transformando gradualmente as ações do paciente para que correspondam ao novo padrão, e talvez até mesmo a conduta dele para com a velha senhora mude a qualquer momento. Seria bom você intervir primeiro. Mantenha sempre contato com o nosso colega Gomalósio, que é responsável pela mãe, e fortaleça os dois naquela casa o bom e estável hábito da irritação mútua, das alfinetadas diárias. Os métodos que descreverei a seguir são de grande valia.

1. Faça-o prestar atenção apenas na sua vida interior. Ele pensa que sua conversão é algo que se deu den­tro dele e que sua atenção está, portanto, voltada neste momento para os estados do seu próprio espírito - ou pelo menos para a versão mais purificada deles, que é tudo o que você deve permitir que ele veja. Encoraje esse sentimento de introversão. Mantenha-o distante dos deveres mais elementares voltando sua atenção para os deveres espirituais mais avançados. Faça o possível para piorar essa útil característica humana, o horror e a negligência em relação às coisas óbvias. Você deve man­tê-lo num estado tal que ele possa perscrutar a si mes­mo durante uma hora sem descobrir nenhum desses fatos sobre ele mesmo, fatos que são perfeitamente vi­síveis para quem quer que viva com ele na mesma casa ou trabalhe com ele no mesmo escritório.

2. Certamente, é impossível impedir que ele reze pela mãe, mas temos meios de fazer com que as preces não tenham efeito. Certifique-se de que sejam bem "es­pirituais", que ele sempre se preocupe com o estado da alma da mãe, e nunca com seu reumatismo. Disso ad­vêm duas vantagens. Em primeiro lugar, ele prestará mais atenção naquilo que ele julga serem os pecados da mãe — se você guiá-lo um pouco, poderá induzi-lo a considerar qualquer um dos atos da mãe que ele julga inconvenientes ou irritantes como pecados. Assim, você poderá cutucar um pouco as feridas do dia mesmo quando ele estiver de joelhos. Toda essa operação não é nem um pouco difícil, e você achará tudo bem divertido. Um segundo lugar, já que as ideias dele sobre alma da mãe serão muito rudimentares e em sua maioria erróneas, ele, em algum grau, irá rezar por uma pessoa imaginária, e sua tarefa será fazer essa pessoa imaginária dia após dia cada vez menos parecida com a mãe verdadeira - a senhora de língua ferina que irrita o filho na mesa do café da manhã. Com o tempo, você conseguirá aprofundar a distância entre eles de tal forma que nenhum pensamento ou sentimento advindo das preces pela mãe imaginária jamais alcançará ou servirá de ajuda à mãe verdadeira. Já tive tamanho controle so­bre alguns de meus pacientes, que conseguia desviar sua atenção, num segundo, da prece fervorosa pela "alma" de uma esposa ou de um filho para o ato de insultar ou bater na esposa ou no filho sem nenhum remorso.

3. Quando dois humanos vivem juntos por muitos anos, é bem comum que cada um tenha um tom de voz ou uma expressão facial que sejam quase insupor­táveis para o outro. Aproveite-se disso. Faça-o prestar muita atenção naquela sobrancelha erguida da mãe, ma­neirismo que ele aprendeu a detestar já no berço, e dei­xe-o pensar no quanto isso o irrita. Deixe-o supor que ela sabe o quanto isso é irritante e que o faz apenas para irritá-lo — se você souber fazer o seu trabalho direitinho, ele não notará quão improvável é essa suposição. E, claro, nunca o deixe suspeitar de que ele também tem tons de voz e expressões que igualmente a irritam. Como ele não pode ver ou ouvir a si mesmo, será fácil.

4. Em meios civilizados, o ódio na vida doméstica costuma se expressar quando se dizem coisas que po­dem parecer bastante inofensivas quando escritas (as palavras não são ofensivas), mas que, ditas em deter­minado tom de voz ou em determinado momento, são como um soco no rosto. Para manter esse jogo em an­damento, você e Gomalósio devem fazer de tudo para que os dois tolos tenham dois pesos e duas medidas. O seu paciente deverá exigir que todas as suas frases sejam tomadas pelo seu valor literal, julgadas apenas pelas pa­lavras utilizadas, ao mesmo tempo que julga e interpreta todas as frases da mãe com uma sensibilidade exagera­da em relação ao tom, ao contexto e à intenção. Ela de­verá ser encorajada a fazer o mesmo. Assim, depois de cada briga, cada um pode ir para um lado, convencido, ou quase convencido, de que é inocente. Você sabe como é: "Basta que eu pergunte quando o jantar vai fi­car pronto para ela ter um acesso de fúria." Uma vez que o hábito estiver bem arraigado, você terá a deliciosa situação em que um ser humano diz coisas com o cla­ro intuito de ofender e ainda assim se ressente quando lhe dirigem uma ofensa.

Por fim, diga-me algo sobre a posição religiosa da senhora, Teria ela algum ciúme do novo fator na vida filho? Sente-se de algum modo ofendida com o fato de ele aprender com outros, e tão tarde na vida, aquilo que ela acha que deu a ele tantas oportunidades de aprender na infância? Ela acha que ele está fazendo uma tempestade em um copo d'água com esse assunto, ou que está, aceitando tudo muito calmamente? Lembra-se do irm­ão mais velho na história do Inimigo?

Afetuosamente, seu tio,
FITAFUSO

CLIVE STAPLES LEWIS, Cartas de um Diabo a seu Aprendiz, Carta 3, Oxford, 1942.

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