domingo, 1 de fevereiro de 2009

O Heroísmo Cristão na Obra de Tolkien


O Senhor dos Anéis é a obra de um católico devoto. Seus cantos élficos estão forjados segundo umas linhas melódicas que evocam a Benção, e sua estrutura moral procede diretamente do Novo Testamento. Esta é, pois, uma obra cristã, ainda que de gênero antiqüíssimo e ao mesmo tempo brilhantemente original.

Na medida que avança dos capítulos iniciais situados no Condado à vasta tela da Terra Media, O Senhor dos Anéis consegue integrar a forma da novela moderna à tradição muito mais antiga da poesia épica e da saga heróica. Isto não significa que Tolkien fora um bardo profissional louvando as gestas do seu herói tribal ou embelezando antigas lendas em algum castelo cheio de fumaça. Era um catedrático de Oxford, um professor de línguas que tinha de escrever suas histórias na solidão da noite e a risco de perder sua reputação diurna. O mais perto que esteve de uma fogueira de castelo foi na taberna cheia de fumaça The Eagle and Child, com seus amigos os Inklings.

O Senhor dos Anéis não é uma obra sem defeito, mas é mais rica e profunda que muitos livros preparados mais cuidadosamente por homens menos profundos. O que levava Tolkien a trabalhar até altas horas da noite não era só o desejo de contar uma história, mas a consciência de que ele era parte de uma historia. Talvez estivera escrevendo ficção, mas estava narrando a verdade sobre o mundo, como esta revelava-se para ele. E esta verdade foi descoberta na medida de que escrevia. "Tive sempre a sensação de registrar o que sempre esteve 'ali', emalguma parte, não de inventar", disse em uma das suas cartas.

[...] O Senhor dos Anéis trata de uma Busca, mas sua redação foi também uma Busca, assim como pode sê-lo sua leitura. A Busca é, sem lugar a dúvidas, uma das três ou quatro "estruturas profundas" utilizadas pelos narradores. Uma Busca é qualquer viagem na qual deve alcançar-se um objetivo difícil, acometer algum desafio, passar por alguma iniciação, ganhar ou descobrir algum objeto, local ou pessoa. A razão que explica a persistente popularidade do livro é evidente. Uma Busca deste tipo dá sentido à nossa existência. Não estamos onde queremos ou não somos o que desejamos ser: para chegar ali é necessário viajar, ainda que viajando, como G. K. Chesterton e T. S. Eliot, só para retornar ao ponto de partida "e conhecer o lugar pela vez primeira" (Little Gidding)... Todos sabemos, no fundo do nosso coração, que nossa vida não é simplesmente um progresso mecânico do berço ao túmulo, senão a busca de algo, de um esquivo tesouro. Este objetivo final inspira nosso trabalho e nosso comportamento... A Busca desencadeia nossa nostalgia de um paraíso perdido, nossa anseio de restauração e realização vindouras.

O livro que conhecemos como O Senhor dos Anéis é só um fragmento de um corpo muito mais amplo de contos, a maioria dos quais não foram publicados na vida de Tolkien. No transcurso dos anos foi ampliando-os pouco a pouco, preenchendo uma vasta tela histórica, tecendo tema sobre tema, até que a coleção chegou a ser uma "grande árvore", sólida e venerável como um velho carvalho, a tentativa de uma "mitologia para Inglaterra".

Como filólogo, Tolkien estava bem preparado para sua Busca pessoal. Já na escola havia aprendido sem ajuda uma dúzia de idiomas. E como cristão, sabia que "no principio a Palavra era... Nela estava a vida, e a vida era a luz dos homens". Sua mitologia própria inicia com a criação. O Deus Único, Ilúvatar, dá existência ao mundo com a palavra, "Eä! Que sejam estas coisas!" Enviando ao vazio à Chama Imperecível. Depois do momento exato da criação está a musica dos Ainur, a harmoniados arquétipos. Mas Eä, o "mundo que é", começa, como no livro do Gênesis, com a Palavra e a Luz.

