domingo, 19 de outubro de 2008

Santos na Politica?

Entrevista realizada pelo jornalista Gianni Cardinale ao cardeal José Saraiva Martins. O prelado português foi prefeito da Congregação para as Causas dos Santos de 1998 até 2008. O texto foi publicado pela revista italiana 30 Giorni, na sua edição de Setembro de 2004.

GIANNI CARDINALE: Os cinqüenta anos da morte de Alcide De Gasperi, cujo processo de beatificação está em andamento - ainda em nível diocesano -; o acesso às honras dos altares de Alberto Marvelli, membro da Ação Católica e assessor da Democracia Cristã de Rímini nos primeiros anos do pós-guerra; a beatificação de Carlos de Habsburgo, último imperador da Áustria: o conjunto desses acontecimentos oferece o ponto de partida para discutir as relações entre santidade e política... Eminência, a política é também a arte do compromisso. Santidade e compromisso são compatíveis?

JOSÉ SARAIVA MARTINS: O uso da palavra “compromisso” pode ser fonte de confusões. Poderia também ser entendida como negociata, até mesmo em prejuízo da verdade e da justiça. E, se fosse assim, toda a classe política seria automaticamente desqualificada. Todavia, é verdade que, na atividade política, quase nunca é possível alcançar tudo o que se pretende. Em primeiro lugar, Deus estabeleceu uma ordem do universo na lei eterna ou direito natural, mas, dentro dessa moldura, quis a colaboração livre e responsável dos homens, segundo os ditamos da própria consciência retamente formada, ao levar a termo no tempo a obra da criação. A observância da lei natural e a liberdade responsável do indivíduo são, portanto, elementos inseparáveis, e constituem juntos o estatuto desejado por Deus para o agir do cristão na esfera temporal. Se as soluções para todos os casos possíveis estivessem preestabelecidas, a liberdade e, portanto, também a dignidade do homem seriam deixadas de lado, e nem se poderia mais falar de História, mas apenas de um rígido determinismo. Ora, quando há mais de uma posição legítima, a ninguém é lícito tentar impor aos outros as próprias opiniões, e será preciso chegar a uma decisão que seja o resultado de um confronto honesto e aprofundado dos diversos pareceres.

GIANNI CARDINALE: Portanto, para um político católico é possível aprovar leis não perfeitamente aderentes à doutrina católica?

SARAIVA MARTINS: Nos parágrafos 73 e 74 da encíclica Evangelium vitae, João Paulo II sugere a hipótese de um parlamentar que, diante de uma lei lesiva ao direito à vida que não pode ser completamente revogada - e o mesmo vale para as leis contrárias à dignidade e à estabilidade da família ou para tantas outras semelhantes -, pode e às vezes deve “oferecer o próprio apoio a propos­tas que visassem limitar os danos de uma tal lei e diminuir os seus efeitos negativos no âmbito da cultura e da moralidade pública”, desde que seja clara e conhecida por todos sua oposição pessoal a tal lei. Eu me limito a acenar à questão, que exigiria outras explicações. Mas nem nesse caso penso que se possa falar de compromisso.

GIANNI CARDINALE: É possível para os políticos serem também santos?

SARAIVA MARTINS: Certamente. O chamado universal à santidade diz respeito obviamente também aos políticos, como afirma o Concílio Vaticano II na constituição apostólica Lumen gentium: “É, pois, claro a todos, que os cristãos de qualquer estado ou ordem são chamados à plenitude da vida cristã e à perfeição da caridade”. O fato de o chamado se realizar já é um outro passo. A atividade dos políticos deve estar a serviço do bem comum. É evidente, portanto, que quem a exerce pode se santificar e também que a própria atividade política pode e deve ser santificada. É, portanto, motivo de alegria o fato de que muitos leigos participem da política ativamente, segundo suas condições e possibilidades. Não por acaso, Paulo VI definia a política como “a mais alta forma de caridade”.

GIANNI CARDINALE: As causas de canonização dos homens políticos são mais complicadas do que as outras?

SARAIVA MARTINS: Por si mesmas, não são mais complicadas. A Igreja não canoniza um sistema político, mas a pessoa que praticou heroicamente as virtudes e que, portanto, no campo específico da política, agiu em conformidade com a fé, com verdadeira competência e na busca contínua do bem da sociedade, não dos próprios interesses. A maior complexidade pode vir, como também em outras causas, quando se trata de políticos cuja atividade teve ressonância em nível nacional ou internacional, em cujo caso será preciso situar a pessoa em seu contexto histórico e social, ao passo que em outros casos - pense-se, por exemplo, numa mãe de família que viveu o cotidiano num âmbito geográfico restrito - bastará uma descrição mais geral do ambiente no qual transcorre a vida do candidato à canonização.

GIANNI CARDINALE: O santo patrono dos políticos é São Tomás Morus. Poderíamos pensar, assim, que o martírio é o único caminho para um político se tornar santo...

SARAIVA MARTINS: Os políticos, também aqueles que aspiram à santidade, podem ficar tranqüilos. Não é necessário que aspirem necessariamente ao martírio... Qualquer fiel cristão que se tenha dedicado à política pode ser declarado santo. Pessoalmente, considero que Tomás Morus poderia ter sido canonizado mesmo que não tivesse sido mártir.

