domingo, 10 de maio de 2009

Nada tão perigoso ou apaixonante como a Ortodoxia

E verdade que a Igreja histórica enfatizou ao mesmo tempo o celibato e a família, defendeu ferozmente ao mesmo tempo (se assim se pode dizer) que se deve ter filhos e que não se deve tê-los. Manteve as duas coisas lado a lado como duas cores fortes, vermelho e branco, como o vermelho e o branco no escudo de São Jorge. Sempre teve um ódio sadio pelo rosa. Ela odeia a combinação de duas cores, que é o fraco recurso dos filósofos. Ela odeia essa evolução do preto para o branco, que é o mesmo que um cinza sujo.

De fato, toda a teoria da Igreja sobre a virgindade poderia ser simbolizada na afirmação de que o branco é uma cor: não simplesmente a ausência de cor. Tudo aquilo em que estou insistindo aqui pode ser expresso dizendo-se que o cristianismo procurou, na maioria desses casos, manter as duas cores coexistindo, porém puras. Não se trata de uma mistura como o castanho ou o roxo; trata-se antes de algo como a seda jaspeada, pois a seda lustrada sempre forma ângulos retos, segundo o padrão da cruz.

Isso acontece, naturalmente, com as acusações contraditórias dos anticristãos sobre a submissão e a carnificina. Pois é verdade que Igreja pediu que alguns homens lutassem e que outros não lutassem; e é verdade que aqueles que lutaram comportaram-se como raios e aqueles que não lutaram, como estátuas [...] Deve haver algo de bom na vida da batalha, pois tantos homens bons sentiram prazer em ser soldados. Deve haver algo de bom na idéia da não-resistência, pois tantos homens bons parecem gostar de ser quacres. Tudo o que a Igreja fez (no que se refere a esse ponto) foi impedir que uma dessas coisas boas desbancasse a outra. Elas existiram lado a lado.

[...] E às vezes essa pura gentileza e essa pura ferocidade se encontraram e justificaram a sua junção; o paradoxo de todos os profetas se cumpriu, e, na alma do rei São Luís (IX, de França), o leão deitou-se com o cordeiro. Mas é preciso lembrar que o texto é interpretado com demasiada leviandade. Com freqüência se assegura, especialmente em nossas tendências tolstoianas, que quando o leão se deita com o cordeiro o leão torna-se semelhante ao cordeiro. Mas isso é brutal anexação e imperialismo da parte do cordeiro. Isso é simplesmente o cordeiro absorvendo o leão em vez de o leão comer o cordeiro.

O verdadeiro problema é o seguinte: Pode o leão deitar-se com o cordeiro e ainda reter sua regia ferocidade? Esse o problema que a Igreja enfrentou; esse é o milagre que ela conseguiu.

Isso é o que chamei de adivinhar as excentricidades ocultas da vida. Isso é saber que o coração do homem está à esquerda e não no meio. Isso é saber não apenas que a Terra é redonda, mas também exatamente onde ela é achatada. A doutrina cristã detectou as esquisitices da vida. Ela não apenas descobriu a lei, mas previu as exceções.

Subestimam o cristianismo os que dizem que ele descobriu a misericórdia; qualquer um poderia descobrir a misericórdia. De fato todo o mundo o fez. Mas descobrir o plano para ser misericordioso e também severo — isso foi antecipar uma estranha necessidade da natureza humana. Pois ninguém quer ser perdoado por um pecado grande como se fosse um pecado pequeno.

Qualquer um poderia dizer que não deveríamos ser totalmente infelizes, nem totalmente felizes. Mas descobrir até que ponto alguém pode ser totalmente infeliz sem eliminar a possibilidade de ser totalmente feliz — isso foi uma descoberta na psicologia. Qualquer um poderia dizer: "Nem pavonear-se, nem rastejar;" e seria um limite. Mas dizer: "Aqui você pode pavonear-se e ali você pode rastejar" — isso foi uma emancipação.

Esse foi o grande feito envolvendo a ética cristã; a descoberta de um novo equilíbrio. O paganismo fora como um pilar de mármore, reto por sua proporção simétrica. O cristianismo foi como uma áspera e romântica rocha, que, embora oscile sobre o pedestal a um ligeiro toque, todavia, sendo que suas exageradas excrescências se equilibram entre si, ali está entronizada há mil anos.

Numa catedral gótica as colunas eram todas diferentes, mas todas necessárias. Cada suporte parecia acidental e fantástico; cada pilar era um contraforte. Assim também no cristianismo, aparentes acidentes se equilibravam. Thomas Becket (Arcebispo de Cantuária) usava um cilício sob suas vestes de ouro e púrpura, e há muito a dizer em defesa dessa combinação; pois Becket se beneficiava com o cilício enquanto as pessoas na rua se beneficiavam vendo o ouro e a púrpura. Trata-se no mínimo de um estilo melhor que o do milionário moderno, que por fora exibe o preto e o desbotado para os outros e esconde o ouro junto ao seu coração.

Mas o equilíbrio não estava sempre no corpo físico como no caso de Becket; o equilíbrio muitas vezes se distribuía por todo o corpo da cristandade. Pelo fato de um homem rezar e jejuar nas neves do norte, flores poderiam ser arremessadas em seus festivais nas cidades do sul; e pelo fato de fanáticos beberem água nas areias da Síria, outros homens ainda poderiam beber sidra nos pomares da Inglaterra. Isso é o que torna o cristianismo ao mesmo tempo muito mais intrigante e interessante do que o império pagão; exatamente como a catedral de Amiens não é melhor, mas é mais interessante do que o Partenon.