A árvore dos Contos de Tolkien cresceu a partir de uma única semente. Em uma de suas cartas descreve o momento exato em que essa semente começou germinar. Em 1913, em quanto lia o poema Crist do escritor anglo saxão do século VIII, Cynewulf, dois dos versos impressionaram-lhe poderosamente:

Salve Earendel, o mais brilhante dos anjos
Enviado aos homens sobre a Terra Media.

"Senti uma curiosa excitação
–escreveu-, como se saindo de um sono, alguma coisa se agitara em mim. Atrás daquelas palavras havia algo muito remoto, raro e formoso, se podia apropriá-lo, algo que estava muito alem do antigo inglês". Com os anos, "Earendel", agora "Eärendil", se converteu para Tolkien no grande antepassado dos reis de Númenor, mensageiro das Duas Linhagens diante dos Senhores do Oeste. Para obter a ajuda destes paraderrotar o Grande Inimigo, Morgoth (de quem Sauron não é mais do que um servente), teve que ingressar nas praias proibidas de Eldamar. Impossibilitado depois para retornar a Terra Media que havia salvado, os Valar lhe colocaram nos céus para que viajasse eternamente como a Estrela da Manhã. Sujeito à sua frente brilhava uma Silmaril, a última das três jóias forjadas por Fëanor em um distante passado, preenchidas com uma luz extinta no mundo há muito tempo.

Deste modo, os versosde Cynewulf teriam crescido até se converter em toda mitologia:

Salve, Eärendil,
Portador da luz diante do Sol e da Lua!
Esplendor dos Filhos da Terra,
Estrela que brilha na escuridão,
Jóia no crepúsculo,
Radiante na manhã!

Mas, como chegou o Silmaril a Eärendil? Essa pergunta levou a Tolkien até Beren e Lúthen, ao mesmo coração do sistema mitológico do qual O Senhor dos Anéis é só um fragmento, e à essência da sua concepção do heroísmo... o conto de Beren e Lúthein é narrado por Bilbo a Frodo, e pelos Elfos em Valfenda, e é lembrado pelos personagens em numerosas passagens em O Senhor dos Anéis. A história de amor entre Aragorn e Arwen segue o modelo de Beren e Lúthien e ajuda aos protagonistas acompreender qual é sua missão do mesmo modo que ajudou Tolkien a compreender qual era a sua. Os dois mundos se unem na morte: umal ápide em Wolvercote identifica ao autor como Beren e a Edith, sua esposa, como Lúthien. "A Luz deve ser resgatada das trevas, inclusiveao preço da vida mesma, se temos chegado a ser dignos do amor".

A vontade de um homem não pode aspirar sem pecado à "Chama Imperecível", eterna fonte do ser. Mas, como nas Silmarils de Feanor, a criatividade pode forjar na terra um lugar para que essa luz brilhe, relembrando ou prolongando a perfeição perdida da inocência e contribuindo a perfeição final de um tempo fora do tempo ainda por vir. A guerra desencadeada pelo mal para ganhar a possessão da luz parece ser interminável, mas no meio da tragédia, a esperança nunca morre.

[...] Com maior claridade que em O Silmarillion, o heroísmo em O Senhor dos Anéis adota uma inconfundível forma cristã. Cada um dos três heróis principais é uma espécie de figura “crística”. Todos eles oferecem sua vida pelos outros, todos eles passam através da escuridão e inclusive de uma sorte de morte a uma espécie de ressurreição. Gandalf defende os companheiros contra o Balrog demoníaco na estreita ponte de Moria e cai com seu inimigo. Vitorioso, na morte é envidado de “volta”, já não como Gandalf o cinzento, mas dotado de uma autoridade de poder ainda maiores como Gandalf o Branco. Passolargo / Aragorn também “desce aos infernos” atrevendo-se a transitar as trilhas dos mortos sob a montanha encantada, e convoca os espíritos dos mortos perjuros na pedra negra de Erech. Finalmente, Frodo passa através da impenetrável escuridão de Laracna sob Minas Morgul, ficando inconsciente até o ponto que Sam não pode distinguir se estava vivo ou morto. Mas em seu caso, a identificação com Cristo sofredor continua depois da vitória conseguida com tanto sacrifício. Suas feridas que lhe fazem parecer “cheio de luz”, nunca poderão sarar de todo na Terra Média. Desde os Portos Cinzentos passa ao oeste, e sua partida junto aos altos Elfos e Gandalf marca o final da Terceira Idade do mundo.