GIANNI CARDINALE: Há figuras de políticos santos que lhe são particularmente caras?

SARAIVA MARTINS: Eu não gostaria de exprimir preferências. Permito-me apenas assinalar a figura do último “político” beatificado, Alberto Marvelli, o qual, além de ser ex-aluno salesiano e um associado da Ação Católica, foi também assessor da Democracia Cristã no município de Rímini.

GIANNI CARDINALE: O que o impressionou particularmente na figura do beato Marvelli?

SARAIVA MARTINS: Duas coisas em particular. Em primeiro lugar, sua entrega total e sem medo a Jesus Cristo, não de maneira abstrata, mas tendo sempre em mente a frase de Jesus: “O que fizerem ao menor de meus irmãos, o tereis feito a mim”. Marvelli foi um grande apóstolo dos pobres. E depois a percepção do fato de que não é a habilidade ou a ação do político, mas somente a graça do Senhor que provê o bem de um Estado. Escrevia o beato Alberto: “Não fizemos nada pelas eleições, temos de trabalhar em profundidade. Em alguns lugares, trabalha-se muito, mas não se faz nada. É preciso trabalhar na graça de Deus...”.

GIANNI CARDINALE: Algumas declarações que o senhor fez em favor da santidade de De Gasperi, durante o “Acampamento dos jovens” organizado no santuário de San Gabriele dell’Addolorata, em Abruzzo, no final de agosto, viraram notícia. O senhor quer acrescentar alguma coisa?

SARAIVA MARTINS: Para lhe responder, recorro às palavras do beato cardeal Ildefonso Schuster, que, há cinqüenta anos, morreu poucos dias depois de De Gasperi. Quando o Arcebispo de Milão recebeu a notícia da morte do estadista de origem trentina, comentou: “Desaparece da terra um cristão humilde e leal que deu da sua fé testemunho inteiro em sua vida particular e na vida pública”. Para uma pessoa medida como Schuster, parece-me um elogio significativo, que confirma sua liberdade de juízo. Por ocasião do cinqüentenário da morte, vêm sendo destacadas mais as grandes qualidades de De Gasperi, sua partilha plena e convicta com Robert Schuman, cuja fase diocesana do processo de beatificação terminou, do projeto de uma verdadeira integração européia. As causas de beatificação de ambos, porém, são úteis para aprofundar ainda mais a sua arraigada e vivida espiritualidade cristã. Li com interesse o que o cardeal Angelo Sodano sublinhou, ou seja, como em De Gasperi “virtude religiosa e virtude civil se uniram a serviço do compromisso político”. Há uma frase muito bela, que hoje tem um caráter profético, escrita pelo servo de Deus Alcide a sua esposa, Francesca: “Há homens de posse, homens de poder, homens de fé. Eu gostaria de ser lembrado entre estes últimos”.

GIANNI CARDINALE: As causas de beatificação de políticos modernos parecem voltar-se exclusivamente a personalidades de origem popular/democrata-cristã (Marvelli, Schuman, De Gasperi...). Deve ser necessariamente assim?

SARAIVA MARTINS: Graças a Deus, a santidade não tem carteirinha. De nenhum gênero. A única lei de Deus válida para um político cristão baseia-se em dois eixos: de um lado, a lei natural entendida segundo as declarações do magistério da Igreja, que admite uma pluralidade de soluções concretas em cada caso; por outro, a decisão livre e responsável do interessado, que, na busca do bem da sociedade, segue os ditames da consciência retamente formada. A Igreja, portanto, nunca pode canonizar um sistema político concreto, nem, obviamente, pode dar preferência a particulares formas de partido. O sujeito da canonização é o político que, em sua atividade, pratica as virtudes em grau heróico, entre as quais o reto exercício da sua liberdade.

GIANNI CARDINALE: Em 3 de outubro (de 2004) foi beatificada uma figura política de outros tempos, Carlos de Habsburgo, último imperador da Áustria. O fato de ser um nobre foi uma vantagem ou desvantagem para os procedimentos de sua causa de beatificação?

SARAIVA MARTINS: Todos os membros da Igreja são filhos de Deus convidados a viver a vida de Cristo e participantes do mesmo chamado universal à santidade. Essa é a única nobreza que conta diante do Senhor. Portanto, com relação a ele não houve nenhuma particular deferência de natureza mundana.

GIANNI CARDINALE: A beatificação de Carlos de Habsburgo não poderia suscitar perplexidade em populações que não se lembram com prazer do Império Austríaco?

SARAIVA MARTINS: Com a proclamação a beato de Carlos de Habsburgo, declara-se a santidade de vida de um fiel cristão que praticou as virtudes em sua situação de imperador. Isso não comporta nenhum juízo de mérito acerca da bondade de suas opções concretas em matéria política. A causa não diz respeito ao Império Austro-Húngaro, mas a uma pessoa. Nem diz respeito a um particular sistema político. A Igreja, repito, não canoniza nenhuma forma institucional...

GIANNI CARDINALE: Nem a democracia?

SARAIVA MARTINS: Nem a democracia é perfeita. Basta lembrar o simples fato de que Adolf Hitler foi eleito democraticamente... A Igreja, como diz o Papa na Centesimus annus, respeita a legítima autonomia da ordem democrática e não tem autoridade para exprimir preferências por uma ou outra solução institucional.

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