Se alguém quer uma prova moderna de tudo isso, que considere o curioso fato seguinte: sob o cristianismo, a Europa (embora continue sendo uma unidade) dividiu-se em nações individuais. O patriotismo é um exemplo perfeito desse deliberado equilíbrio de uma qualidade enfática contra outra. O instinto do império pagão teria dito: "Vocês todos serão cidadãos romanos e se tornarão semelhantes entre si; que os alemães sejam menos lentos e reverentes; que os franceses sejam menos experimentais e rápidos". Mas o instinto da Europa cristã diz: "Que os alemães permaneçam lentos e reverentes, para que os franceses possam, em maior segurança, ser rápidos e experimentais. Vamos criar um equilíbrio a partir desses excessos. O absurdo chamado Alemanha deverá corrigir a insensatez chamada França". Último e mais importante: é exatamente isso que explica o que é tão inexplicável para todos os críticos modernos da história do cristianismo. Refiro-me às monstruosas guerras sobre pequenos pontos de teologia, os terremotos de emoção envolvendo um gesto ou uma palavra. Era apenas uma questão de um centímetro; mas um centímetro é tudo quando você está equilibrando.

A Igreja não poderia se dar ao luxo de oscilar um milímetro em alguns pontos, se quisesse continuar seu grande e ousado experimento do equilíbrio irregular. Assim que se permitisse que uma idéia perdesse um pouco de sua força, alguma outra idéia ganharia força demais. O que o pastor cristão conduzia não era um rebanho de ovelhas, mas sim uma manada de touros e tigres, de terríveis ideais e vorazes doutrinas, cada uma delas forte o suficiente para transformar-se numa falsa religião e devastar o mundo.

Lembre-se de que a Igreja abraçou especificamente idéias perigosas; ela foi uma domadora de leões. A idéia do nascimento por meio do Espírito Santo, da morte de um ser divino, do perdão dos pecados ou do cumprimento das profecias — qualquer um pode ver que são idéias que precisam apenas de um toque para transformar-se em algo blasfemo ou feroz. Os artífices do Mediterrâneo deixaram que o menor elo se partisse, e o leão do pessimismo ancestral rompeu sua cadeia nas esquecidas florestas do norte. Dessas compensações teológicas devo falar mais adiante. Aqui basta observar que se algum pequeno erro fosse cometido na doutrina, geraria enormes transtornos para a felicidade humana.

Uma frase formulada erroneamente acerca da natureza do simbolismo teria quebrado todas as melhores estátuas da Europa. Um deslize nas definições poderia parar todas as danças; poderia secar todas as árvores de Natal ou quebrar todos os ovos de Páscoa.

As doutrinas tinham de ser definidas dentro de rigorosos limites, até mesmo para que o homem pudesse desfrutar de liberdades humanas gerais. A Igreja precisou ser cuidadosa, se não por outro motivo para que o mundo pudesse ficar despreocupado.

Essa é a emocionante aventura da Ortodoxia. As pessoas adquiriram o tolo costume de falar de ortodoxia como algo pesado, enfadonho e seguro. Nunca houve nada tão perigoso ou tão estimulante como a ortodoxia. Ela foi a sensatez, e ser sensato é mais dramático que ser louco. Ela foi o equilíbrio de um homem por trás de cavalos em louca disparada, parecendo abaixar-se para este lado, depois para aquele, mas em cada atitude mantendo a graça de uma escultura e a precisão da aritmética.

A Igreja em seus primeiros dias correu violenta e velozmente como qualquer cavalo de batalha; no entanto, é totalmente anti-histórico dizer que ela apenas cometeu loucuras apegando-se a uma única idéia, como um fanatismo vulgar. Ela curvou-se para a esquerda e para a direita, na medida exata a fim de evitar enormes obstáculos. Num dado momento ela abandonou o enorme vulto do arianismo, apoiado por todos os poderes deste mundo para fazer o cristianismo mundano demais. No instante seguinte ela estava se curvando para evitar o orientalismo, que o teria espiritualizado demais.

A Igreja, por viver a ortodoxia, nunca tomou a rota fácil ou aceitou as convenções; a Igreja, por viver a ortodoxia, nunca foi respeitável. Teria sido mais fácil ter aceitado o poder terreno dos arianos. Teria sido mais fácil, durante o calvinista século XVII, cair no abismo infinito da predestinação. É fácil ser louco; é fácil ser herege. É sempre fácil deixar que cada época tenha a sua cabeça; o difícil é não perder a própria cabeça. E sempre fácil ser um modernista; assim como é fácil ser um snob. Cair em qualquer uma das ciladas explícitas de erro e exagero que um modismo depois de outro e uma seita depois de outra espalharam ao longo da trilha histórica do cristianismo — isso teria sido de fato simples.

É sempre simples cair; há um número infinito de ângulos para levar alguém à queda, e apenas um para mantê-lo de pé. Cair em qualquer um dos modismos, do agnosticismo à chamada Ciência Cristã, teria de fato sido óbvio e sem graça. Mas evitá-los a todos tem sido uma estonteante aventura; e na minha visão a carruagem celestial voa esfuziante atravessando as épocas. Enquanto as monótonas heresias estão esparramadas e prostradas, a furiosa verdade cambaleia, mas segue de pé.

GILBERT KEITH CHESTERTON, Ortodoxia, Londres, 1908.
Tradução de Almiro Pisetta.

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