O livro, porém, não termina com a partida de Frodo. Finaliza quando Sam retorna ao Condado e senta-se com sua filhinha no colo. Isto nos leva ao quarto, e eu diria central, herói dos Senhor dos Anéis Samwise Gamgee. Por que Sam mais do que Frodo, quem encarna melhor a condado e quem está mais profundamente mais enraizado naquela terra. No Senhor dos Anéis, o crescimento e o restabelecimento do condado andam juntos. Isto tem sentido por que, como Tolkien escreveu uma vez o propósito da narração é o “enobrecimento, ou santificação dos humildes”. O Senhor dos Anéis é um narração onde “ os últimos serão os primeiros, e os primeiros serão os últimos”.

O Anel é um símbolo de orgulho e poder. Representa tudo o que nos arrasta até o reino do senhor escuro tentando-nos a ser como ele. Sua forma circular é a mesma da vontade centrada em si mesma. Seu centro vazio sugere o vazio ao que nos jogamos usando o Anel. A invisibilidade que o portador é encoberto quebra as relações normais que mantemos em nosso entorno. Todos temos um Anel como este: conforme o alicerces da nossa própria Torre Obscura, quer dizer no seu falso Eu. Nossa Busca, como a de Frodo e Sam, consiste em renunciar o Anel e libertar-nos de sua influência sobre nós, seguindo a trilha que só Cristo tem seguido até o fim: sacrificando-se pelos amigos. Se este é o significado do Anel, renunciar a ele é impossível, como Tolkien compreendeu sem ajuda “externa”. Em Teologia isto seria a graça. Lembremos que já nas Fendas da Perdição o portador do Anel reclama o Anel para si. Sua liberdade para jogá-lo no fogo havia sido minada pela tarefa de chegar até lá. O que finalmente o salva é o acidente, mas só aparentemente, pois em realidade é a conseqüência direta de sua decisão de salvar a vida de Gollum. Portanto, de certo modo não é Frodo propriamente dito quem salva a Terra Média, muito menos Gollum que lhe tira o Anel numa mordida, fazendo-o cair no fogo. Também não é Sam, que aprendeu da compaixão de Frodo e sem o qual este nunca haveria alcançaado as Fendas da Perdição. O Salvador da Terra Média é Aquele que atua por meio do amor e da liberdade das suas criaturas, que perdoa nossas dividas “assim como nós perdoamos aos nossos devedores”, utilizando nos seus erros e até os desígnos do inimigo para produzir em nós o bem. O final do Senhor dos Anéis é o triunfo da Providência sobre o Destino , mas também o triunfo da Misericórdia na qual o livre arbítrio auxiliado pela graça é plenamente afirmado.

[...] A queda do homem abriu um abismo cheio de fogo entre o mundo real e o mundo ideal, entre verdade e bondade. A ponte da beleza está danificada irremediavelmente, porém devemos unir os dois extremos convertendo nossa existência na trilha que salve os demais do abismo: qualquer um que atue desta forma converte-se em Herói e em Rei. No livro bíblico do Apocalipse se diz: “Ao que vença lhe darei maná escondido, lhe darei uma pedra branca, e sobre a pedra um novo nome escrito que ninguém conhece a não ser aquele que o recebe” (Ap 2,17). Este “nome novo” é a identidade eterna, a personalidade transfigurada, o tesouro oculto que cada um de nós tem vindo a descobrir na Terra. Mas não se trata de somente descobrir, mas de fazer , de cumprir. Deus aguarda nossa resposta na liberdade. Nossa eleição é essencial para o drama. E isso converte o mundo em um drama carregado de perigo real.

STRATFORD CALDECOTT, Over the Chasm of Fire: Christian Heroism in Lord of the Rings and The Silmarillion, ensaio publicado no livro Tolkien: A Celebration, de Joseph Pearce, Londres, 1999.

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